A Dialéctica e o Social em Proudhon
"Sou um revolucionário e não um desordeiro."
Proudhon morreu há mais de 130 anos (1). Influente em quase todos os autores dos fins do século passado e dos começos do presente, Proudhon é mais citado que conhecido, no entanto é minha convicção que o conhecimento da sua obra é indispensável para quem se debruça sobre a evolução das ideias políticas, sociais, económicas e até filosóficas dos últimos tempos. Não é minha intenção proceder a uma análise completa da doutrina proudhoniana. O meu trabalho é bem mais limitado pois só interessa aqui e agora a sua dialéctica e o tipo de relações com o social. Proudhon recebeu de Marx e sobretudo do marxismo oficial uma condenação severa. Poder-se-ia dizer, que esteve no index em grande parte, devido à célebre obra de Marx: A Miséria da Filosofia (1847), que tem como subtítulo: Resposta à Filosofia da Miséria de Proudhon, e constitui uma crítica virulenta à importante obra de Proudhon: Sistema das Contradições Económicas (1846), que tem como Subtítulo : A Filosofia da Miséria. Marx acusa Proudhon de ser um pequeno burguês oscilando entre contradições inextricáveis e de nunca ter podido compreender o que é a dialéctica e a luta de classes. no Manifesto Comunista, publicado algumas semanas antes da Revolução de Fevereiro de 1848, o juízo de Marx sobre Proudhon torna-se ainda mais severo, Cataloga-o entre os socialistas burgueses e reaccionários. Estranho juízo este, se nos lembrarmos de que Proudhon foi o terror da burguesia francesa, a partir da sua eleição para a Assembleia Constituinte, a 8 de Junho de 1848, pelos operários de Paris.(2) Mas a posição de Marx em relação a Proudhon não foi sempre de crítica. Notemos que na sua juventude, após ter tido conhecimento da obra O que é a propriedade? (1840), Marx fala na "Rheinische Zeitung" de 16 de Outubro de 1842 "dos trabalhos tão penetrantes de Proudhon" e que, numa carta escrita na mesma época, se lhe refere considerando-o "o pensador mais notável do socialismo francês". Na Sagrada Família (obra colectiva escrita por Marx e Engels, 1844-45), Marx toma a defesa de Proudhon contra os seus críticos alemães, e chama-lhe o único proletário autêntico de todos os escritores socialistas. Diz Marx: "Proudhon não escreve só no interesse dos proletários, ele próprio é proletário, operário. A sua obra é uma manifesto científico do proletariado francês e tem assim uma grande importância histórica". Marx vai mais longe e também declara que: "Proudhon submete a base da economia nacional, a propriedade privada, a um primeiro exame sério, absoluto, ao mesmo tempo que científico. A obra de Proudhon: O que é a Propriedade? tem, para a economia nacional moderna, a mesma importância que a obra de Sieyés: O que é o Terceiro Estado? para a politica moderna."
Muito haveria a dizer sobre as relações de Marx e Proudhon, mas pensamos que não é o momento oportuno pois sairíamos do âmbito estrito do trabalho que é a questão da dialéctica.(3)
Opondo-se politicamente aos conservadores, aos liberais, aos republicanos e aos comunistas, Proudhon quer no entanto analisar as posições teóricas dos seus adversários (a teologia, a questão do Estado, a utopia) e opor um método de pensar que explique e torne verídicas as suas conclusões. Daí a importância declarada para Proudhon dum método intelectual que permita escapar às ciladas do dogmatismo. As suas conclusões não se compreendem a não ser referidas no quadro do seu pensamento: a dialéctica.(4)
Sabemos que Proudhon de 1840 a 1848 se lançou numa grande investigação onde foi ajudado por inúmeras leituras que foi fazendo. Sabemos que leu a Bíblia, Fourrier, Saint-Simon, Sismondi, Adam Smith, Ricardo, os economistas franceses mas também traduções ou fragmentos de Kant, Leibniz, Fichte, Feuerbach, Strauss, Hegel e outros.(5) O que temos no entanto que salientar é que se Proudhon lê todos estes autores não é para se submeter a uma escola, mas sempre para definir o seu próprio método, que no seu entender nem os teólogos, nem os intelectuais burgueses, nem os socialistas utópicos souberam construir.
Já em 1840 quando Proudhon escreve O que é a propriedade? possui um método intelectual preciso.
A sua teoria do conflito social impõe-se na sua experiência de operário onde Proudhon pôde viver todas as dificuldades do operário e do artesão face aos proprietários de capitais. Foi a partir desta experiência de trabalho que Proudhon teorizou a relação do capital e do trabalho. Nesta experiência, as fórmulas de Saint-Simon sobre a exploração do homem pelo homem no trabalho indicam a Proudhon a via na qual prossegue a análise do conflito socio económico.
