A Dialéctica Proudhoniana como Método e como Movimento real da Sociedade
Vamos empreender uma análise sobre a concepção de dialéctica de Proudhon. Proudhon é extremamente hostil à dialéctica hegeliana. Critica-a não só no fundo como nas aplicações. Claramente formulada nas obras de maturidade, toda a obra de Proudhon está de facto impregnada desta hostilidade. "A antinomia não se resolve; é nisto que reside o vício fundamental de toda a filosofia hegeliana. Os dois termos que compõem a antinomia oscilam, quer entre si, quer entre outros termos antinómicos; o que conduz a novos resultados" (De la Justice dans la Révolution et dans l'Église - vol.IV, 1858, p.148) "Os termos antinómicos não se resolvem, como os pólos opostos de um pilha eléctrica não se destroem. O problema não está em encontrar a fusão deles que seria a sua morte, mas o seu equilíbrio sempre instável, variável segundo o próprio desenvolvimento da sociedade" (Théorie de la Propriété, 1865, p.52) "O equilíbrio instável entre os dois termos, não nasce de um terceiro, mas da sua acção recíproca." Numa palavra, "a fórmula hegeliana só é uma tríade por prazer ou erro do Mestre, que se vê três termos onde só existem dois e que não viu que a antinomia não se resolve, mas que implica quer uma oscilação quer um antagonismo, os únicos susceptíveis de equilíbrios. Deste ponto de vista, todos o sistema de Hegel deveria ser refeito." ( De la Justice dans la Révolution et dans l'Église, 1958, Vol.I, pp. 28-29).
A Síntese de Hegel, "suprimindo" e mantendo simultaneamente a tese e a antítese (aufheben: eis o erro dos tradutores utilizados por Proudhon que escrevem também "absorvendo") é governamental. É, acrescenta Proudhon com muito mais subtileza, "anterior e superior aos termos que une". É ela, escreve, que conduz Hegel "à prepotência do Estado" e "ao restabelecimento da autoridade" (La Pornocratie, 1875). "Hegel chegava com Hobbes ao absolutismo governamental, à omnipotência do Estado, à subalternização dos indivíduos e dos grupos. Pergunto-me se, devido a esta faceta da sua filosofia, Hegel conservou um único partidário na Alemanha. Mas posso dizer que falar assim... é desonrar a filosofia." (Guerre et Paix, 1861).
À dialéctica hegeliana, Proudhon opõe outra, a sua. Esta não é apenas uma dialéctica antinómica, negativa, antitética, que rejeite qualquer síntese; é um método dialéctico que se propõe procurar a diversidade em todos os seus pormenores. Ora a diversidade em todos os seus pormenores só pode ser captada pela experiência. Neste sentido, o método proudhoniano aproxima-se duma dialéctica empírico realista. Em Proudhon o método dialéctico conduz a uma experiência sempre renovada, lança-se num pluralismo que neste autor é sempre mais realista. Por etapas e com uma clareza crescente, Proudhon faz notar que o movimento dialéctico começa por ser o movimento da própria realidade social e só depois um método para seguir as sinuosidades deste movimento. Tem cada vez mais consciência de que as complementaridades, as implicações mútuas e as reciprocidades de perspectivas são tão reais como as polarizações e tão indispensáveis como processos dialécticos, como o estabelecimento de antinomias.
Mas o empirismo e o realismo dialécticos de Proudhon têm limites. É que, através da sua dialéctica, procura "a reconciliação universal pela contradição universal" e esta reconciliação efectua-se através de equilíbrios. Apesar do reconhecimento da sua instabilidade e da implicação de esforços sempre novos, as antinomias vão-se completando e equilibrando, por vezes demasiado facilmente, encobrindo amiúde, pela sua inflação, os outros movimentos e processos dialécticos.
Assim, apesar de todos os pressentimentos que Proudhon tem da extrema complexidade do movimento próprio à realidade social e da pluralidade dos processos dialécticos necessários para a estudar, na sua variedade e diversidade, não evita o seguinte erro: a sua dialéctica cai por vezes num pluralismo de tal maneira bem ordenado, bem integrado, bem equilibrado que se admite que essa integração e esse equilíbrio tenham sido pré concebidos.
Logo na primeira obra que escreve, De la Célabration du Dimanche de 1839, Proudhon declara que o seu método consiste em "procurar equilíbrios na diversidade", que este método se propõe por a nu todas as diversidades efectivas e, após ter desenvolvido mais esta descrição, estudar a possibilidade de integrar estas diversidades em conjuntos, em totalidades, também múltiplas, mas em que pudessem equilibrar-se as diversidades do mesmo tipo, Isto conduz por um lado a totalidades não hierárquicas, donde é excluída qualquer "subalternização dos elementos componentes", e por outro, a pluralidade de totalidades entre as quais podem igualmente ser procurados equilíbrios.
Esta tese encontra-se desenvolvida com mais precisão em La Création de l'Ordre dans l'Humanité. Nessa obra, Proudhon fala da "intuição das diversidades e das totalizações na sua divisão. Estas diversidades e estas "totalizações são irredutíveis. Existe uma independência das diversas ordens de série e a impossibilidade de uma ciência universal...
Impõe-se a multiplicidade dos pontos de vista como na realidade social se impõe a multiplicidade dos grupos e a pluralidade dos conjuntos sociais em que estes estão integrados. "Resolver a diversidade actual numa identidade, é abandonar a questão", o que fizeram Schelling e Hegel.
A procura das diversidades e integração destas em totalidades em que se equilibrem poderia evocar o pan harmonismo de Leibniz, cuja dialéctica se reduzia ao estudo da "unidade numa variedade tão vasta quanto possível". De facto, Krause e Ahrens (de quem Darimon, um amigo de Proudhon, foi discípulo) concebiam o método dialéctico como uma "via ascendente de análise que termina por um conhecimento de totalidades das variedades." Mas Proudhon que conhece Leibniz e muitas vezes o cita, toma todas as precauções necessárias, tanto em La Création de l'Ordre como em De la Justice, para opor a sua dialéctica, que concebe simultaneamente como movimento da realidade social e como método, a todo e qualquer harmonismo. Protesta contra a ideia leibniziana de uma ordem transcendente e contra a ideia optimista de uma harmonia pré-estabelecida entre nómadas irredutíveis. "A ordem", ou mais exactamente, a coerência na multiplicidade dos conjuntos, só se realiza graças a esforços penosos da humanidade e através das antinomias de grupos e de classes. Um dos principais aspectos dessa luta prometeica consiste no facto de "a marcha da sociedade se medir sobre o desenvolvimento da indústria e sobre o aperfeiçoamento dos instrumentos".
Segundo as observações de Proudhon em De la Justice..., o que falta a Leibniz não é apenas a pluralidade efectiva dos conjuntos e a marca humana que estes possuem, são igualmente as antinomias insolúveis, as únicas que podem conduzir à verdadeira irrefutabilidade e a um pluralismo consequente.
