O Antagonismo de Classes no Seio da Grande Revolução
Os homens dos finais do século XX acabaram de fazer duzentos anos de idade. Se para a duração média em termos físicos, da vida de cada um de nós, é muito tempo, no conjunto da história da humanidade mesmo se tomarmos em conta só o período a partir da consciencialização racional da realidade que unanimemente se considera que se deu a partir da Grécia Antiga do século VI a. c. é manifestamente pouco.
Na realidade o que somos como cidadãos, como seres sociais, como políticos no sentido aristotélico do termo devemo-lo à Revolução Francesa. A maneira como nos comportamos no tecido social, a maneira como amamos e odiamos o nosso semelhante devemo-lo à Revolução Francesa. Devemo-lo à Revolução porque os antagonismos de classe onde ainda hoje nos movimentamos foram criados há duzentos anos com a queda do "Ancien Régime" e com a abolição dos privilégios feudais. Todas as revoluções posteriores inclusive a Revolução Russa de 1917 (eu diria fundamentalmente essa) lhe são subsidiárias.
Os intervenientes n' "A Grande Revolução" como lhe chamou Kropotkine são vários (11). Ouçamo-lo: "Duas grandes correntes prepararam e fizeram a Revolução. Uma, a corrente de ideias - a onda de ideias novas sobre a reorganização política dos Estados - vinha da burguesia. A outra, a da acção, vinha das massas populares - dos camponeses e dos proletários nas cidades, que queriam obter melhorias imediatas e tangíveis para as suas condições económicas. E quando estas duas correntes se encontraram num fito a princípio comum, quando durante certo tempo se prestaram mutuamente auxílio, deu-se então a Revolução." (12)
Como nos diz Kropotkine, em todo o decorrer da Revolução Francesa se pôs, de certo modo constante e antagónico, a questão das formas do poder popular. Foi, aliás, a própria burguesia que por necessidade ideológica se apropriou da noção de soberania popular. Isso aconteceu fundamentalmente devido a dois motivos: primeiro porque o conceito de soberania popular opôs-se à soberania de direito divino; segundo porque a burguesia necessitava do concurso do povo para fazer a sua revolução em 1789 (13)
A crítica ao Absolutismo foi feita durante uma parte do século XVII e todo o século XVIII pelos mais importantes filósofos da época como John Locke, Montesquieu e Rousseau cujas obras influenciaram directamente os burgueses mentores da Revolução como é o caso de Robespierre.
"De há muito que os filósofos do século décimo oitavo tinham minado as bases das sociedades cultas da época, nas quais o poder político, assim como uma imensa parte das riquezas pertenciam à aristocracia e ao clero. Proclamando a soberania da razão, predicando confiança na natureza humana e declarando que esta, corrompida pelas instituições que no decurso da história impuseram ao homem a servidão, reencontraria, todavia, todas as suas qualidades quando reconquistasse toda a sua liberdade, os filósofos tinham aberto à humanidade novos horizontes." (14)
Mas a ideia de soberania popular era uma ideia força que o povo poderia um dia voltar contra a burguesia. Esta, desde o início, deu pelo perigo, tentou precaver-se, esforçou-se por limitar o alcance do princípio, a fim de que o cidadão comum não fosse levado a interpretá-la num sentido prejudicial à ordem burguesa.(15)
Ora a burguesia moderna, se tinha necessidade de proclamar contra o absolutismo que todo o poder emana do povo, não podia admitir que o povo pretendesse exercê-lo. É o que se conclui das seguintes palavras de Kropotkine: "(no 14 de Julho) A Revolução alcançou a sua primeira vitória. É esta a versão comum, que se repete em todas as festas da República; todavia não é de todo exacta. Verdadeira no rápido enunciado dos factos principais, não diz o que é preciso dizer sobre o papel do povo na sublevação, nem sobre as verdadeiras relações entre os dois elementos do movimento: o povo e a burguesia. Na insurreição de Paris, nas vésperas de 14 de Julho, houve como em toda a Revolução, duas correntes separadas de origem diversa: o movimento político da burguesia e o movimento popular. Em certos momentos ambos se uniram, nos grandes dias da Revolução, para uma aliança temporária, e alcançavam as grandes vitórias sobre o antigo regime. A burguesia, porém, desconfiava sempre do seu aliado de momento - o povo. Foi o que se deu em Julho de 1789. A aliança conclui-se contra a vontade da burguesia, que logo no dia seguinte a 14 e até durante o movimento se apressou a organizar-se para por um freio ao povo revoltado." (16)
Foi preciso arranjar uma solução.