A leitura de Kant forma um momento nesta evolução. Fora da teoria da moral na qual Proudhon voltará algumas vezes, a posição crítica e racionalista dos problemas vêm confirmar as sua intuições. Não esquecerá a lição kantiana não para por a questão clássica: O que é Deus? O que é a Propriedade ou o Estado? mas para perguntar: Donde vem a ideia de Deus? Como é gerada a propriedade? Como é que cremos nesse mito que é o Estado)(6)
A leitura de Kant obriga Proudhon a responder ao problema das categorias mentais, à questão de saber se a dialéctica é própria do espírito humano da razão, ou se ela é uma dimensão objectiva da realidade. Proudhon recusa uma tal alternativa entre o racionalismo e o empirismo e do mesmo modo a alternativa do espiritualismo e materialismo. Parece-lhe essencial reconhecer a objectividade do que ele chama "as série reais", quer dizer as divisões, distinções objectivas e ordenadas e por outro lado, as "Séries ideais", quer dizer os sistemas de relações que o espírito apreende do real, mas que não são somente reflexos da realidade. pelas séries ideias, o espírito inventa, reconstroi a realidade, pode combinar relações que não existem na realidade. (7)
Proudhon precisa que esta aquisição das "séries ideais", das categorias do entendimento e das estruturas lógicas, vêm da acção e particularmente do trabalho. É nesta acção que o homem experimenta as relações entre as coisas, corrige as suas ideias e inventa novas relações. A própria filosofia elaborou-se a partir do trabalho.(8)
Temendo livremente e de maneira pessoal a filosofia kantiana, Proudhon lê Feuerbach e Hegel com a mesma distância crítica. De Feuerbach, retém a ideia, essencial na sua análise, da alienação, mas transpondo-a a outros objectos e, em particular, à crítica do Estado. Se para Feuerbach, a alienação a analisar é a qual o homem atribui a Deus o que lhe pertence como coisas particular, para Proudhon pelo contrário, é na formação do Capital que se reproduz concretamente esta alienação. Para além disso, Proudhon desconfia do que ele chama "a metafísica de Feuerbach" o humanismo segundo o qual a humanidade seria o lugar do sagrado: desconfia desta filosofia reconstruir um novo "misticismo".(9) O ser humano traz consigo próprio e necessariamente, a contradição.(10)
A reflexão crítica sobre a obra de Hegel ocupa um lugar igualmente importante. é verdade que Proudhon não pôde ler a não ser traduções (visto não saber alemão) mas desde 1840 nota-se o seu interesse crítico pelo pensamento hegeliano, pela definição da dialéctica, pela tese que ele retomará, na sua própria versão, da identidade das categorias do real e das categorias do entendimento. Entretanto, desde as suas primeiras leituras Proudhon desconfia duma construção intelectual que lhe parece demasiado abstracta e que obedece apenas à sua própria lei.(11)
Hegel não fazia então obra de ciência, mas de filosofia. A distância é, com efeito, considerável entre a sua dialéctica e a do pensador francês. Proudhon não reduz somente este esquema trinitário a ser um caso possível das relações dialécticas e não se propõe nunca reduzir uma realidade humana a esta única dialéctica, mas, mais ainda, desenvolve contra a noção de "síntese", a mais viva crítica. Proudhon nega com efeito - e esta negação tem um grande significado para toda a sua concepção política - que toda a dialéctica se complete numa síntese. Nega que os termos em contradição encontrem necessariamente a sua ultrapassagem e a sua conclusão num novo sistema. pelo contrário, Proudhon desconfia desta síntese ser uma representação destruidora do movimento, e eventualmente ser, na realidade humana, o momento do poder, o momento da opressão onde um Estado pretende sintetizar os contrário quando nesse momento os destroi.(12)
Georges Gurvitch foi um dos principais comentadores de Proudhon e professor de Sociologia na Sorbonne que sublinhou o anti-hegelianismo de Proudhon.(13)
A dialéctica proudhoniana é também original e pouco dogmática. É um método intelectual procedendo por proposição e contra proposição como já Platão ensinava e prepara a conhecer as antinomias da realidade social (assim: monopólio e concorrência, em economia; autoridade e liberdade, nas relações sociais) a pensar menos os termos que as relações entre os termos, os seus conflitos e a sua transformação. Não se reduz a um modelo simples e sempre idêntico: deve ao contrário inventar modelos diversos de relações: antagónicos, conflituais, complementares, correspondentes à diversidade das antinomias reais.