A dialéctica proudhoniana precisa-se melhor nos dois volumes das Contradictions Economiques (1846). Proudhon começa por se esforçar para tornar esta dialéctica tão realista quanto possível. O método das antinomias deve ser aplicado não só às doutrinas e às ideias, mas ainda com muito mais cabimento às realidades sociais que as engendram e que estão elas próprias em movimento dialéctico, o que se verifica sobretudo nas usa manifestações económicas. Já no Premier Mémoire sur la Propriété, Proudhon insistia na impossibilidade de se compreender a vida económica sem se seguir o movimento dialéctico real desta. Recordemos as fórmulas de Proudhon: " A propriedade é o produto espontâneo da sociedade e a dissolução da sociedade... A propriedade é o preço do trabalho e a negação do trabalho... A propriedade é a liberdade, a propriedade é o roubo." Acontece portanto com a propriedade o que acontece com o Estado: encarados fora de um quadro social preciso, são apenas abstracções perniciosas que prejudicam o homem, os grupos, as classes e as sociedades e os conduzem a alienações; encarados como elementos relativos e móveis, no seio de um conjunto social em movimento, encontram-se em perpétua transformação e podem modificar-se inteiramente e participar em equilíbrios imprevistos.
Um outro aspecto do movimento dialéctico próprio à realidade social é das forças colectivas. Estas forças colectivas são irredutíveis às forças individuais assim como à soma destas últimas, pois os esforços interpenetrados num grupo, numa classe ou numa sociedade produzem forças centuplicadas. Ora, estas forças colectivas podem tornar-se destruidoras, opressivas e ameaçar a existência da própria sociedade e sobretudo a força criadora deste. Só pela afirmação do elemento antinómico constituído pela "razão colectiva", que dirige as forças colectivas e luta contra aos abusos destas, estas forças se tornam forças produtivas e criadoras. Mas a própria razão colectiva, desligada das forças colectivas, não passa de uma quimera ainda mais perigosa que a razão individual. Além disso estabelece-se uma dialéctica entre a "razão colectiva" e as ideias e ideais colectivos assim como entre a "consciência colectiva" e a "razão colectiva", facto de que Proudhon não se dá conta. É o movimento dialéctico entre as forças colectivas. as ideias e os ideais colectivos, as suas interpenetrações e lutas constantemente renovadas, o seu processo de "totalização" enfim, que constituem a trama efectiva da realidade social, cuja dialéctica não se reduz de modo algum, apenas às antinomias. A realidade social não se reduz unicamente ao jogo das forças colectivas - pois as forças colectivas podem criar ideais e valores que nelas se integram, tornando-se então capazes de as guiar. Este é em particular o caso do trabalho colectivo na sua luta contra a alienação.
A dialéctica entre forças colectivas, razão colectiva, ideias e ideais colectivos realiza-se no esforço colectivo produtivo e criador que se manifesta particularmente no trabalho e no movimento deste para a desalienação. O mito de Prometeu, a que Proudhon recorre insistentemente, não só em Les Contradictions Économiques como em De la Justice..., aplica-se essencialmente à dialéctica do trabalho que é segundo as circunstâncias, a maior alegria e o maior dos sofrimentos; porque o trabalho é simultaneamente o instrumento da libertação do homem e a ameaça constante da servidão deste. É por isso imensamente doloroso que o esforço de Prometeu seja o símbolo do trabalho. No trabalho, o homem é demiurgo. "O trabalho, análogo à actividade criadora, é a emissão do espírito..., é o grande triunfo da liberdade." Por outro lado, o trabalho torna-se pena sem limites quando é inteiramente escravizado e alienado.
A alienação ameaça constantemente o trabalho. Esta ameaça é tanto mais pesada quanto o homem "morre devido ao trabalho", porque "trabalhar é ganhar a vida", e a alegria que o trabalho procura nunca é inteiramente pura. A dialéctica inerente ao trabalho torna-se trágica quando "a organização do trabalho" é imposta de cima aos trabalhadores, quer através da vontade de proprietários ociosos (feudais e padres), quer pela de patrões e pelas coligações destes (feudalidade industrial) ou pela do Estado e dos seus funcionários (burocratas). As antinomias próprias ao trabalho não podem ser inteiramente resolvidas, mas a resolução social pode tirar-lhes o que têm de particularmente intolerável, instituindo a autogestão operária, fundamento da democracia industrial destinada a, de uma forma descentralizada, planificar a economia e, assim, a limitar o Estado completamente transformado.
Proudhon certamente, pensa demasiado como jurista: na engrenagem da realidade social atribui um papel demasiado importante ao direito, em especial, por um lado ao direito igualitário e mutualista, por outro, ao direito social autónomo e de preferência espontâneo. Opõe-os ao direito individualista e ao direito estatal, derivados do direito romano tradicional.
O movimento dialéctico real da sociedade, da economia e do trabalho exige um método, não só para estudar estas realidades em todas as suas sinuosidades, mas também para combater os erros doutrinais que são comuns ao individualismo da economia política clássica e ao estatismo económico. Os extremos tocam-se, observa Proudhon. O individualismo e o estatismo acabam por chegar aos mesmos resultados e partem das mesmas premissas. O estatismo hegeliano e estatismo comunista (Proudhon refere-se, aos partidários "da comunidade dos bens" do seu tempo) dissolvem a sociedade no Estado, fazendo desaparecer a diversidade «numa unidade transcendente, a pluralidade dos grupos, na centralização. Assim, acabamos por ver apenas nas comunidades sociais um indivíduo em ponto grande. Só se distinguem do individualismo porque aumentam o tamanho do indivíduo. Dado que a vontade do Estado substitui os laços sociais, o estatismo económico é apenas um super individualismo.
A mesma demonstração é válida para o individualismo. Este esquece que "fora da sociedade, o homem é uma matéria explorável, um instrumento, por vezes um móvel incómodo e inútil, mas não uma pessoa." Assim, o individualismo, "pronto a tudo sacrificar à pessoa, mata-a de facto e chega aos mesmos resultados que o estatismo", que é a condenação irrevogável de ambos. Só a dialéctica, revelando a incapacidade dos dois adversários para captar as totalidades sociais reais, consegue fazer ressaltar este facto. É também ela que torna manifesto "que a negação sistemática da propriedade foi concebida sob a influência directa do preconceito da propriedade e é a propriedade que está na base de todas a s teorias comunistas." Recordemos as fórmulas de Proudhon: "O proprietário- Estado não tem alma nem coração. É um ser fantasmagórico, inflexível, que age dentro do círculo da sua ideia como a mó esmaga o grão no seu movimento." "É o monopólio elevado à segunda potência." "Não se remedeia a raiva fazendo com que todos mordam... Também não é tornando-se propriedade do Estado que a propriedade se torna social." Lutando contra estas concepções erradas, a dialéctica revela a identidade dos termos seguintes: propriedade absoluta, poder ilimitado, ditadura. " O estatismo económico é a glorificação da polícia."
Resumindo, o método dialéctico não serve apenas para revelar a ligação entre as antinomias e, assim, a diversidade das totalidades sociais reais e a dos elementos que nelas estão integrados. Permite igualmente revelar algumas ilusões, isto é, mostrar que existem contradições que são apenas aparentes e não reais, como por exemplo a oposição entre individualismo e estatismo.
