Reflexões Sobre o Materialismo do Século XVIII
"O Materialismo e o ateísmo aparecem aqui como o resultado necessário da pura e activa consciência de si...
O admirável nos escritos filosóficos franceses e que os torna importantes é a sua espantosa energia, a força do conceito em luta contra a existência, contra a fé, contra todo o poder da autoridade, estabelecida há milhares de anos. É o seu carácter que é admirável, esse sentimento da mais profunda indignação contra a aceitação de tudo o que era estranho à consciência de si, daquilo que pretende existir sem ela, e onde ela própria se não encontra, é uma certeza da verdade racional que desafia o mundo das ideias aceites e que tem a certeza da sua destruição. Isso levou de vencida todos os preconceitos e triunfos deles."
HEGEL, Lições sobre a história da Filosofia.
Há já cerca de dez anos que a nossa atenção filosófica se sentiu atraída pela obra do socialista libertário P.J. Proudhon. Neste espaço de tempo, muito de parcialmente conclusivo foi possível atingir. Entre outras coisas, de que o pensamento filosófico, político, económico, social do autor de A Capacidade Política das Classes Operárias sofre influência directa do chamado socialismo utópico, nomenclatura que lhe pertence, e indirectamente do chamado materialismo do século XVIII, objecto de estudo do presente artigo. Como Proudhon se insere no conjunto dos filósofos que ontologicamente falando são chamados de materialistas, torna-se-me pertinente analisar as condições de possibilidade e simultaneamente de limitações do materialismo filosófico anterior ao materialismo do século XIX.
Daí referirmo-nos ao materialismo francês que nomeadamente encontramos presente na Enciclopédia a partir de 1751, data do primeiro volume. Na realidade, quando dizemos materialismo do século XVIII, queremos dizer materialismo francês do século XVIII pois na verdade, os filósofos materialistas mais importantes deste século são franceses. Pode-se argumentar com Holbach que é de origem alemã, o que é correcto, mas de qualquer das maneiras não invalida a tese geral atrás enunciada. Holbach era alemão, mas foi muito cedo para França e a sua obra mais importante e mais influente é o Système de la Nature escrita como o título indica, em francês.
Se nos vamos debruçar sobre o materialismo será então importante perguntar, antes de mais nada, o que é o materialismo no sentido filosófico habitual? (1)
O Materialismo é a antítese do idealismo.(2) O idealismo procura explicar todos os fenómenos naturais, todas as propriedades da matéria, por esta ou aquela propriedade do espírito. O materialismo opera precisamente ao contrário: ele procura explicar os fenómenos psíquicos por esta ou aquela propriedade da matéria, esta ou aquela particularidade orgânica do corpo humano ou animal. Todos os filósofos para quem o dado primeiro é a matéria pertencem ao campo dos materialistas e todos aqueles para quem o espirito é o dado primeiro pertencem ao campo dos idealistas. Isto é tudo o que se pode dizer do materialismo em geral, do materialismo no sentido filosófico habitual; porque o tempo edificou com base nele estruturas tão diversas que elas conferem ao materialismo de cada época um aspecto que o diferencia completamente do materialismo das outras épocas.(3)
Materialismo e idealismo a isto reduzem as grandes direcções do pensamento filosófico. É verdade que quase sempre existiram paralelamente sistemas dualistas que consideravam o espírito e a matéria como substâncias distintas e independentes. Mas o dualismo nunca pode fornecer uma resposta satisfatória a uma questão impossível de iludir: como é que duas substâncias distintas, que não possuem nada de comum entre si, podem exercer influência uma sobre a outra? Por isso os pensadores mais consequentes e mais profundos se inclinaram sempre para o monismo, isto é, para a explicação dos fenómenos por um único princípio fundamental.(4)
Todo o idealista consequente é monista acontecendo o mesmo com todo o materialista consequente. Nesta perspectiva, não há qualquer diferença entre Barkeley, por exemplo, e Holbach. O primeiro foi um idealista consequente, o segundo um materialista não menos consequente, mas um e outro foram também monista; e, tanto um como o outro, se aperceberam igualmente da impotência dos sistemas dualistas, os mais divulgados, até aos nossos dias.
A primeira metade do século XIX viu o reinado do monismo idealista em filosofia; a segunda metade assistiu, no domínio da ciência ao triunfo de um monismo materialista que, de resto, nem sempre é lógico nem confessado.