A dialéctica não é somente um método de pensar, mas a característica própria das realidades sociais. Como o francês desenvolve longamente a análise socio-económica exposta no Sistema das Contradições Económicas, a realidade social é feita de múltiplas contradições cabendo à ciência social fazer o inventário. Algumas destas contradições são chamadas a revolverem-se num equilíbrio (o "valor constituído") outras devem pelo contrário subsistir pois participam no dinamismo económico (a antinomia do monopólio e da concorrência).(14) (15)
Este carácter dialéctico da realidade social vem responder, segundo Proudhon, ao problema da natureza das relações sociais que não são nem assimiláveis a uma realidade física (materialismo) nem redutíveis a sistemas lógicos (idealismo). Será uma das obsessões de Proudhon responder a esta questão, constituir uma teoria que ponha em evidência a especifidade do social em oposição aos outros objectos do pensar. É a teoria que Proudhon propõe chamar "ideo realismo" que no nosso entender é um termo infeliz pois é susceptível de causar mal entendidos.
As relações sociais são, por assim dizer, reais e ideais. A relação social é por sua vez uma realidade e uma lógica ou, como diz Proudhon uma "ideia". O que se quer dizer com isto é que as dialécticas sociais não são trocas intelectuais, mas que as relações sociais são incessantemente portadoras duma lógica interna que lhe é constitutiva. São bem, neste sentido, realidade "dialécticas". Esta especificidade do social tem múltiplas consequências. Compreender-se-à, por exemplo, que as representações, as crenças, as ideologias, jogam na história funções importantes e por mecanismos particulares.(16) (17)
Esta teoria dialéctica das relações sociais inclui uma concepção particular da sociedade. O acento é posto antes de tudo sobre a diversidade, sobre a pluralidade dos termos, dos sujeitos, dos grupos em presença. São as antinomias, os equilíbrios e as tensões entre os diversos elementos, que asseguram o movimento, os dinamismos, as inovações. Esta observação será fundamental nas proporções anarquistas e federalistas. Mais ainda, esta concepção fluída dos termos sociais que os torna necessários à vitalidade social, condena toda a representação autoritária, absolutista, governamental. Aos olhos de Proudhon, a concepção dialéctica do social, fazendo de todos os termos e das suas relações dinâmicas as causas reais da vida colectiva, condena as estruturas opressivas, assim como denuncia as alienações, e funda uma concepção igualitária.
Finalmente, falta dizer, que esta dialéctica não conduz, de modo algum, a uma redução do indivíduo, a uma negação da acção e da inovação individual. Proudhon, com efeito, resiste obstinadamente a toda a tentação de atribuir à sociedade uma nova transcendência que se opusesse às iniciativas individuais. Do mesmo modo que a pluralidade dos grupos participa na vitalidade do social, assim, também as liberdade individuais e, em certa medida, as tensões e os compromissos entre as pessoas participam do dinamismo social, tendo em conta que isto aconteça numa sociedade mutualista.
Não é para admirar que esta dialéctica, inspirada em certa medida na filosofia alemã, mas, na realidade, em desacordo com cada uma das suas origens, tenha sido mal recebida e mal compreendida. Alexandre Herzen, que, da Rússia, seguia com paixão a evolução do socialismo francês, escrevia em 1845, dando conta deste facto, ao receber o livro Da Criação da Ordem na Humanidade (18) fazendo de Proudhon um "pur hégelien" e ajuizando que Hegel "a façonné Proudhon à son image". É também a Hegel que Marx aproximava Proudhon, mas, ao contrário de Herzen, para concluir que Proudhon não tinha realmente compreendido a dialéctica hegeliana. Em 1865, lembrando-se das longas discussões parisienses, Marx atribuir-se-à o papel de professor em hegelianismo junto de Proudhon.(19)
Com efeito, Proudhon apesar do seu interesse por Hegel foi sempre obstinadamente rebelde à concepção hegeliana da dialéctica à qual critica, não somente a sua abstracção, mas também as suas conclusões políticas conservadoras. A síntese de Hegel, pretende ultrapassar a tese a antítese absorvendo-as é "governamental"; conduz à "prepotência do estado".(20)
É, ao contrário de Feuerbach que Karl Grün aproxima Proudhon até fazer dele o "Feuerbach francês". Grün fazia de Fourier o "Hegel francês". Mas, como vimos, se Proudhon se enriqueceu com a leitura de Feuerbach e de Hegel não deixou de seguir o seu próprio caminho.