Podemos acusar as análises de Proudhon por terem um carácter demasiado rígido, demasiado abstracto. Nem sempre precisa bem em que quadros sociais concretos o problema da estatização da economia se coloca, problema esse que pode ter sentidos diferentes, e em certos casos, representar apenas uma etapa, Por outro lado, as análises de Proudhon carecem por vezes da dimensão histórica. Por exemplo, o capitalismo de Estado, a tecnocracia e o comunismo não são diferenciados, o que provocou a observação irritada de Marx em que este diz que "Proudhon só vê, nas relações sociais reais, princípios, categorias." No que respeita a discussão das diferentes doutrinas contida em Contradictions Économiques, esta crítica só é exacta parcialmente, mas é totalmente injusta no que refere ao conjunto do pensamento de Proudhon. Este concebe a dialéctica não só como movimento real da sociedade mas como método. E melhor, como já sabemos, não seduz a dialéctica às antinomias, mas entrevê igualmente as complementaridades, as implicações mútuas e as reciprocidades de perspectivas.
A nossa interpretação confirma-se em De la Justice... (1858) e em Guerre et Paix (1861). A primeira destas duas obras pode levar a temer que Proudhon tenha abandonado a dialéctica em favor de um racionalismo da Justiça. Temor perfeitamente injustificado; aliás, é precisamente nesta obra que como já vimos a dialéctica de Proudhon se orienta não só no sentido de um realismo e de um empirismo mais aprofundados, assim como na via da superação da redução da dialéctica às antinomias. Muito antes de Marx, Proudhon relaciona a dialéctica com a prática social e liga-a ao pragmatismo, não como doutrina, mas enquanto manifestação da vida social quotidiana. É a prática do trabalho e a prática revolucionária que afinal se revelam como sendo o centro do movimento dialéctico real, e suscitam a interpretação da dialéctica enquanto método que conduz a experiências sempre renovadas. A dialéctica proudhoniana prova que, na realidade social, a liberdade e o determinismo social se interpenetram, se completam, se implicam e se polarizam se diversas maneiras. As mais concretas manifestações da liberdade colectiva como da liberdade individual são as revoltas e revoluções, que podem triunfar ou fracassar. mas que em qualquer das hipóteses, não têm nada a ver com o progresso automático e não oferecem a mínima segurança contra possibilidades de decadência e de degenerescência. O movimento dialéctico entre a liberdade e o determinismo na realidade social, revela que esta não pode existir sem as acções, os esforços, as lutas incessantes que continuamente rompem os equilíbrios.
Seja como for, Marx faz mal em ver em Proudhon "um cavaleiro do livre arbítrio" abstracto, quando afinal Proudhon procura precisamente estudar o funcionamento da liberdade humana na realidade social. O que é verdade é que a sua dialéctica o conduz a destacar as limitações do determinismo sociológico com muito mais ênfase.
O outro aspecto da realidade social compreende, portanto, as ideias e os valores colectivos, logo os ideais fundados na afectividade; unidos à ideia de justiça, estas ideias ajudam a reforçar a energia revolucionária; sem a primeira, são unicamente "fermentos da decadência".
Deste ponto de vista, a dialéctica de Proudhon é mais realista que a de Marx, pois na sua procura dos equilíbrios variados entre as antinomias, mesmo na sociedade futura, pressupõe sempre uma instabilidade desta, isto é, novos problemas a resolver, problemas aliás imprevisíveis.
É também em De La Justice... que Proudhon mais claramente expõe a complexidade do movimento dialéctico real em que forças colectivas, acção, trabalho, direito, regulamentações sociais, justiça, ideias e ideais, razão colectiva se encontram num processo de interpenetrações variadas, que passam pela complementaridade, pela implicação mútua, pela polarização em antinomias e pela reciprocidade de perspectivas; um estudo desta ordem exige a aplicação dos processos correspondentes do método dialéctico. Se acrescentarmos que a tese pragmatista de Proudhon, segundo a qual a ideia nasce da acção e deve voltar à acção, à falta do que degenera, está concebida de uma forma dialéctica, damo-nos conta da riqueza de perspectivas que Proudhon abriu embora nem sempre as tenha prosseguido, ou sequer tido consciência de todas as consequências que daí poderiam advir.
A orientação da dialéctica proudhoniana para o realismo e para a experiência recebe uma confirmação em La Guerre et la Paix (1861). Segundo Proudhon, a guerra não seria mais que o termo genérico que designa tudo o que é luta, acção, virilidade, sem o que a vida social é impossível, como são impossíveis em particular a revolução e o trabalho. Nas diferentes formas de regime capitalista, a guerra (ou luta de classes) é simultaneamente externa e interna. No regime de "democracia industrial" ela adquire o carácter de tensões e de equilíbrios entre o Estado e a democracia industrial planificando a economia de uma forma descentralizada. O mesmo acontece entre as empresas e as profissões que mesmo no regime do colectivismo descentralizado se encontram em competição de produtividade. A guerra muda de carácter, mas não desaparece.
Porém, embora mantendo estas posições em Le Principe Fédératif (1863) e na obra póstuma Théorie de la Propriété (1866) Proudhon não resiste à tentação de utilizar a sua dialéctica para chegar a equilíbrios racionais, mais estabilizados, correspondentes ao seu ideal social. Insiste mais uma vez, é verdade, sobre o facto de que o mundo social e o mundo moral... repousam numa pluralidade de elementos irredutíveis..." Melhor ainda, sublinha a contestação de que o método dialéctico, na variedade dos seus processos, é chamando a seguir as sinuosidades das tensões entre os grupos, as profissões, as comunas livres e sobretudo entre o Estado e a sociedade económica, mesmo quando esta toma o carácter de uma democracia industrial e do colectivismo descentralizado depois da revolução social. O "choque de poderes de que se pode abusar" permanece portanto válido para um Estado transformado e para uma propriedade federativa atribuída a uma organização económica planificada autónoma, depois da desaparição do patronato. Se quisermos evitar nova servidão, é preciso opor um conjunto ao outro. A liberdade religiosas só pode ser adquirida graças a uma pluralidade de Igrejas que vieram limitar o Estado. E, para Proudhon, o caminho a tomar para combater, na sociedade de amanhã, as tendências para o estatismo económico por um lado, para a anarquia económica por outro, é o mesmo.
Segundo Proudhon, a única solução para por definitivamente termo à servidão humana, é o federalismo, que significa igualmente a finalidade da dialéctica, não só enquanto movimento real da sociedade como enquanto método. Este federalismo político é concebido simultaneamente como federalismo político que equilibra o Estado do interior, e como federalismo económico que reforça a unidade da sociedade planificada, sendo esta fundada numa propriedade federalizada que pertence simultaneamente ao conjunto da sociedade económica, a cada região, a cada empresa, e a cada trabalhador. É assim que as antinomias em busca do seu equilíbrio acabam sempre por predominar sobre as complementaridades, as implicações mútuas e as reciprocidades de perspectivas.