Os republicanos ingleses do século XVIII enxertaram a noção de soberania do povo numa instituição que, na origem, nada tinha a ver com ela. O parlamento nascera em Inglaterra, do desmembramento do regime feudal. Era o resultado de um compromisso entre a aristocracia e a burguesia. Deste parlamento fizeram os republicanos ingleses a expressão da soberania do povo. Assim, o pensamento burguês julgava ter encontrado um mio inofensivo de arrastar consigo o povo no assalto ao Absolutismo. Em teoria, todo o poder emanava do povo; mas, na prática, negava-se-lhe o direito de o exercer ele próprio.
Rousseau, representante intelectual da burguesia do século XVIII e apesar disso, chegou a fazer a crítica do regime parlamentar que de certa maneira, antecipa as de Proudhon e Marx. No entanto nega-se a tirar a conclusão lógica da necessidade da democracia directa. Robespierre, discípulo de Rousseau e apesar de afirmar que "os delegados do povo não devem ser déspotas acima da lei" manteve-se irredutivelmente hostil à democracia directa o que se compreende imediatamente dos seus discursos não obstante a sua constituição de 1793.
Mas sucedeu o que não podia deixar de suceder: a rude lógica popular passou por cima de todos os obstáculos destinados a desviá-la do seu rumo. Fez ela própria a dedução de que tinham tentado impedi-la. Do subtil raciocínio de Rousseau e de Robespierre aproveitou só o que lhe interessava, e não fez caso do resto. Tinham-lhe enchido os ouvidos de que o povo era o soberano, que a soberania era inalienável e não podia ser representada. (17)
Daí concluiu o povo que tinha o direito permanente de exercer ele próprio essa soberania, de se fazer ouvir quando muito bem entendesse, de atacar os seus delegados desde que estes não lhe dessem satisfação. e até de lhes tomar o lugar.
Adversários da soberania popular haviam posto a burguesia de sobreaviso, desde o início da Revolução, contra a interpretação radical que certamente dela tiraria o homem da rua.
De facto, as objecções dos pensadores burgueses contra a democracia directa foram transtornadas pela lógica popular. Perante o espanto da burguesia revolucionária, os "sans culottes" opuseram, vezes sem conta à dita soberania da assembleia parlamentar, a verdadeira soberania do povo, exercendo-se nos próprios locais onde o povo se reunia: nas secções, nas comunas, nas sociedades populares.(18)
As comunas traduziram imediatamente no dia a dia, a vontade da vanguarda revolucionária. O sentimento de serem os instrumentos mais eficazes e os intérpretes mais autênticos da Revolução conferiu-lhes a audácia de disputar o poder a uma Convenção que no entanto respeitavam.
À cabeça da Revolução não era, no entanto, só a capital. A necessidade de exprimir a vontade de vanguarda popular, não só de Paris mas de toda a França, de um modo que o regime parlamentar não podia garantir, muito mais directo e frequente, fez surgir espontaneamente a ideia de uma federação das comunas em torno da Comuna parisiense. (19)
A partir dos finais de 1793, a burguesia não deixou de reforçar o poder central, a fim de impedir qualquer tentativa de federação entre as comunas ou as sociedades populares.
Desmentia-se assim a afirmação dos filósofos burgueses que proclamavam a democracia directa impossível nos países mais extensos, devido à impossibilidade material de reunir numa só assembleia o conjunto dos cidadãos: espontaneamente, a Comuna descobrira uma nova forma de representação, mais directa e mais flexível que o sistema parlamentar e que reduz os inconvenientes deste ao mínimo. Entretanto a burguesia empenhava-se em afirmar que a democracia de tipo comunal era uma forma regressiva e não progressiva relativamente ao regime parlamentar e considerava que os partidários da Comuna tinham como objectivo ressuscitar o passado.
Ora o objectivo deste novo poder não era de modo algum voltar ao parcelamento de tipo feudal, mas era a expressão da unidade da nação bem superior àquela realizada à força primeiro pelo absolutismo depois pelo regime representativo e pelo centralismo burguês.
Foi esse federalismo revolucionário da comuna de 1793, manifestado durante a Revolução Francesa, que inspirou os de Proudhon e Bakunine e enfim da Comuna de Paris de 1871.