Uma das dificuldades que podem encontrar os contemporâneos de Proudhon para compreender esta dialéctica deve-se ao facto do pensador francês designar uma realidade que não lhes era familiar. Esperaram que Proudhon tomasse partido sobre o problema da existência de Deus, que propusesse uma nova filosofia, ou ainda, que construísse uma nova teoria socialista. Ora, nenhum destes objectivos é o seu e se Proudhon se interroga sobre Deus e sobre a filosofia, é em função duma outra interrogação sustentada pelas realidade sociais.
A tese fundamental de Proudhon não é somente que as relações sociais são mais importantes que as estruturas políticas, mas que os acontecimentos e as mudanças sociais e, em primeiro lugar, as relações sociais do trabalho, têm a sua realidade e o seu dinamismo próprio. (21)
A sociedade não é uma abstracção, mas um ser colectivo que possui as suas características particulares. O facto de "la force collective"(22) vem claramente confirmar esta "realité" do social para além dos indivíduos que o compõem, pois, como o diz Proudhon mais de uma vez, só o facto do agrupamento, da organização das pessoas, engendra uma força própria.(23)
Para exprimir esta especificidade do social, a dialéctica é um instrumento "merveilheusement commode" para reatar os factos, para pôr em evidência relações entre elementos anteriormente isolados.(24)
Assim, a dialéctica aprenderá a distinguir a multiplicidade dos elementos que compõem a vida colectiva, aprenderá a soltar todas as contradições e as antinomias cujas tensões, longe de serem uma ameaça para as relações sociais, são uma garantia da sua vitalidade e da sua liberdade, tendo em conta que elas encontrem o seu equilíbrio dinâmico.(25) Esta realidade social comporta dialécticas que são tão gerais que podemos tomá-las como permanentes. Em particular o trabalho está no caminho de modificações permanente: o trabalho não é organizado, "il s'organize"(26) .
Esta organização do trabalho realiza-se, em particular, através dos múltiplos contratos que os produtores decidem e executam entre eles. Por estes contratos, os particulares e as empresas comprometem-se em função dos seus interesses e em função dos constrangimentos económicos sem abandonar a sua iniciativa. Das múltiplas decisões recíprocas surge um direito económico, verdadeiro direito social que se opõe radicalmente ao direito político. Claro que este direito social está em devir, está longe de estar realizado no regime proprietário mas tende a formular-se através das múltiplas relações da produção e do comércio. É este direito que se realiza na associação operária e que virá a ser princípio fundamental e regulador na democracia mutualista.
Este conjunto de análises sobre o ser colectivo, sobre a força colectiva, inscreve-se numa linha intelectual que, de Saint-Simon e Marx e Durkheim, em particular, forja os princípios gerais da Sociologia. Com efeito, desde as suas primeiras obras, em que faz da propriedade uma relação social entre o capitalista e o produtor de valores, explicando a apropriação económica pela apropriação da força colectiva, Proudhon inaugurava com Saint-Simon uma nova ciência sustentada, não sobre a produção e a circulação das riquezas, mas sobre as relações sociais constituídas na produção e nas trocas.
Desta maneira não é surpreendente que Marx tenha retomado palavra por palavra algumas destas análises proudhonianas sobre a força colectiva ou sobre a questão do Estado. É descrevendo as gerais da "coopération" que Marx encontra, na obra O Capital, o raciocínio de Proudhon. O efeito da cooperação, quer dizer da reunião e da organização de numerosos operários, é de criar uma força colectiva. E, conforme à análise proudhoniana, a produção de valor correspondente a esta força não se realiza a não ser para o capitalista.(27)
Mais ainda; quaisquer que sejam as múltiplas diferenças em relação à análise das relações entre o Estado e a sociedade civil,(28) Marx encontra precisamente as conclusões de Proudhon e, particularmente, sobre o exemplo do Estado francês.(29) (30)
Proudhon havia incessantemente evocado esta dialéctica histórica entre as forças populares e o Estado paralisado.(31)
Quanto ao princípio geral de Proudhon relativo à realidade do social, poderemos encontrar a formulação, sob formas diversas, em todos os grandes teóricos da Sociologia. Durkheim fez dele um dos grandes princípios do espaço sociológico.(32)
Com toda a justiça Georges Gurvitch designava Proudhon, um dos fundadores da Sociologia(33). Para além dos princípios gerais sobre os quais se baseia, Proudhon traz-nos múltiplos elementos de reflexão aos diversos domínios da Sociologia - Sociologia do trabalho, das classes sociais, das religiões e das ideologias. Num domínio tão particular como é o da Sociologia do direito social, (34) Proudhon abriu uma direcção de pensamento em que a fecundidade está
Longe de estar hoje em dia esgotada.