A razão colectiva revela "que a sociedade, o ser moral por excelência, difere essencialmente dos seres vivos individuais em que a subordinação dos orgãos é a própria lei da existência. Eis porque à sociedade repugna qualquer ideia de hierarquia, como o dá a entender a expressão: Todos os homens são iguais em dignidade por natureza e devem tornar-se iguais do ponto de vista das sua condições e da sua dignidade."
Experimenta-se uma certa inquietação e alguma perplexidade perante esta conclusão da dialéctica proudhoniana, cujo movimento complexo se encontra ameaçado pelos equilíbrios que nem sempre evitam uma certa estabilização racionalizada no federalismo. Mas, para sermos justos para com Proudhon, é necessário reconhecer que se esta orientação dogmática da sua dialéctica dos diversos aspectos da realidade social, da propriedade, da liberdade, da liberdade e do determinismo, das revoluções, da luta de classes, todas estas dialécticas estão presentes em todas as obras de Proudhon da primeira à última - De La Capacité Politique des Classes Ouvrières. Nesta obra Proudhon apela para a energia revolucionária e para a força criadora desta classe para a construção de uma democracia industrial.
Deve-se pois louvar Proudhon por ter enriquecido a realidade social e por ter insistido no facto de esta compreender não só forças colectivas, mas igualmente regulamentações sociais procedentes destas forças que se encontram em múltiplas relações dialécticas cuja complexidade Proudhon pressente. Estes múltiplos movimentos dialécticos estão bastante afastados dos "equilíbrios" mais ou menos artificiais, e correspondem melhor aos dramas efectivos que se desenrolam na realidade social.
Falta-nos agora resumir as nossas críticas da dialéctica proudhoniana. Temos de constatar antes de mais que apesar do carácter negativo que apresenta, esta dialéctica complexa e autêntica é uma dialéctica ascendente. E é no sentido em que abre uma via que, segundo Proudhon, conduz à possibilidade de realizar um ideal social preciso: libertar o homem, os grupos e a sociedade inteira graças ao estabelecimento de um estrutura pluralista e federalista, em que a democracia política e a democracia industrial se limitem e se completem, e em que a justiça e o direito triunfem sobre o poder e sobre todas a s outras regulamentações sociais, segundo o próprio Proudhon, esta dialéctica não faz senão abrir o caminho à intervenção da liberdade humana criadora e implica o risco de lutas renhidas, de revelações que podem fracassar e degenerar. Só podemos admirar Proudhon por estas reservas realistas mas temos de constatar que apesar de todos os esforços não evita o perigo da dialéctica ascendente sem a qual a intervenção da liberdade colectiva e das revoluções lhe parece impossível. Ora, parece-nos legítimo perguntar se uma dialéctica pode ser ascendente, sem que se pressuponha, prévia e independentemente de qualquer dialéctica, uma escala de valores estável, tal como a da liberdade colectiva, que predomine sobre o determinismo. Por outras palavras, as pressuposições dogmáticas serão inevitáveis antes do recurso à dialéctica?
Do ponto de vista do método, uma dialéctica consequentemente negativa só pode ser entendida como uma permanente depuração dos conceitos, que conduza à extinção destes e a esforços sempre renovados para penetrar nas profundezas do real. Neste sentido, a dialéctica só pode conduzir a novas experiências. Quer se trate do movimento dialéctico real, ou do método dialéctico, não é por meio da dialéctica que se pode chegar a uma vida social melhor. A dialéctica só pode servir para mostrar as falhas do determinismo sociológico em particular, falas essas que oferecem à liberdade humana a ocasião de penetrar na realidade social.
A dialéctica proudhoniana é apologética. É a apologia dos equilíbrios "da oscilação" das antinomias, da integração destas em conjuntos não hierárquicos, da equivalência das forças colectivas, dos valores transpessoais e pessoais, da liberdade dos indivíduos e dos grupos, dos diferentes géneros de federalismo, da co-propriedade federalista ao mesmo tempo colectiva e individual, da democracia industrial, da democracia industrial e política. Ora, todos estas técnicas de organização (que podem ser válidas para estruturas ou conjunturas sociais) não são o resultado de uma análise dialéctica imparcial, destinada a demolir todos os dogmatismos e a relativizar todos os dados, todos os princípios e todas as técnicas. São aceites por Proudhon antes de toda a dialéctica. Muitas vezes, esta serve apenas para os expor, para os tornar explícitos e para os justificar. É assim que, apesar do esforço que faz para tornar a sua dialéctica tão complexa, relativista e diversificada como a realidade social em todas as suas sinuosidades, não evita o escolho do demasiado bem equilibrado , do demasiado bem organizado, do demasiado bem integrado pois que pré concebido. Na dialéctica proudhoniana, a luta desesperada entre o apologético e o empírico acaba com a vitória, embora precária, do apologético.
A última crítica que fazemos a Proudhon diz respeito à inflação das antinomias, nascida não só da confusão entre contraditórias e contrários, como da confusão entre antinomia e tensão. Esta inflação é tanto mais flagrante e processos dialécticos. Quando opõe, como antinómicos, a sociedade e a propriedade privada, o maquinismo e a concorrência, o Estado e a sociedade económica, as forças colectivas e a razão colectiva, a justiça e o ideal, o poder e o direito, a liberdade humana e o determinismo social, encaminha-se no sentido da polarização de elementos que podem ser complementares, mutuamente implicados ou levados à reciprocidade de perspectivas, mais do que contrários ou, e sobretudo, antinómicos.
Em determinadas fases do capitalismo, o maquinismo e a concorrência por exemplo, não são contraditórios, mas complementares. Do mesmo modo, o Estado e a sociedade económica tanto podem polarizar-se como completar-se, implicar-se mutuamente como entrar em reciprocidade de perspectivas. As forças colectivas e as consciência colectiva só são contraditórias enquanto o trabalho não começar a desalienar-se. Os restantes aspectos da realidade social tendem de preferência para relações de implicação mútua, de ambiguidade, de complementaridade ou de reciprocidade de perspectivas. O poder e o direito são muito mais vezes contrários do que contraditórios e podem achar-se em relações de implicação mútua. O mesmo acontece, e ainda com mais evidência, com o determinismo social e com a liberdade humana, que comportam numerosos graus e em que diversos cambiantes dialécticos são possíveis. A inflação das antinomias e as polarizações representam um sério obstáculo ao triunfo das visões mais profundas de Proudhon. Este pluralista não soube levar à multiplicidade das aspectos do movimento dialéctico real e dos processos dialécticos necessários para lhes seguir os meandros. Assim, a dialéctica de Proudhon acha-se por vezes estranhamente desarmada para penetrar nas profundezas da realidade social, e em particular na dimensão histórica desta. É nisto que residem os limites da dialéctica proudhoniana.
A doutrina social de Proudhon exerceu contudo grande influência na Primeira Internacional, na Comuna de 1871 e, por intermédio do sindicalismo revolucionário, no movimento sindical francês do começo do século XX. Aqui está a prova de que a sua dialéctica tem méritos incontestáveis e de que, apesar de algumas inconsequências, foi muito mais realista do que muitas vezes se pode pensar.