Os homens dos finais do século XX acabaram de fazer duzentos anos de idade. Se para a duração média em termos físicos, da vida de cada um de nós, é muito tempo, no conjunto da história da humanidade mesmo se tomarmos em conta só o período a partir da consciencialização racional da realidade que unanimemente se considera que se deu a partir da Grécia Antiga do século VI a. c. é manifestamente pouco.
Na realidade o que somos como cidadãos, como seres sociais, como políticos no sentido aristotélico do termo devemo-lo à Revolução Francesa. A maneira como nos comportamos no tecido social, a maneira como amamos e odiamos o nosso semelhante devemo-lo à Revolução Francesa. Devemo-lo à Revolução porque os antagonismos de classe onde ainda hoje nos movimentamos foram criados há duzentos anos com a queda do "Ancien Régime" e com a abolição dos privilégios feudais. Todas as revoluções posteriores inclusive a Revolução Russa de 1917 (eu diria fundamentalmente essa) lhe são subsidiárias.
Os intervenientes n' "A Grande Revolução" como lhe chamou Kropotkine são vários (11). Ouçamo-lo: "Duas grandes correntes prepararam e fizeram a Revolução. Uma, a corrente de ideias - a onda de ideias novas sobre a reorganização política dos Estados - vinha da burguesia. A outra, a da acção, vinha das massas populares - dos camponeses e dos proletários nas cidades, que queriam obter melhorias imediatas e tangíveis para as suas condições económicas. E quando estas duas correntes se encontraram num fito a princípio comum, quando durante certo tempo se prestaram mutuamente auxílio, deu-se então a Revolução." (12)
Como nos diz Kropotkine, em todo o decorrer da Revolução Francesa se pôs, de certo modo constante e antagónico, a questão das formas do poder popular. Foi, aliás, a própria burguesia que por necessidade ideológica se apropriou da noção de soberania popular. Isso aconteceu fundamentalmente devido a dois motivos: primeiro porque o conceito de soberania popular opôs-se à soberania de direito divino; segundo porque a burguesia necessitava do concurso do povo para fazer a sua revolução em 1789 (13)
A crítica ao Absolutismo foi feita durante uma parte do século XVII e todo o século XVIII pelos mais importantes filósofos da época como John Locke, Montesquieu e Rousseau cujas obras influenciaram directamente os burgueses mentores da Revolução como é o caso de Robespierre.
"De há muito que os filósofos do século décimo oitavo tinham minado as bases das sociedades cultas da época, nas quais o poder político, assim como uma imensa parte das riquezas pertenciam à aristocracia e ao clero. Proclamando a soberania da razão, predicando confiança na natureza humana e declarando que esta, corrompida pelas instituições que no decurso da história impuseram ao homem a servidão, reencontraria, todavia, todas as suas qualidades quando reconquistasse toda a sua liberdade, os filósofos tinham aberto à humanidade novos horizontes." (14)
Mas a ideia de soberania popular era uma ideia força que o povo poderia um dia voltar contra a burguesia. Esta, desde o início, deu pelo perigo, tentou precaver-se, esforçou-se por limitar o alcance do princípio, a fim de que o cidadão comum não fosse levado a interpretá-la num sentido prejudicial à ordem burguesa.(15)
Ora a burguesia moderna, se tinha necessidade de proclamar contra o absolutismo que todo o poder emana do povo, não podia admitir que o povo pretendesse exercê-lo. É o que se conclui das seguintes palavras de Kropotkine: "(no 14 de Julho) A Revolução alcançou a sua primeira vitória. É esta a versão comum, que se repete em todas as festas da República; todavia não é de todo exacta. Verdadeira no rápido enunciado dos factos principais, não diz o que é preciso dizer sobre o papel do povo na sublevação, nem sobre as verdadeiras relações entre os dois elementos do movimento: o povo e a burguesia. Na insurreição de Paris, nas vésperas de 14 de Julho, houve como em toda a Revolução, duas correntes separadas de origem diversa: o movimento político da burguesia e o movimento popular. Em certos momentos ambos se uniram, nos grandes dias da Revolução, para uma aliança temporária, e alcançavam as grandes vitórias sobre o antigo regime. A burguesia, porém, desconfiava sempre do seu aliado de momento - o povo. Foi o que se deu em Julho de 1789. A aliança conclui-se contra a vontade da burguesia, que logo no dia seguinte a 14 e até durante o movimento se apressou a organizar-se para por um freio ao povo revoltado." (16)
Foi preciso arranjar uma solução.