"Sou um revolucionário e não um desordeiro."
Proudhon morreu há mais de 130 anos (1). Influente em quase todos os autores dos fins do século passado e dos começos do presente, Proudhon é mais citado que conhecido, no entanto é minha convicção que o conhecimento da sua obra é indispensável para quem se debruça sobre a evolução das ideias políticas, sociais, económicas e até filosóficas dos últimos tempos. Não é minha intenção proceder a uma análise completa da doutrina proudhoniana. O meu trabalho é bem mais limitado pois só interessa aqui e agora a sua dialéctica e o tipo de relações com o social. Proudhon recebeu de Marx e sobretudo do marxismo oficial uma condenação severa. Poder-se-ia dizer, que esteve no index em grande parte, devido à célebre obra de Marx: A Miséria da Filosofia (1847), que tem como subtítulo: Resposta à Filosofia da Miséria de Proudhon, e constitui uma crítica virulenta à importante obra de Proudhon: Sistema das Contradições Económicas (1846), que tem como Subtítulo : A Filosofia da Miséria. Marx acusa Proudhon de ser um pequeno burguês oscilando entre contradições inextricáveis e de nunca ter podido compreender o que é a dialéctica e a luta de classes. no Manifesto Comunista, publicado algumas semanas antes da Revolução de Fevereiro de 1848, o juízo de Marx sobre Proudhon torna-se ainda mais severo, Cataloga-o entre os socialistas burgueses e reaccionários. Estranho juízo este, se nos lembrarmos de que Proudhon foi o terror da burguesia francesa, a partir da sua eleição para a Assembleia Constituinte, a 8 de Junho de 1848, pelos operários de Paris.(2) Mas a posição de Marx em relação a Proudhon não foi sempre de crítica. Notemos que na sua juventude, após ter tido conhecimento da obra O que é a propriedade? (1840), Marx fala na "Rheinische Zeitung" de 16 de Outubro de 1842 "dos trabalhos tão penetrantes de Proudhon" e que, numa carta escrita na mesma época, se lhe refere considerando-o "o pensador mais notável do socialismo francês". Na Sagrada Família (obra colectiva escrita por Marx e Engels, 1844-45), Marx toma a defesa de Proudhon contra os seus críticos alemães, e chama-lhe o único proletário autêntico de todos os escritores socialistas. Diz Marx: "Proudhon não escreve só no interesse dos proletários, ele próprio é proletário, operário. A sua obra é uma manifesto científico do proletariado francês e tem assim uma grande importância histórica". Marx vai mais longe e também declara que: "Proudhon submete a base da economia nacional, a propriedade privada, a um primeiro exame sério, absoluto, ao mesmo tempo que científico. A obra de Proudhon: O que é a Propriedade? tem, para a economia nacional moderna, a mesma importância que a obra de Sieyés: O que é o Terceiro Estado? para a politica moderna."
Muito haveria a dizer sobre as relações de Marx e Proudhon, mas pensamos que não é o momento oportuno pois sairíamos do âmbito estrito do trabalho que é a questão da dialéctica.(3)
Opondo-se politicamente aos conservadores, aos liberais, aos republicanos e aos comunistas, Proudhon quer no entanto analisar as posições teóricas dos seus adversários (a teologia, a questão do Estado, a utopia) e opor um método de pensar que explique e torne verídicas as suas conclusões. Daí a importância declarada para Proudhon dum método intelectual que permita escapar às ciladas do dogmatismo. As suas conclusões não se compreendem a não ser referidas no quadro do seu pensamento: a dialéctica.(4)
Sabemos que Proudhon de 1840 a 1848 se lançou numa grande investigação onde foi ajudado por inúmeras leituras que foi fazendo. Sabemos que leu a Bíblia, Fourrier, Saint-Simon, Sismondi, Adam Smith, Ricardo, os economistas franceses mas também traduções ou fragmentos de Kant, Leibniz, Fichte, Feuerbach, Strauss, Hegel e outros.(5) O que temos no entanto que salientar é que se Proudhon lê todos estes autores não é para se submeter a uma escola, mas sempre para definir o seu próprio método, que no seu entender nem os teólogos, nem os intelectuais burgueses, nem os socialistas utópicos souberam construir.
Já em 1840 quando Proudhon escreve O que é a propriedade? possui um método intelectual preciso.
A sua teoria do conflito social impõe-se na sua experiência de operário onde Proudhon pôde viver todas as dificuldades do operário e do artesão face aos proprietários de capitais. Foi a partir desta experiência de trabalho que Proudhon teorizou a relação do capital e do trabalho. Nesta experiência, as fórmulas de Saint-Simon sobre a exploração do homem pelo homem no trabalho indicam a Proudhon a via na qual prossegue a análise do conflito socio económico.