Vamos empreender uma análise sobre a concepção de dialéctica de Proudhon. Proudhon é extremamente hostil à dialéctica hegeliana. Critica-a não só no fundo como nas aplicações. Claramente formulada nas obras de maturidade, toda a obra de Proudhon está de facto impregnada desta hostilidade. "A antinomia não se resolve; é nisto que reside o vício fundamental de toda a filosofia hegeliana. Os dois termos que compõem a antinomia oscilam, quer entre si, quer entre outros termos antinómicos; o que conduz a novos resultados" (De la Justice dans la Révolution et dans l'Église - vol.IV, 1858, p.148) "Os termos antinómicos não se resolvem, como os pólos opostos de um pilha eléctrica não se destroem. O problema não está em encontrar a fusão deles que seria a sua morte, mas o seu equilíbrio sempre instável, variável segundo o próprio desenvolvimento da sociedade" (Théorie de la Propriété, 1865, p.52) "O equilíbrio instável entre os dois termos, não nasce de um terceiro, mas da sua acção recíproca." Numa palavra, "a fórmula hegeliana só é uma tríade por prazer ou erro do Mestre, que se vê três termos onde só existem dois e que não viu que a antinomia não se resolve, mas que implica quer uma oscilação quer um antagonismo, os únicos susceptíveis de equilíbrios. Deste ponto de vista, todos o sistema de Hegel deveria ser refeito." ( De la Justice dans la Révolution et dans l'Église, 1958, Vol.I, pp. 28-29).
A Síntese de Hegel, "suprimindo" e mantendo simultaneamente a tese e a antítese (aufheben: eis o erro dos tradutores utilizados por Proudhon que escrevem também "absorvendo") é governamental. É, acrescenta Proudhon com muito mais subtileza, "anterior e superior aos termos que une". É ela, escreve, que conduz Hegel "à prepotência do Estado" e "ao restabelecimento da autoridade" (La Pornocratie, 1875). "Hegel chegava com Hobbes ao absolutismo governamental, à omnipotência do Estado, à subalternização dos indivíduos e dos grupos. Pergunto-me se, devido a esta faceta da sua filosofia, Hegel conservou um único partidário na Alemanha. Mas posso dizer que falar assim... é desonrar a filosofia." (Guerre et Paix, 1861).
À dialéctica hegeliana, Proudhon opõe outra, a sua. Esta não é apenas uma dialéctica antinómica, negativa, antitética, que rejeite qualquer síntese; é um método dialéctico que se propõe procurar a diversidade em todos os seus pormenores. Ora a diversidade em todos os seus pormenores só pode ser captada pela experiência. Neste sentido, o método proudhoniano aproxima-se duma dialéctica empírico realista. Em Proudhon o método dialéctico conduz a uma experiência sempre renovada, lança-se num pluralismo que neste autor é sempre mais realista. Por etapas e com uma clareza crescente, Proudhon faz notar que o movimento dialéctico começa por ser o movimento da própria realidade social e só depois um método para seguir as sinuosidades deste movimento. Tem cada vez mais consciência de que as complementaridades, as implicações mútuas e as reciprocidades de perspectivas são tão reais como as polarizações e tão indispensáveis como processos dialécticos, como o estabelecimento de antinomias.
Mas o empirismo e o realismo dialécticos de Proudhon têm limites. É que, através da sua dialéctica, procura "a reconciliação universal pela contradição universal" e esta reconciliação efectua-se através de equilíbrios. Apesar do reconhecimento da sua instabilidade e da implicação de esforços sempre novos, as antinomias vão-se completando e equilibrando, por vezes demasiado facilmente, encobrindo amiúde, pela sua inflação, os outros movimentos e processos dialécticos.
Assim, apesar de todos os pressentimentos que Proudhon tem da extrema complexidade do movimento próprio à realidade social e da pluralidade dos processos dialécticos necessários para a estudar, na sua variedade e diversidade, não evita o seguinte erro: a sua dialéctica cai por vezes num pluralismo de tal maneira bem ordenado, bem integrado, bem equilibrado que se admite que essa integração e esse equilíbrio tenham sido pré concebidos.
Logo na primeira obra que escreve, De la Célabration du Dimanche de 1839, Proudhon declara que o seu método consiste em "procurar equilíbrios na diversidade", que este método se propõe por a nu todas as diversidades efectivas e, após ter desenvolvido mais esta descrição, estudar a possibilidade de integrar estas diversidades em conjuntos, em totalidades, também múltiplas, mas em que pudessem equilibrar-se as diversidades do mesmo tipo, Isto conduz por um lado a totalidades não hierárquicas, donde é excluída qualquer "subalternização dos elementos componentes", e por outro, a pluralidade de totalidades entre as quais podem igualmente ser procurados equilíbrios.
Esta tese encontra-se desenvolvida com mais precisão em La Création de l'Ordre dans l'Humanité. Nessa obra, Proudhon fala da "intuição das diversidades e das totalizações na sua divisão. Estas diversidades e estas "totalizações são irredutíveis. Existe uma independência das diversas ordens de série e a impossibilidade de uma ciência universal...
Impõe-se a multiplicidade dos pontos de vista como na realidade social se impõe a multiplicidade dos grupos e a pluralidade dos conjuntos sociais em que estes estão integrados. "Resolver a diversidade actual numa identidade, é abandonar a questão", o que fizeram Schelling e Hegel.
A procura das diversidades e integração destas em totalidades em que se equilibrem poderia evocar o pan harmonismo de Leibniz, cuja dialéctica se reduzia ao estudo da "unidade numa variedade tão vasta quanto possível". De facto, Krause e Ahrens (de quem Darimon, um amigo de Proudhon, foi discípulo) concebiam o método dialéctico como uma "via ascendente de análise que termina por um conhecimento de totalidades das variedades." Mas Proudhon que conhece Leibniz e muitas vezes o cita, toma todas as precauções necessárias, tanto em La Création de l'Ordre como em De la Justice, para opor a sua dialéctica, que concebe simultaneamente como movimento da realidade social e como método, a todo e qualquer harmonismo. Protesta contra a ideia leibniziana de uma ordem transcendente e contra a ideia optimista de uma harmonia pré-estabelecida entre nómadas irredutíveis. "A ordem", ou mais exactamente, a coerência na multiplicidade dos conjuntos, só se realiza graças a esforços penosos da humanidade e através das antinomias de grupos e de classes. Um dos principais aspectos dessa luta prometeica consiste no facto de "a marcha da sociedade se medir sobre o desenvolvimento da indústria e sobre o aperfeiçoamento dos instrumentos".
Segundo as observações de Proudhon em De la Justice..., o que falta a Leibniz não é apenas a pluralidade efectiva dos conjuntos e a marca humana que estes possuem, são igualmente as antinomias insolúveis, as únicas que podem conduzir à verdadeira irrefutabilidade e a um pluralismo consequente.