Não cabe aqui expor em pormenor a história do materialismo. Bastará aos nossos propósitos considerar o seu desenvolvimento a partir da segunda metade do século XVIII. E, ainda aí, nos importa sobretudo examinar uma das correntes - na verdade a principal: o materialismo de Holbach, de Helvetius e dos seus adeptos.
Os materialistas desta tendência mantiveram uma polémica acesa com os pensadores oficiais da época, os quais, invocando Descartes sem nunca lá chegarem a compreendê-lo, pretendiam que existem no homem certas ideias inatas, isto é, independentes da experiência. Na sua refutação desta teoria, os materialistas franceses não mais fizeram do que retomar a doutrina de Locke que, desde os fins do século XVII, tinha demonstrado que não existem ideias inatas. Mas, ao retomarem esta tese, conferiram-lhe um aspecto mais sistemático; puseram os pontos nos is em que Locke, como liberal inglês bem educado, não tinha querido tocar. Indo até ao fim das suas ideias, eles foram sensualistas intrépidos, quer dizer, consideram todas as funções psíquicas do homem como modificações da sensação.
Inútli pôr-se aqui a questão de saber até que ponto, neste ou naquele caso, os seus argumentos permanecem válidos à luz da ciência actual. É evidente que os materialistas franceses ignoravam muitas das coisas que hoje um simples estudante conhece: referimo-nos antes de mais às teorias físicas e químicas do Holbach, no entanto absolutamente ao corrente das ciências da natureza do seu tempo. Pelo menos eles tiveram o mérito incontestável de encaminhar o seu pensamento logicamente do ponto de vista da ciência da sua época; e é tudo o que de direito se pode exigir a um pensador. Não surpreende que a ciência contemporânea tenha ultrapassado os materialistas franceses do século XVIII; mas o que importa é que os adversários destes filósofos estavam em atraso relativamente à ciência do seu tempo.
Certos historiadores da filosofia têm o costume de opor às concepções dos materialistas franceses as de Kant, cujos conhecimentos científicos de modo algum podem negar-se. Mas esta oposição peca por absoluta falta de base. Provar-se-ia sem custo que Kant e os materialistas franceses partiram do mesmo princípio, mas desenvolveram-no de maneiras diferentes, chegando assim a conclusões diferentes sob a acção das sociedade desiguais em que um e outros viveram e pensaram.
Seja como for, sabe-se que os materialistas franceses consideravam o conjunto da actividade psíquica do homem como uma modificação da sensação. E considerar a actividade psíquica deste ponto de vista significa aceitar que a totalidade das representações, dos conceitos e dos sentimentos é engendrada pela acção do meio exterior sobre o homem. Era exactamente assim que eles encaravam a questão. Sem se cansar, apaixonadamente e da maneira mais categórica, eles proclamaram que, com todas as suas ideias e todos os seus sentimentos, o homem é aquilo que o meio faz dele, isto é, em primeiro lugar a natureza e, em segundo lugar, a sociedade.(5)
Esta concepção do homem como produto do meio fornece aos materialistas franceses o seu principal fundamento teórico para reclamar reformas. Se o homem depende, com efeito, do meio exterior e lhe deve todas as particularidades do seu carácter, deve-lhe também os seus defeitos; se se quer lutar contra estes, torna-se pois necessário modificar consequentemente o meio, mais exactamente o meio social, porquanto a natureza não faz o homem nem bom nem mau. Coloque-se este homem numa sociedade razoável, ou seja, em condições em que o instinto de conservação deixe de empurrar cada um para a luta contra todos, harmonizem-se os interesses do indivíduo com os da sociedade inteira, e a virtude aparecerá naturalmente, tal como uma pedra, privada do ponto de apoio, cai por si mesma.
A virtude não se prega; prepara-se através de um ajustamento razoável da sociedade. Os materialistas franceses devem aos bons ofícios dos conservadores e dos reaccionários do século passado que se persista em considerar a sua moral de egoísmo. Com muito mais razão definiram-na eles como uma moral que se confunde inteiramente com a política.
