quinta-feira, janeiro 06, 2011

O NEGRO E O VERMELHO

Os Herdeiros da Comuna de Paris

A herança de 1871 foi abundantemente reclamada; a tradição da Comuna permaneceu sempre viva e isto não aconteceu só em França, onde o traumatismo do Maio sangrento marcou, durante decénios, durante gerações, o movimento operário. Não houve revolução abortada, insurreição assassinada antes do seu termo, que não se nomeasse ou não fosse chamada de Comuna: Moscovo, Dezembro de 1905; Budapeste, Março - Julho de 1919; Cantão, Dezembro de 1927...; o 1917 russo foi a princípio uma Comuna:
"Em 1917 - dizia Estaline - pensávamos que íamos formar uma Comuna, uma associação de trabalhadores, que iríamos acabar com a burocracia.(...) É um ideal que estamos ainda longe de ter atingido."
Ou então Lénine: "Nós somos anões às costas desses gigantes"; e ele dançou na neve quando a duração da República soviética ultrapassou por um dia e da insurreição francesa de 1871.
Antigamente, eram os marxistas que a reivindicavam de forma bastante privilegiada: "Olhai a Comuna de Paris! Era a ditadura de proletariado!" Mais recentemente, quem a invoca são os libertários. Falou-se até de "Comuna estudantil" na Sorbonne e, de resto, em Maio de 68.(20) Talvez um pouco excessivamente! Houve, no entanto, ecos reais de 1871; em Nantes, por exemplo:
"Enquanto que, em Paris, incitávamos as massas, sem acreditar muito nisso, à constituição da duplicidade de poder, quer dizer, do poder das massas, da base que se auto organiza face ao poder estabelecido; enquanto reclamávamos a autogestão, esta, ou, pelo menos, um seu esboço prometedor, existia já à escala duma cidade, em Nantes.(...) Um comité sindical, com sede na Câmara Municipal, dirige praticamente a cidade. Não somente assegura a distribuição de água, mas também o reabastecimento de todos os grevistas, em colaboração com as organizações camponesas e das aldeias vizinhas.(...)
Por outro lado, criaram-se Comités de bairro. (...) Os camponeses vendem os seus produtos ao preço de produção, quer dizer, assistimos concretamente, embora em pequena escala, à abolição de todos os intermediários!...
Vem-nos ao espírito em reflexão, quando vemos e compreendemos a Comuna de Nantes: eis a solução, eis a acção revolucionária que hoje se deve levar à prática em todo o lado! Se tivesse havido dez ou vinte Nantes em França e na Europa, a administração gaullista ter-se-ia abatido como um castelo de cartas e o capitalismo seguiria pelo mesmo caminho. Se tivesse havido dez ou vinte Nantes, a Revolução far-se-ia realmente, concretamente, pela base, isto é, de maneira duradoira. (...)"(21)
Na verdade, é surpreendente o ressurgimento aqui de antigas recordações.
Marxistas, libertários, eis outro conflito que remonta ao próprio ano de 1871, ou melhor, às suas sequelas. E, antes do mais, Proudhon (por via de Bakunine) contra Marx! Aquele via essencialmente na Comuna a primeira tentativa de abolição absoluta do Estado opressor e acusava o segundo de aspirar somente a um socialismo estatal, autoritário. O Segundo recriminava no primeiro e seus discípulos antiautoritários, anarquistas, a sua precipitação revolucionária, a sua ingenuidade, mas declarava também que a Comuna era a antítese do Estado Imperial. Grave querela. A primeira Internacional foi disso que morreu - mas complexa: teve tantos e tão longos desenvolvimentos, que não cabe sequer uma tentativa de lhe esboçar os pormenores. Bem pelo contrário, quis esquecer-lhe metamorfoses, para não me arriscar a falsear o relato do que foram os acontecimentos reais de 1871, pois, logo que tudo acabou, aquando das separações do exílio (era-se marxista em Londres, libertário na Suíça), nos panfletos de combate, nos livros de doutrina, as posições endureceram; cada qual interpretava à sua maneira o que se tinha passado, sistematizando-o e deformando forçosamente. Já não era bem da verdadeira Comuna que se tratava: tinha-se subido, ou descido, ao estádio das disputas ideológicas.