A leitura de Kant forma um momento nesta evolução. Fora da teoria da moral na qual Proudhon voltará algumas vezes, a posição crítica e racionalista dos problemas vêm confirmar as sua intuições. Não esquecerá a lição kantiana não para por a questão clássica: O que é Deus? O que é a Propriedade ou o Estado? mas para perguntar: Donde vem a ideia de Deus? Como é gerada a propriedade? Como é que cremos nesse mito que é o Estado)(6)
A leitura de Kant obriga Proudhon a responder ao problema das categorias mentais, à questão de saber se a dialéctica é própria do espírito humano da razão, ou se ela é uma dimensão objectiva da realidade. Proudhon recusa uma tal alternativa entre o racionalismo e o empirismo e do mesmo modo a alternativa do espiritualismo e materialismo. Parece-lhe essencial reconhecer a objectividade do que ele chama "as série reais", quer dizer as divisões, distinções objectivas e ordenadas e por outro lado, as "Séries ideais", quer dizer os sistemas de relações que o espírito apreende do real, mas que não são somente reflexos da realidade. pelas séries ideias, o espírito inventa, reconstroi a realidade, pode combinar relações que não existem na realidade. (7)
Proudhon precisa que esta aquisição das "séries ideais", das categorias do entendimento e das estruturas lógicas, vêm da acção e particularmente do trabalho. É nesta acção que o homem experimenta as relações entre as coisas, corrige as suas ideias e inventa novas relações. A própria filosofia elaborou-se a partir do trabalho.(8)
Temendo livremente e de maneira pessoal a filosofia kantiana, Proudhon lê Feuerbach e Hegel com a mesma distância crítica. De Feuerbach, retém a ideia, essencial na sua análise, da alienação, mas transpondo-a a outros objectos e, em particular, à crítica do Estado. Se para Feuerbach, a alienação a analisar é a qual o homem atribui a Deus o que lhe pertence como coisas particular, para Proudhon pelo contrário, é na formação do Capital que se reproduz concretamente esta alienação. Para além disso, Proudhon desconfia do que ele chama "a metafísica de Feuerbach" o humanismo segundo o qual a humanidade seria o lugar do sagrado: desconfia desta filosofia reconstruir um novo "misticismo".(9) O ser humano traz consigo próprio e necessariamente, a contradição.(10)
A reflexão crítica sobre a obra de Hegel ocupa um lugar igualmente importante. é verdade que Proudhon não pôde ler a não ser traduções (visto não saber alemão) mas desde 1840 nota-se o seu interesse crítico pelo pensamento hegeliano, pela definição da dialéctica, pela tese que ele retomará, na sua própria versão, da identidade das categorias do real e das categorias do entendimento. Entretanto, desde as suas primeiras leituras Proudhon desconfia duma construção intelectual que lhe parece demasiado abstracta e que obedece apenas à sua própria lei.(11)
Hegel não fazia então obra de ciência, mas de filosofia. A distância é, com efeito, considerável entre a sua dialéctica e a do pensador francês. Proudhon não reduz somente este esquema trinitário a ser um caso possível das relações dialécticas e não se propõe nunca reduzir uma realidade humana a esta única dialéctica, mas, mais ainda, desenvolve contra a noção de "síntese", a mais viva crítica. Proudhon nega com efeito - e esta negação tem um grande significado para toda a sua concepção política - que toda a dialéctica se complete numa síntese. Nega que os termos em contradição encontrem necessariamente a sua ultrapassagem e a sua conclusão num novo sistema. pelo contrário, Proudhon desconfia desta síntese ser uma representação destruidora do movimento, e eventualmente ser, na realidade humana, o momento do poder, o momento da opressão onde um Estado pretende sintetizar os contrário quando nesse momento os destroi.(12)
Georges Gurvitch foi um dos principais comentadores de Proudhon e professor de Sociologia na Sorbonne que sublinhou o anti-hegelianismo de Proudhon.(13)
A dialéctica proudhoniana é também original e pouco dogmática. É um método intelectual procedendo por proposição e contra proposição como já Platão ensinava e prepara a conhecer as antinomias da realidade social (assim: monopólio e concorrência, em economia; autoridade e liberdade, nas relações sociais) a pensar menos os termos que as relações entre os termos, os seus conflitos e a sua transformação. Não se reduz a um modelo simples e sempre idêntico: deve ao contrário inventar modelos diversos de relações: antagónicos, conflituais, complementares, correspondentes à diversidade das antinomias reais.