A teoria segundo a qual a vida de espírito é um produto do meio conduziu por vezes os materialistas franceses a conclusões inesperadas, mesmo para eles próprios. Assim , eles pretenderam, por exemplo, que as ideias do homem não têm influência absolutamente nenhuma sobre o seu comportamento e que, na sequência disto, a difusão desta ou daquela ideia numa sociedade não poderia modificar a sua história um milímetro que fosse. Se as ideias de um ser humano são determinadas pelo meio que o cerca, as da humanidade, no seu devir histórico, são-no pela evolução do meio social, pela história das sociedades. Se quiséssemos descrever "o progresso da razão" sem nos limitarmos à questão "como?" (como é que a razão se desenvolveu historicamente), mas colocando-nos também e tão natural "porquê" (porque é que este desenvolvimento se verificou assim e não doutra maneira?), deveríamos começar pela história do meio, pela história da evolução das sociedades. O centro de gravidade deslocar-se-ia assim, pelo menos de início, para a pesquisa das leis da evolução social. Os materialistas franceses chegaram até este problema, mas longe de saberem resolvê-lo, nem sequer souberam colocá-lo correctamente.
Quando chegou a altura de tratar da evolução histórica da humanidade, esqueceram a sua teoria sensualista do Homem com "H" grande e, à maneira de todos os "espíritos esclarecidos" do tempo, pretenderam que "cést l'opinion qui governe le monde", isto é, as sociedades humanas. É aqui que reside a contradição inicial do materialismo no século XVIII. É nos raciocínios dos partidários deste, ela fraccionou-se numa série de contradições derivadas, de contradições secundárias comparáveis aos trocos de uma nota de banco.
Temos por exemplo a tese de que o homem, com a totalidade das suas opiniões, é o produto do meio, essencialmente do meio social. É a consequência inelutável do princípio de Locke: "no innate principles", não há ideias inatas. Em contrapartida temos a tese que diz o meio, com a totalidade das suas propriedades, é o produto da opinião. É a consequência inelutável do princípio da filosofia da história dos materialistas franceses: c'est l'opinion qui governe le monde.
Desta contradição decorre um certo número de contradições derivadas: por um lado o homem considera boas as formas sociais que lhe são úteis; considera más as que lhe são prejudiciais. Por outro temos que as formas em questão aparecem aos homens úteis ou prejudiciais segundo o sistema das usa opiniões. No fim de contas, tudo se resume pois, uma vez mais, à opinião que governa o muno.
Temos ainda que por uma lado é um erro grosseiro supor que a moral religiosa, por exemplo, o preceito do amor pelo próximo, contribui mesmo numa pequena parte, para melhorar os costumes. Preconceitos desta natureza, como, de resto as ideias em geral, não têm poder sobre o homem. Tudo depende do meio social, do estado da sociedade.(6) Mas por outro lado e como nos mostra a experiência histórica, é admissível admitir o contrário pois se as opiniões em geral governam o mundo, as opiniões falsas dirigem-no à maneira de tiranos. Não seria difícil alongar esta lista de contradições que o materialismo francês nos legou.
Só que há contradições e contradições. Há efectivamente contradições estéreis e tem a ver com a maneira como as perspectivamos. Mas existe um outro género de contradições. Distinguem-se das primeiras porque não adormecem o espirito humano nem retardam o seu progresso, mas impelem-se para diante, e por vezes com tanta força que se revelam mais fecundas, quanto às suas consequências, que as teorias mais harmoniosas. Poder-se-ia retomar a este respeito a fórmula de Hegel: "Der Widerspruch ist das Fortleitende".(7) E é nesta categoria que é preciso classificar as contradições do materialismo francês do século XVIII.
Detenhamo-nos sobre a contradição inicial: é o mais que determina as opiniões; são as opiniões que determinam o meio. A este respeito deve dizer-se o que Kant dizia das suas antinomias: a tese é tão válida como a antítese.(8) Não se poderia, com efeito, pôr em dúvida que o meio social determina as opiniões. E é também fora de dúvida que nenhum povo aceitaria uma ordem social contrária à totalidade das suas opiniões sem se insurgir contra essa ordem, remodelando-a à sua maneira. Deve, pois, reconhecer-se também que a opinião governa o mundo. Mas como podem duas proposições, verdadeiras em si mesmas, contradizer-se? A coisa explica-se muito simplesmente. Elas só se contradizem pelo facto de nós as considerarmos do ponto de vista errado: deste ponto de vista, parece - e deve absolutamente parecer - que, se a tese é verdadeira, a antítese é falsa, e reciprocamente. Mas que se encontre o ponto de vista certo e a contradição desaparecerá, cada uma das proposições que nos embaraçava revestirá um aspecto novo: descobrir-se-á que uma completa a outra, mais exactamente, que ela a condiciona, sem de modo algum a excluir, que se esta proposição era falsa, a outra também o seria, embora de início nos tivesse parecido antagónica.