Não podemos, naturalmente, esquivá-las totalmente. Limitar-lhe-ei a alguns textos dos grandes, relacionados apenas com 1871. Mas então o que vamos fazer é jogar ao jogo das citações. De quem é esta?
Todos reconhecerão, sem dúvida, Marx:
"A Paris operária, com a sua Comuna, será sempre celebrada como o glorioso alfobre duma sociedade nova. A recordação dos seus mártires será guardada piedosamente no grande coração da classe operária. Os seus exterminadores, a História já os cravou num pelourinho eterno, e nenhuma prece dos seus padres os poderá resgatar."
Bakunine di-lo, com certeza, bastante pior:
"Eu sou partidário da Comuna de Paris que, por ter sido massacrada e asfixiada no seu sangue pelos carrascos da reacção monárquica e clerical, se tornou, por isso mesmo, mais vivas e mais poderosa na imaginação e no coração do proletariado da Europa."
Marx: "(...) Uma vez abolidos o exército permanente e a polícia, instrumentos materiais do poder do antigo governo, a Comuna atribuiu-se a tarefa de destruir o instrumento espiritual de opressão, o poder dos padres.(...) Num breve esboço de organização nacional que ela não teve tempo de desenvolver, diz-se expressamente que a Comuna devia ser a forma política até dos mais pequenos lugarejos dos campos.(...) As comunas rurais de cada distrito deviam administrar os seus assuntos comuns por meio duma assembleia de delegados à capital dos distrito e estas assembleias de distrito deviam por sua vez enviar os seus deputados à delegação nacional em Paris; os delegados deviam ser revogáveis a cada momento e ligados pelo mandato imperativo aos seus eleitores.(...) A unidade da nação não devia ser quebrada, mas, pelo contrário, organizada pela Constituição Comunal; ela devia tornar-se uma realidade através da destruição do poder de Estado, que pretendia ser a encarnação dessa unidade, mas concomitantemente, queria ser independente da própria nação e superior a ela, quando não passava duma sua excrescência parasitária.(...) A própria existência da Comuna implicava a liberdade municipal; mas ela já não constituía daí em diante um obstáculo ao poder de Estado que de Futuro seria abolido.(...)"
Bakunine: "Sou seu partidário, sobretudo porque ela foi uma negação audaciosa, bem pronunciada, do Estado.(...)
A Comuna durou muito pouco tempo e foi muito entravada no seu desenvolvimento interior pela luta mortal que teve que sustentar contra a reacção de Versalhes, para que tivesse podido, já não digo aplicar, mas, pelo menos, elaborar teoricamente o seu programa socialista. Isso temos que reconhecer, a maioria dos seus membros não eram socialistas propriamente ditos."
"O que à Comuna faltou acima de tudo, foi o tempo, foi a possibilidade de se orientar e de abordar a realização do seu programa. Ainda não tinha tido tempo de deitar mãos à obra e já Versalhes a atacava." Lenine.
Alguns amigos condescendentes da classe operária, dissimulando mal a sua repugnância por certas medidas que de socialistas nada possuem, a não ser a intenção, (...) tentam atrair para a Comuna algumas distintas simpatias." Marx.
"O mais difícil de compreender é o respeito sagrado com que se detiveram diante das portas do Banco de França.(...) O Banco, nas mãos da Comuna, valia mais do que dez mil reféns." Engels.
"Obedecendo a um preconceito burguês ou até mesmo a uma frase burguesa, (...) esquecendo que era a Comuna socialista e revolucionária eleita pelo povo de Paris com a única missão de salvar Paris e a França e de provocar pelo seu triunfo a emancipação da Europa, ela parou respeitosamente diante dos mil milhões que se encontravam enterrados nas caves do Banco de frança, e com a ajuda dos quais poderia ter comprado todos os generais bonapartistas, o Governo e a Assembleia, inclusive o macaco de óculos que hoje se intitula salvador." Bakunine.