A dialéctica não é somente um método de pensar, mas a característica própria das realidades sociais. Como o francês desenvolve longamente a análise socio-económica exposta no Sistema das Contradições Económicas, a realidade social é feita de múltiplas contradições cabendo à ciência social fazer o inventário. Algumas destas contradições são chamadas a revolverem-se num equilíbrio (o "valor constituído") outras devem pelo contrário subsistir pois participam no dinamismo económico (a antinomia do monopólio e da concorrência).(14) (15)
Este carácter dialéctico da realidade social vem responder, segundo Proudhon, ao problema da natureza das relações sociais que não são nem assimiláveis a uma realidade física (materialismo) nem redutíveis a sistemas lógicos (idealismo). Será uma das obsessões de Proudhon responder a esta questão, constituir uma teoria que ponha em evidência a especifidade do social em oposição aos outros objectos do pensar. É a teoria que Proudhon propõe chamar "ideo realismo" que no nosso entender é um termo infeliz pois é susceptível de causar mal entendidos.
As relações sociais são, por assim dizer, reais e ideais. A relação social é por sua vez uma realidade e uma lógica ou, como diz Proudhon uma "ideia". O que se quer dizer com isto é que as dialécticas sociais não são trocas intelectuais, mas que as relações sociais são incessantemente portadoras duma lógica interna que lhe é constitutiva. São bem, neste sentido, realidade "dialécticas". Esta especificidade do social tem múltiplas consequências. Compreender-se-à, por exemplo, que as representações, as crenças, as ideologias, jogam na história funções importantes e por mecanismos particulares.(16) (17)
Esta teoria dialéctica das relações sociais inclui uma concepção particular da sociedade. O acento é posto antes de tudo sobre a diversidade, sobre a pluralidade dos termos, dos sujeitos, dos grupos em presença. São as antinomias, os equilíbrios e as tensões entre os diversos elementos, que asseguram o movimento, os dinamismos, as inovações. Esta observação será fundamental nas proporções anarquistas e federalistas. Mais ainda, esta concepção fluída dos termos sociais que os torna necessários à vitalidade social, condena toda a representação autoritária, absolutista, governamental. Aos olhos de Proudhon, a concepção dialéctica do social, fazendo de todos os termos e das suas relações dinâmicas as causas reais da vida colectiva, condena as estruturas opressivas, assim como denuncia as alienações, e funda uma concepção igualitária.
Finalmente, falta dizer, que esta dialéctica não conduz, de modo algum, a uma redução do indivíduo, a uma negação da acção e da inovação individual. Proudhon, com efeito, resiste obstinadamente a toda a tentação de atribuir à sociedade uma nova transcendência que se opusesse às iniciativas individuais. Do mesmo modo que a pluralidade dos grupos participa na vitalidade do social, assim, também as liberdade individuais e, em certa medida, as tensões e os compromissos entre as pessoas participam do dinamismo social, tendo em conta que isto aconteça numa sociedade mutualista.
Não é para admirar que esta dialéctica, inspirada em certa medida na filosofia alemã, mas, na realidade, em desacordo com cada uma das suas origens, tenha sido mal recebida e mal compreendida. Alexandre Herzen, que, da Rússia, seguia com paixão a evolução do socialismo francês, escrevia em 1845, dando conta deste facto, ao receber o livro Da Criação da Ordem na Humanidade (18) fazendo de Proudhon um "pur hégelien" e ajuizando que Hegel "a façonné Proudhon à son image". É também a Hegel que Marx aproximava Proudhon, mas, ao contrário de Herzen, para concluir que Proudhon não tinha realmente compreendido a dialéctica hegeliana. Em 1865, lembrando-se das longas discussões parisienses, Marx atribuir-se-à o papel de professor em hegelianismo junto de Proudhon.(19)
Com efeito, Proudhon apesar do seu interesse por Hegel foi sempre obstinadamente rebelde à concepção hegeliana da dialéctica à qual critica, não somente a sua abstracção, mas também as suas conclusões políticas conservadoras. A síntese de Hegel, pretende ultrapassar a tese a antítese absorvendo-as é "governamental"; conduz à "prepotência do estado".(20)
É, ao contrário de Feuerbach que Karl Grün aproxima Proudhon até fazer dele o "Feuerbach francês". Grün fazia de Fourier o "Hegel francês". Mas, como vimos, se Proudhon se enriqueceu com a leitura de Feuerbach e de Hegel não deixou de seguir o seu próprio caminho.