Os republicanos ingleses do século XVIII enxertaram a noção de soberania do povo numa instituição que, na origem, nada tinha a ver com ela. O parlamento nascera em Inglaterra, do desmembramento do regime feudal. Era o resultado de um compromisso entre a aristocracia e a burguesia. Deste parlamento fizeram os republicanos ingleses a expressão da soberania do povo. Assim, o pensamento burguês julgava ter encontrado um mio inofensivo de arrastar consigo o povo no assalto ao Absolutismo. Em teoria, todo o poder emanava do povo; mas, na prática, negava-se-lhe o direito de o exercer ele próprio.
Rousseau, representante intelectual da burguesia do século XVIII e apesar disso, chegou a fazer a crítica do regime parlamentar que de certa maneira, antecipa as de Proudhon e Marx. No entanto nega-se a tirar a conclusão lógica da necessidade da democracia directa. Robespierre, discípulo de Rousseau e apesar de afirmar que "os delegados do povo não devem ser déspotas acima da lei" manteve-se irredutivelmente hostil à democracia directa o que se compreende imediatamente dos seus discursos não obstante a sua constituição de 1793.
Mas sucedeu o que não podia deixar de suceder: a rude lógica popular passou por cima de todos os obstáculos destinados a desviá-la do seu rumo. Fez ela própria a dedução de que tinham tentado impedi-la. Do subtil raciocínio de Rousseau e de Robespierre aproveitou só o que lhe interessava, e não fez caso do resto. Tinham-lhe enchido os ouvidos de que o povo era o soberano, que a soberania era inalienável e não podia ser representada. (17)
Daí concluiu o povo que tinha o direito permanente de exercer ele próprio essa soberania, de se fazer ouvir quando muito bem entendesse, de atacar os seus delegados desde que estes não lhe dessem satisfação. e até de lhes tomar o lugar.
Adversários da soberania popular haviam posto a burguesia de sobreaviso, desde o início da Revolução, contra a interpretação radical que certamente dela tiraria o homem da rua.
De facto, as objecções dos pensadores burgueses contra a democracia directa foram transtornadas pela lógica popular. Perante o espanto da burguesia revolucionária, os "sans culottes" opuseram, vezes sem conta à dita soberania da assembleia parlamentar, a verdadeira soberania do povo, exercendo-se nos próprios locais onde o povo se reunia: nas secções, nas comunas, nas sociedades populares.(18)
As comunas traduziram imediatamente no dia a dia, a vontade da vanguarda revolucionária. O sentimento de serem os instrumentos mais eficazes e os intérpretes mais autênticos da Revolução conferiu-lhes a audácia de disputar o poder a uma Convenção que no entanto respeitavam.
À cabeça da Revolução não era, no entanto, só a capital. A necessidade de exprimir a vontade de vanguarda popular, não só de Paris mas de toda a França, de um modo que o regime parlamentar não podia garantir, muito mais directo e frequente, fez surgir espontaneamente a ideia de uma federação das comunas em torno da Comuna parisiense. (19)
A partir dos finais de 1793, a burguesia não deixou de reforçar o poder central, a fim de impedir qualquer tentativa de federação entre as comunas ou as sociedades populares.
Desmentia-se assim a afirmação dos filósofos burgueses que proclamavam a democracia directa impossível nos países mais extensos, devido à impossibilidade material de reunir numa só assembleia o conjunto dos cidadãos: espontaneamente, a Comuna descobrira uma nova forma de representação, mais directa e mais flexível que o sistema parlamentar e que reduz os inconvenientes deste ao mínimo. Entretanto a burguesia empenhava-se em afirmar que a democracia de tipo comunal era uma forma regressiva e não progressiva relativamente ao regime parlamentar e considerava que os partidários da Comuna tinham como objectivo ressuscitar o passado.
Ora o objectivo deste novo poder não era de modo algum voltar ao parcelamento de tipo feudal, mas era a expressão da unidade da nação bem superior àquela realizada à força primeiro pelo absolutismo depois pelo regime representativo e pelo centralismo burguês.
Foi esse federalismo revolucionário da comuna de 1793, manifestado durante a Revolução Francesa, que inspirou os de Proudhon e Bakunine e enfim da Comuna de Paris de 1871.
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