"A maioria dos membros da Comuna não eram socialistas, e, se mostraram com tal, foi pela força irresistível das coisas, pelas necessidades da sua posição.(...) Os socialistas não passavam duma ínfima minoria. (...) O resto era composto por jacobinos francamente revolucionários, os heróis, os últimos representantes sinceros da fé democrática de 1793, capazes de sacrificar as suas bem amadas unidade e autoridade às necessidades da revolução.(...) Estes jacobinos magnânimos. à cabeça dos quais se encontrava, naturalmente, Delescluze (...) assinaram programas e declarações cujo espírito geral e cujas promessas eram positivamente socialistas. Bakunine.
Os membros da Comuna dividiam-se numa maioria de blanquistas, (...) e uma minoria de membros da A.I.T., na maior parte partidários da escola de Proudhon.(...) Nos dois casos, quis a ironia da História - como acontece sempre que os doutrinários chegam ao poder - que tanto uns como outros fizessem o contrário do que lhes prescrevia a doutrina da sua escola.
O decreto da Comuna(22) de longe mais importante promulgava uma organização da grande industria e até da manufactura, (...) que, como Marx muito justamente diz na Guerra Civil em França, deveria desembocar finalmente no comunismo, quer dizer, nos antípodas exactos dos ensinamentos proudhonianos. E daí advém que a Comuna tenha sido o túmulo desta escola. (...) As coisas não correram melhor para os blanquistas.(...) Eles partiam do ponto de vista de que, (...) antes do mais, era necessária a mais severa centralização ditatorial de todo o poder nas mãos do novo Governo revolucionário. Mas o que fez a Comuna, que, na sua maioria, era precisamente composta por blanquistas? Em todas as suas proclamações aos Franceses da província, ela convidava-os a entrarem numa livre federação de todas as comunas francesas, numa organização nacional que, pela primeira vez, havia de ser criada pela própria nação.(...) Engels.
E eis que Bakunine reabilita os jacobinos, eis que Engels desculpa ou proudhonianos! Eu não estava errado, ao pretender que as circunstâncias concretas descoroçavam as doutrinas de escola, tal como um e outro o constatam. Todavia, continua a afirmar contra a opinião generalizada, que a Comuna teve tempo de se afirmar, de ser socialista à sua maneira.
Este jogo de citações poderia com a continuação tornar-se cruel. De quem são estas frases?
(...) Citará você, sem dúvida, a Comuna de Paris. Mas, para lá duma simples rebelião duma cidade em circunstâncias excepcionais, a maioria dos membros da Comuna não era socialista, de maneira nenhuma , nem podia sê-lo. Com um pouco, muito pouco de bom senso, teria podido obter, contudo, de Versalhes, um compromisso favorável a toda a massa do povo. O que era então a única coisa possível, de resto. A requisição do Banco de França, por si só, teria posto termo decisivamente às fanfarronices versalhesas.(...)
De Marx, ao responder em 1881 ao socialista holandês Nieuwenhuis que lhe perguntava, um pouco ingenuamente, quais seriam os amanhãs radiosos da revolução socialista. Dir-se-ia, com certa verdade, que, nessa altura, a insurreição de 71 não era já para Marx esse modelo que ele gabava tanto dez anos antes.
Não quis entrar verdadeiramente nesse conflito de herança. Apenas constatei que os irmãos inimigos não estavam longe um do outro como se disse, como se acreditava, quando falavam de 1871. Claro, há com certeza textos que restituem aos adversários as distâncias que os separam.
Bakunine: "A Comuna era antes do mais, a revolta, (...) uma revolta que tinha por objectivo suprimir a própria autoridade, nos princípios como nos factos, e libertar a humanidade, duma vez para sempre, de todos os seus tosadores." Ele falava, noutros sítios, do "necessário desencadeamento de todas as más paixões." Marx, com menos fulgor mas mais realismo, se se quiser, dizia de 1871: "O seu verdadeiro segredo, ei-lo: era essencialmente um governo da classe operária(23), o resultado da luta de classes entre produtores e apropriadores, a forma política que permitia a emancipação económica do Trabalho e que enfim se encontrava." Um outro Estado se se quiser, uma autoridade nova: foi pelo menos o que fizeram alguns dos seus continuadores. Mas isso é outra história. A tarefa do historiador, do documentalista de 1871, interrompe-se aqui, pois ele só pretendeu contar os principais acontecimentos do "ano terrível", apoiado pelos documentos, O resto, que o resolvam os que dizem legatários da Comuna!