A dialéctica proudhoniana precisa-se melhor nos dois volumes das Contradictions Economiques (1846). Proudhon começa por se esforçar para tornar esta dialéctica tão realista quanto possível. O método das antinomias deve ser aplicado não só às doutrinas e às ideias, mas ainda com muito mais cabimento às realidades sociais que as engendram e que estão elas próprias em movimento dialéctico, o que se verifica sobretudo nas usa manifestações económicas. Já no Premier Mémoire sur la Propriété, Proudhon insistia na impossibilidade de se compreender a vida económica sem se seguir o movimento dialéctico real desta. Recordemos as fórmulas de Proudhon: " A propriedade é o produto espontâneo da sociedade e a dissolução da sociedade... A propriedade é o preço do trabalho e a negação do trabalho... A propriedade é a liberdade, a propriedade é o roubo." Acontece portanto com a propriedade o que acontece com o Estado: encarados fora de um quadro social preciso, são apenas abstracções perniciosas que prejudicam o homem, os grupos, as classes e as sociedades e os conduzem a alienações; encarados como elementos relativos e móveis, no seio de um conjunto social em movimento, encontram-se em perpétua transformação e podem modificar-se inteiramente e participar em equilíbrios imprevistos.
Um outro aspecto do movimento dialéctico próprio à realidade social é das forças colectivas. Estas forças colectivas são irredutíveis às forças individuais assim como à soma destas últimas, pois os esforços interpenetrados num grupo, numa classe ou numa sociedade produzem forças centuplicadas. Ora, estas forças colectivas podem tornar-se destruidoras, opressivas e ameaçar a existência da própria sociedade e sobretudo a força criadora deste. Só pela afirmação do elemento antinómico constituído pela "razão colectiva", que dirige as forças colectivas e luta contra aos abusos destas, estas forças se tornam forças produtivas e criadoras. Mas a própria razão colectiva, desligada das forças colectivas, não passa de uma quimera ainda mais perigosa que a razão individual. Além disso estabelece-se uma dialéctica entre a "razão colectiva" e as ideias e ideais colectivos assim como entre a "consciência colectiva" e a "razão colectiva", facto de que Proudhon não se dá conta. É o movimento dialéctico entre as forças colectivas. as ideias e os ideais colectivos, as suas interpenetrações e lutas constantemente renovadas, o seu processo de "totalização" enfim, que constituem a trama efectiva da realidade social, cuja dialéctica não se reduz de modo algum, apenas às antinomias. A realidade social não se reduz unicamente ao jogo das forças colectivas - pois as forças colectivas podem criar ideais e valores que nelas se integram, tornando-se então capazes de as guiar. Este é em particular o caso do trabalho colectivo na sua luta contra a alienação.
A dialéctica entre forças colectivas, razão colectiva, ideias e ideais colectivos realiza-se no esforço colectivo produtivo e criador que se manifesta particularmente no trabalho e no movimento deste para a desalienação. O mito de Prometeu, a que Proudhon recorre insistentemente, não só em Les Contradictions Économiques como em De la Justice..., aplica-se essencialmente à dialéctica do trabalho que é segundo as circunstâncias, a maior alegria e o maior dos sofrimentos; porque o trabalho é simultaneamente o instrumento da libertação do homem e a ameaça constante da servidão deste. É por isso imensamente doloroso que o esforço de Prometeu seja o símbolo do trabalho. No trabalho, o homem é demiurgo. "O trabalho, análogo à actividade criadora, é a emissão do espírito..., é o grande triunfo da liberdade." Por outro lado, o trabalho torna-se pena sem limites quando é inteiramente escravizado e alienado.
A alienação ameaça constantemente o trabalho. Esta ameaça é tanto mais pesada quanto o homem "morre devido ao trabalho", porque "trabalhar é ganhar a vida", e a alegria que o trabalho procura nunca é inteiramente pura. A dialéctica inerente ao trabalho torna-se trágica quando "a organização do trabalho" é imposta de cima aos trabalhadores, quer através da vontade de proprietários ociosos (feudais e padres), quer pela de patrões e pelas coligações destes (feudalidade industrial) ou pela do Estado e dos seus funcionários (burocratas). As antinomias próprias ao trabalho não podem ser inteiramente resolvidas, mas a resolução social pode tirar-lhes o que têm de particularmente intolerável, instituindo a autogestão operária, fundamento da democracia industrial destinada a, de uma forma descentralizada, planificar a economia e, assim, a limitar o Estado completamente transformado.
Proudhon certamente, pensa demasiado como jurista: na engrenagem da realidade social atribui um papel demasiado importante ao direito, em especial, por um lado ao direito igualitário e mutualista, por outro, ao direito social autónomo e de preferência espontâneo. Opõe-os ao direito individualista e ao direito estatal, derivados do direito romano tradicional.
O movimento dialéctico real da sociedade, da economia e do trabalho exige um método, não só para estudar estas realidades em todas as suas sinuosidades, mas também para combater os erros doutrinais que são comuns ao individualismo da economia política clássica e ao estatismo económico. Os extremos tocam-se, observa Proudhon. O individualismo e o estatismo acabam por chegar aos mesmos resultados e partem das mesmas premissas. O estatismo hegeliano e estatismo comunista (Proudhon refere-se, aos partidários "da comunidade dos bens" do seu tempo) dissolvem a sociedade no Estado, fazendo desaparecer a diversidade «numa unidade transcendente, a pluralidade dos grupos, na centralização. Assim, acabamos por ver apenas nas comunidades sociais um indivíduo em ponto grande. Só se distinguem do individualismo porque aumentam o tamanho do indivíduo. Dado que a vontade do Estado substitui os laços sociais, o estatismo económico é apenas um super individualismo.
A mesma demonstração é válida para o individualismo. Este esquece que "fora da sociedade, o homem é uma matéria explorável, um instrumento, por vezes um móvel incómodo e inútil, mas não uma pessoa." Assim, o individualismo, "pronto a tudo sacrificar à pessoa, mata-a de facto e chega aos mesmos resultados que o estatismo", que é a condenação irrevogável de ambos. Só a dialéctica, revelando a incapacidade dos dois adversários para captar as totalidades sociais reais, consegue fazer ressaltar este facto. É também ela que torna manifesto "que a negação sistemática da propriedade foi concebida sob a influência directa do preconceito da propriedade e é a propriedade que está na base de todas a s teorias comunistas." Recordemos as fórmulas de Proudhon: "O proprietário- Estado não tem alma nem coração. É um ser fantasmagórico, inflexível, que age dentro do círculo da sua ideia como a mó esmaga o grão no seu movimento." "É o monopólio elevado à segunda potência." "Não se remedeia a raiva fazendo com que todos mordam... Também não é tornando-se propriedade do Estado que a propriedade se torna social." Lutando contra estas concepções erradas, a dialéctica revela a identidade dos termos seguintes: propriedade absoluta, poder ilimitado, ditadura. " O estatismo económico é a glorificação da polícia."
Resumindo, o método dialéctico não serve apenas para revelar a ligação entre as antinomias e, assim, a diversidade das totalidades sociais reais e a dos elementos que nelas estão integrados. Permite igualmente revelar algumas ilusões, isto é, mostrar que existem contradições que são apenas aparentes e não reais, como por exemplo a oposição entre individualismo e estatismo.