Uma das dificuldades que podem encontrar os contemporâneos de Proudhon para compreender esta dialéctica deve-se ao facto do pensador francês designar uma realidade que não lhes era familiar. Esperaram que Proudhon tomasse partido sobre o problema da existência de Deus, que propusesse uma nova filosofia, ou ainda, que construísse uma nova teoria socialista. Ora, nenhum destes objectivos é o seu e se Proudhon se interroga sobre Deus e sobre a filosofia, é em função duma outra interrogação sustentada pelas realidade sociais.
A tese fundamental de Proudhon não é somente que as relações sociais são mais importantes que as estruturas políticas, mas que os acontecimentos e as mudanças sociais e, em primeiro lugar, as relações sociais do trabalho, têm a sua realidade e o seu dinamismo próprio. (21)
A sociedade não é uma abstracção, mas um ser colectivo que possui as suas características particulares. O facto de "la force collective"(22) vem claramente confirmar esta "realité" do social para além dos indivíduos que o compõem, pois, como o diz Proudhon mais de uma vez, só o facto do agrupamento, da organização das pessoas, engendra uma força própria.(23)
Para exprimir esta especificidade do social, a dialéctica é um instrumento "merveilheusement commode" para reatar os factos, para pôr em evidência relações entre elementos anteriormente isolados.(24)
Assim, a dialéctica aprenderá a distinguir a multiplicidade dos elementos que compõem a vida colectiva, aprenderá a soltar todas as contradições e as antinomias cujas tensões, longe de serem uma ameaça para as relações sociais, são uma garantia da sua vitalidade e da sua liberdade, tendo em conta que elas encontrem o seu equilíbrio dinâmico.(25) Esta realidade social comporta dialécticas que são tão gerais que podemos tomá-las como permanentes. Em particular o trabalho está no caminho de modificações permanente: o trabalho não é organizado, "il s'organize"(26) .
Esta organização do trabalho realiza-se, em particular, através dos múltiplos contratos que os produtores decidem e executam entre eles. Por estes contratos, os particulares e as empresas comprometem-se em função dos seus interesses e em função dos constrangimentos económicos sem abandonar a sua iniciativa. Das múltiplas decisões recíprocas surge um direito económico, verdadeiro direito social que se opõe radicalmente ao direito político. Claro que este direito social está em devir, está longe de estar realizado no regime proprietário mas tende a formular-se através das múltiplas relações da produção e do comércio. É este direito que se realiza na associação operária e que virá a ser princípio fundamental e regulador na democracia mutualista.
Este conjunto de análises sobre o ser colectivo, sobre a força colectiva, inscreve-se numa linha intelectual que, de Saint-Simon e Marx e Durkheim, em particular, forja os princípios gerais da Sociologia. Com efeito, desde as suas primeiras obras, em que faz da propriedade uma relação social entre o capitalista e o produtor de valores, explicando a apropriação económica pela apropriação da força colectiva, Proudhon inaugurava com Saint-Simon uma nova ciência sustentada, não sobre a produção e a circulação das riquezas, mas sobre as relações sociais constituídas na produção e nas trocas.
Desta maneira não é surpreendente que Marx tenha retomado palavra por palavra algumas destas análises proudhonianas sobre a força colectiva ou sobre a questão do Estado. É descrevendo as gerais da "coopération" que Marx encontra, na obra O Capital, o raciocínio de Proudhon. O efeito da cooperação, quer dizer da reunião e da organização de numerosos operários, é de criar uma força colectiva. E, conforme à análise proudhoniana, a produção de valor correspondente a esta força não se realiza a não ser para o capitalista.(27)
Mais ainda; quaisquer que sejam as múltiplas diferenças em relação à análise das relações entre o Estado e a sociedade civil,(28) Marx encontra precisamente as conclusões de Proudhon e, particularmente, sobre o exemplo do Estado francês.(29) (30)
Proudhon havia incessantemente evocado esta dialéctica histórica entre as forças populares e o Estado paralisado.(31)
Quanto ao princípio geral de Proudhon relativo à realidade do social, poderemos encontrar a formulação, sob formas diversas, em todos os grandes teóricos da Sociologia. Durkheim fez dele um dos grandes princípios do espaço sociológico.(32)
Com toda a justiça Georges Gurvitch designava Proudhon, um dos fundadores da Sociologia(33). Para além dos princípios gerais sobre os quais se baseia, Proudhon traz-nos múltiplos elementos de reflexão aos diversos domínios da Sociologia - Sociologia do trabalho, das classes sociais, das religiões e das ideologias. Num domínio tão particular como é o da Sociologia do direito social, (34) Proudhon abriu uma direcção de pensamento em que a fecundidade está
Longe de estar hoje em dia esgotada.
Sem comentários:
Enviar um comentário