A ideologia que inspira uma parte substancial da Comuna é proudhoniana. É o caso, por exemplo, d' A Declaração de Princípios de 5 de Setembro elaborada pelo proudhoniano Leverdays. É certo e seguro que leu Do Princípio Federativo e ainda mais certo que leu Da Capacidade Política das Classes Operárias e que estes textos lhe ficaram na retentiva: A Declaração de Princípios é quase um plágio de muitas das páginas desses livros. Este regresso do proudhonismo aos favores do movimento operário e socialista que começava a desprezá-lo desde o fim do Império, depois de se ter dele alimentado nos princípio dos anos 60, explica-se bem: o pensamento de Proudhon fornece soluções teóricas cómodas para muitos problemas delicados que então se levantam. Ele foi um dos primeiros a proclamar os direitos da comuna livre e soberana.
"A Comuna - escreve esta autor n'A Capacidade Política das Classes Operárias - é um ser soberano, como o homem, como a família, como toda e qualquer colectividade inteligente, moral e livre. Nessa qualidade, a Comuna possui o direito de se auto governar, de se auto administrar, de decidir dos seus próprios impostos, de dispor das suas propriedades e rendimentos, de organizar o seu policiamento, de possuir a sua polícia e a sua guarda cívica; de nomear os seus juízes, de possuir os seus jornais, as suas reuniões, as suas sociedades e ordenações; o que a impede de chegar a decretar as sus próprias leis(...)? No seis do Conselho Municipal, nos seus jornais, nos seus círculos, a Comuna discutirá publicamente tudo o que se passa nela, tudo o que se passa à sua volta, tudo o que diga respeito aos seus interesses e agite a sua opinião."
Não é isto o que pede Paris: as liberdades essenciais? "Até aqui não passávamos duma multidão. Seremos por fim uma cidade". E as relações entre as comunas "soberanas" e o Governo - já que o sistema da Declaração do Comité não se há-de limitar a Paris? Proudhon também tem resposta para isto:
"Federação (...). O Problema político reduzido à sua expressão mais simples consiste em encontrar o equilíbrio entre dois elementos contrários: a autoridade e a liberdade. Equilibrara duas forças consiste em submetê-las a uma lei que as mantenha em respeito, que as ponha a ambas de acordo. Quem fornecerá este elemento novo (...)? O contrato(...). Os contratantes (...) não somente se obrigam sinalagmática e comutativamente uns em relação aos outros, com também garantem mutuamente mais direitos, mais liberdade, mais propriedade do que concedem ao fornecerem o pacto(...). A autoridade encarregada da sua execução não pode nunca ficar com alguma vantagem em relação aos contraentes - quero eu dizer que as atribuições federais não podem nunca exercer, em número e de facto, as das autoridades comunais ou provinciais (...). O sistema federativo é o oposto da hierarquia ou da centralização administrativa e governamental que caracterizam, ex-aequo, as democracias imperiais e as monarquias constitucionais. A sua lei fundamental é esta: na federação os atributos da autoridade especializam-se e restringem-se, diminuem de número, de imediatidade, e, se se pode dizer, de intensidade (...).
Estamos. por fim, perante uma definição coerente da comuna, inclusive dum sistema Comunal. E se citámos Proudhon tão longamente, foi por mais outra razão: é que a sua influência se exercerá profundamente, ainda, sobre muitos dos que hão-de falar da Comuna e esforçar-se por defini-la, quer durante o cerco, quer durante Março de 1871. Mas, por isso mesmo, pode dar-se uma nova dimensão à palavra. Embora, possa haver algumas afinidades entre as liberdades municipais segundo Proudhon e o ideal do Governo directo dos sans-culottes, sente-se bem que a Comuna proudhoniana e a Comuna de 92/93, na qual tantos pensam, são duas noções poderosamente antagónicas. A falar verdade, tal facto não parece incomodar ainda muito o redactor da Declaração, que fala alegremente de "delegação popular de salvação pública e municipal".

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