Podemos acusar as análises de Proudhon por terem um carácter demasiado rígido, demasiado abstracto. Nem sempre precisa bem em que quadros sociais concretos o problema da estatização da economia se coloca, problema esse que pode ter sentidos diferentes, e em certos casos, representar apenas uma etapa, Por outro lado, as análises de Proudhon carecem por vezes da dimensão histórica. Por exemplo, o capitalismo de Estado, a tecnocracia e o comunismo não são diferenciados, o que provocou a observação irritada de Marx em que este diz que "Proudhon só vê, nas relações sociais reais, princípios, categorias." No que respeita a discussão das diferentes doutrinas contida em Contradictions Économiques, esta crítica só é exacta parcialmente, mas é totalmente injusta no que refere ao conjunto do pensamento de Proudhon. Este concebe a dialéctica não só como movimento real da sociedade mas como método. E melhor, como já sabemos, não seduz a dialéctica às antinomias, mas entrevê igualmente as complementaridades, as implicações mútuas e as reciprocidades de perspectivas.
A nossa interpretação confirma-se em De la Justice... (1858) e em Guerre et Paix (1861). A primeira destas duas obras pode levar a temer que Proudhon tenha abandonado a dialéctica em favor de um racionalismo da Justiça. Temor perfeitamente injustificado; aliás, é precisamente nesta obra que como já vimos a dialéctica de Proudhon se orienta não só no sentido de um realismo e de um empirismo mais aprofundados, assim como na via da superação da redução da dialéctica às antinomias. Muito antes de Marx, Proudhon relaciona a dialéctica com a prática social e liga-a ao pragmatismo, não como doutrina, mas enquanto manifestação da vida social quotidiana. É a prática do trabalho e a prática revolucionária que afinal se revelam como sendo o centro do movimento dialéctico real, e suscitam a interpretação da dialéctica enquanto método que conduz a experiências sempre renovadas. A dialéctica proudhoniana prova que, na realidade social, a liberdade e o determinismo social se interpenetram, se completam, se implicam e se polarizam se diversas maneiras. As mais concretas manifestações da liberdade colectiva como da liberdade individual são as revoltas e revoluções, que podem triunfar ou fracassar. mas que em qualquer das hipóteses, não têm nada a ver com o progresso automático e não oferecem a mínima segurança contra possibilidades de decadência e de degenerescência. O movimento dialéctico entre a liberdade e o determinismo na realidade social, revela que esta não pode existir sem as acções, os esforços, as lutas incessantes que continuamente rompem os equilíbrios.
Seja como for, Marx faz mal em ver em Proudhon "um cavaleiro do livre arbítrio" abstracto, quando afinal Proudhon procura precisamente estudar o funcionamento da liberdade humana na realidade social. O que é verdade é que a sua dialéctica o conduz a destacar as limitações do determinismo sociológico com muito mais ênfase.
O outro aspecto da realidade social compreende, portanto, as ideias e os valores colectivos, logo os ideais fundados na afectividade; unidos à ideia de justiça, estas ideias ajudam a reforçar a energia revolucionária; sem a primeira, são unicamente "fermentos da decadência".
Deste ponto de vista, a dialéctica de Proudhon é mais realista que a de Marx, pois na sua procura dos equilíbrios variados entre as antinomias, mesmo na sociedade futura, pressupõe sempre uma instabilidade desta, isto é, novos problemas a resolver, problemas aliás imprevisíveis.
É também em De La Justice... que Proudhon mais claramente expõe a complexidade do movimento dialéctico real em que forças colectivas, acção, trabalho, direito, regulamentações sociais, justiça, ideias e ideais, razão colectiva se encontram num processo de interpenetrações variadas, que passam pela complementaridade, pela implicação mútua, pela polarização em antinomias e pela reciprocidade de perspectivas; um estudo desta ordem exige a aplicação dos processos correspondentes do método dialéctico. Se acrescentarmos que a tese pragmatista de Proudhon, segundo a qual a ideia nasce da acção e deve voltar à acção, à falta do que degenera, está concebida de uma forma dialéctica, damo-nos conta da riqueza de perspectivas que Proudhon abriu embora nem sempre as tenha prosseguido, ou sequer tido consciência de todas as consequências que daí poderiam advir.
A orientação da dialéctica proudhoniana para o realismo e para a experiência recebe uma confirmação em La Guerre et la Paix (1861). Segundo Proudhon, a guerra não seria mais que o termo genérico que designa tudo o que é luta, acção, virilidade, sem o que a vida social é impossível, como são impossíveis em particular a revolução e o trabalho. Nas diferentes formas de regime capitalista, a guerra (ou luta de classes) é simultaneamente externa e interna. No regime de "democracia industrial" ela adquire o carácter de tensões e de equilíbrios entre o Estado e a democracia industrial planificando a economia de uma forma descentralizada. O mesmo acontece entre as empresas e as profissões que mesmo no regime do colectivismo descentralizado se encontram em competição de produtividade. A guerra muda de carácter, mas não desaparece.
Porém, embora mantendo estas posições em Le Principe Fédératif (1863) e na obra póstuma Théorie de la Propriété (1866) Proudhon não resiste à tentação de utilizar a sua dialéctica para chegar a equilíbrios racionais, mais estabilizados, correspondentes ao seu ideal social. Insiste mais uma vez, é verdade, sobre o facto de que o mundo social e o mundo moral... repousam numa pluralidade de elementos irredutíveis..." Melhor ainda, sublinha a contestação de que o método dialéctico, na variedade dos seus processos, é chamando a seguir as sinuosidades das tensões entre os grupos, as profissões, as comunas livres e sobretudo entre o Estado e a sociedade económica, mesmo quando esta toma o carácter de uma democracia industrial e do colectivismo descentralizado depois da revolução social. O "choque de poderes de que se pode abusar" permanece portanto válido para um Estado transformado e para uma propriedade federativa atribuída a uma organização económica planificada autónoma, depois da desaparição do patronato. Se quisermos evitar nova servidão, é preciso opor um conjunto ao outro. A liberdade religiosas só pode ser adquirida graças a uma pluralidade de Igrejas que vieram limitar o Estado. E, para Proudhon, o caminho a tomar para combater, na sociedade de amanhã, as tendências para o estatismo económico por um lado, para a anarquia económica por outro, é o mesmo.
Segundo Proudhon, a única solução para por definitivamente termo à servidão humana, é o federalismo, que significa igualmente a finalidade da dialéctica, não só enquanto movimento real da sociedade como enquanto método. Este federalismo político é concebido simultaneamente como federalismo político que equilibra o Estado do interior, e como federalismo económico que reforça a unidade da sociedade planificada, sendo esta fundada numa propriedade federalizada que pertence simultaneamente ao conjunto da sociedade económica, a cada região, a cada empresa, e a cada trabalhador. É assim que as antinomias em busca do seu equilíbrio acabam sempre por predominar sobre as complementaridades, as implicações mútuas e as reciprocidades de perspectivas.
A razão colectiva revela "que a sociedade, o ser moral por excelência, difere essencialmente dos seres vivos individuais em que a subordinação dos orgãos é a própria lei da existência. Eis porque à sociedade repugna qualquer ideia de hierarquia, como o dá a entender a expressão: Todos os homens são iguais em dignidade por natureza e devem tornar-se iguais do ponto de vista das sua condições e da sua dignidade."
Experimenta-se uma certa inquietação e alguma perplexidade perante esta conclusão da dialéctica proudhoniana, cujo movimento complexo se encontra ameaçado pelos equilíbrios que nem sempre evitam uma certa estabilização racionalizada no federalismo. Mas, para sermos justos para com Proudhon, é necessário reconhecer que se esta orientação dogmática da sua dialéctica dos diversos aspectos da realidade social, da propriedade, da liberdade, da liberdade e do determinismo, das revoluções, da luta de classes, todas estas dialécticas estão presentes em todas as obras de Proudhon da primeira à última - De La Capacité Politique des Classes Ouvrières. Nesta obra Proudhon apela para a energia revolucionária e para a força criadora desta classe para a construção de uma democracia industrial.
Deve-se pois louvar Proudhon por ter enriquecido a realidade social e por ter insistido no facto de esta compreender não só forças colectivas, mas igualmente regulamentações sociais procedentes destas forças que se encontram em múltiplas relações dialécticas cuja complexidade Proudhon pressente. Estes múltiplos movimentos dialécticos estão bastante afastados dos "equilíbrios" mais ou menos artificiais, e correspondem melhor aos dramas efectivos que se desenrolam na realidade social.
Falta-nos agora resumir as nossas críticas da dialéctica proudhoniana. Temos de constatar antes de mais que apesar do carácter negativo que apresenta, esta dialéctica complexa e autêntica é uma dialéctica ascendente. E é no sentido em que abre uma via que, segundo Proudhon, conduz à possibilidade de realizar um ideal social preciso: libertar o homem, os grupos e a sociedade inteira graças ao estabelecimento de um estrutura pluralista e federalista, em que a democracia política e a democracia industrial se limitem e se completem, e em que a justiça e o direito triunfem sobre o poder e sobre todas a s outras regulamentações sociais, segundo o próprio Proudhon, esta dialéctica não faz senão abrir o caminho à intervenção da liberdade humana criadora e implica o risco de lutas renhidas, de revelações que podem fracassar e degenerar. Só podemos admirar Proudhon por estas reservas realistas mas temos de constatar que apesar de todos os esforços não evita o perigo da dialéctica ascendente sem a qual a intervenção da liberdade colectiva e das revoluções lhe parece impossível. Ora, parece-nos legítimo perguntar se uma dialéctica pode ser ascendente, sem que se pressuponha, prévia e independentemente de qualquer dialéctica, uma escala de valores estável, tal como a da liberdade colectiva, que predomine sobre o determinismo. Por outras palavras, as pressuposições dogmáticas serão inevitáveis antes do recurso à dialéctica?
Do ponto de vista do método, uma dialéctica consequentemente negativa só pode ser entendida como uma permanente depuração dos conceitos, que conduza à extinção destes e a esforços sempre renovados para penetrar nas profundezas do real. Neste sentido, a dialéctica só pode conduzir a novas experiências. Quer se trate do movimento dialéctico real, ou do método dialéctico, não é por meio da dialéctica que se pode chegar a uma vida social melhor. A dialéctica só pode servir para mostrar as falhas do determinismo sociológico em particular, falas essas que oferecem à liberdade humana a ocasião de penetrar na realidade social.
A dialéctica proudhoniana é apologética. É a apologia dos equilíbrios "da oscilação" das antinomias, da integração destas em conjuntos não hierárquicos, da equivalência das forças colectivas, dos valores transpessoais e pessoais, da liberdade dos indivíduos e dos grupos, dos diferentes géneros de federalismo, da co-propriedade federalista ao mesmo tempo colectiva e individual, da democracia industrial, da democracia industrial e política. Ora, todos estas técnicas de organização (que podem ser válidas para estruturas ou conjunturas sociais) não são o resultado de uma análise dialéctica imparcial, destinada a demolir todos os dogmatismos e a relativizar todos os dados, todos os princípios e todas as técnicas. São aceites por Proudhon antes de toda a dialéctica. Muitas vezes, esta serve apenas para os expor, para os tornar explícitos e para os justificar. É assim que, apesar do esforço que faz para tornar a sua dialéctica tão complexa, relativista e diversificada como a realidade social em todas as suas sinuosidades, não evita o escolho do demasiado bem equilibrado , do demasiado bem organizado, do demasiado bem integrado pois que pré concebido. Na dialéctica proudhoniana, a luta desesperada entre o apologético e o empírico acaba com a vitória, embora precária, do apologético.
A última crítica que fazemos a Proudhon diz respeito à inflação das antinomias, nascida não só da confusão entre contraditórias e contrários, como da confusão entre antinomia e tensão. Esta inflação é tanto mais flagrante e processos dialécticos. Quando opõe, como antinómicos, a sociedade e a propriedade privada, o maquinismo e a concorrência, o Estado e a sociedade económica, as forças colectivas e a razão colectiva, a justiça e o ideal, o poder e o direito, a liberdade humana e o determinismo social, encaminha-se no sentido da polarização de elementos que podem ser complementares, mutuamente implicados ou levados à reciprocidade de perspectivas, mais do que contrários ou, e sobretudo, antinómicos.
Em determinadas fases do capitalismo, o maquinismo e a concorrência por exemplo, não são contraditórios, mas complementares. Do mesmo modo, o Estado e a sociedade económica tanto podem polarizar-se como completar-se, implicar-se mutuamente como entrar em reciprocidade de perspectivas. As forças colectivas e as consciência colectiva só são contraditórias enquanto o trabalho não começar a desalienar-se. Os restantes aspectos da realidade social tendem de preferência para relações de implicação mútua, de ambiguidade, de complementaridade ou de reciprocidade de perspectivas. O poder e o direito são muito mais vezes contrários do que contraditórios e podem achar-se em relações de implicação mútua. O mesmo acontece, e ainda com mais evidência, com o determinismo social e com a liberdade humana, que comportam numerosos graus e em que diversos cambiantes dialécticos são possíveis. A inflação das antinomias e as polarizações representam um sério obstáculo ao triunfo das visões mais profundas de Proudhon. Este pluralista não soube levar à multiplicidade das aspectos do movimento dialéctico real e dos processos dialécticos necessários para lhes seguir os meandros. Assim, a dialéctica de Proudhon acha-se por vezes estranhamente desarmada para penetrar nas profundezas da realidade social, e em particular na dimensão histórica desta. É nisto que residem os limites da dialéctica proudhoniana.
A doutrina social de Proudhon exerceu contudo grande influência na Primeira Internacional, na Comuna de 1871 e, por intermédio do sindicalismo revolucionário, no movimento sindical francês do começo do século XX. Aqui está a prova de que a sua dialéctica tem méritos incontestáveis e de que, apesar de algumas inconsequências, foi muito mais realista do que muitas vezes se pode pensar.
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