Como encontrar esse ponto de vista certo? Tomemos um exemplo. Muitas vezes se disse, sobretudo no século XVIII, que o regime político de um povo é condicionado pelos costumes deste. E é perfeitamente justo. Quando os antigos costumes republicanos dos romanos desapareceram, a república cedeu o lugar à monarquia. Mas, por outro lado, sustentou-se, com não menos frequência, que os costumes de um povo são condicionados pelo seu regime político. E isto também não pode pôr-se em dúvida. É perfeitamente claro até à evidência que os costumes dos romanos do Império deviam constituir algo de contraditório relativamente aos antigos costumes republicanos. E assim se chega a esta conclusão: que o regime é condicionado pelos costumes e que os costumes o são pelo regime. Mas esta conclusão é contraditória. Fomos sem dúvida levados a ela porque uma das duas proposições é falsa. Qual delas? Por muito que quebremos a cabeça a pensar no assunto, não se encontrará qualquer erro nem na primeira nem na segunda; uma e outra são irrepreensíveis, porque, realmente, os costumes de um povo agem sobre o seu regime político e, neste sentido, constituem a sua causa, ao passo que, por outro lado elas são condicionados por esse regime em relação ao qual, neste sentido, constituem o efeito. Onde procurar a saída então? Nas questões deste género, contentemo-nos normalmente em descobrir uma interacção: os costumes influem na constituição; a constituição influi nos costumes; tudo se torna claro como o dia; e aqueles a quem esta limpidez não satisfaz, demonstram a mais lamentável inclinação para uma estreiteza de espírito. Encara-se a vida social sob o ângulo da interacção: cada um dos aspectos da vida age sobre todos os outros e sofre-lhes, por sua vez, a acção.
Os filósofos do século XVIII também se inclinavam para este ponto de vista quando sentiam a necessidade de pôr em ordem as suas concepções da vida das sociedades e resolver as contradições que os consumiam. É neste ponto de vista de interacção que se detém, por exemplo, Montesquieu em obras tão célebres como Grandeza e Decadência dos Romanos ou Do Espírito das Leis.(9)
O ponto de vista é, sem dúvida, justo: existe incondicionalmente interacção entre todos os aspectos da vida social. Infelizmente, este ponto de vista justo esclarece muito pouco, pela simples razão de que não fornece nenhuma indicação quanto à origem das forças que exercem essa interacção. Se o regime político pressupõe os costumes sobre os quais age, não é a ele, evidentemente que esses costumes devem a sua aparição. E o mesmo raciocínio vale para os costumes: se eles pressupõem o regime sobre o qual agem, não foram eles, manifestamente, que o criaram. Para sair desta aparente confusão, temos que encontrar o factor histórico que produziu simultaneamente os costumes de um dado povo e o seu regime político, criando ao mesmo tempo a possibilidade da sua interacção. Se descobrimos este factor, encontraremos o ponto de vista certo, objecto da nossa reflexão, e poderemos então resolver sem dificuldade a antinomia que nos embaraça.
Aplicado à contradição inicial do materialismo francês, vejamos o que isto significa: os materialistas franceses enganavam-se redondamente quando, contradizendo a sua concepção habitual da história, pretendiam que as ideias não são nada, porque o meio seria tudo, mas não é menor o erro existente na sua concepção habitual da história que faz da opinião a causa principal, fundamental, da existência de qualquer meio social dado. Existe, sem dúvida, interacção entre a opinião e o meio. Mas uma análise científica não pode limitar-se a reconhecer esta interacção, visto que esta não nos explica de modo algum os fenómenos sociais.
Para compreender a história da humanidade - no caso presente, a história das sua opiniões por uma lado e, por outro lado, a história das sociedades que ela conheceu no decurso da sua evolução - é preciso ultrapassar o ponto de vista da interacção, é preciso descobrir, se a coisa é possível, o factor que determina ao mesmo tempo a evolução do meio social e a evolução das opiniões. Cabia às ciências do século XIX a descoberta deste factor.(10)
É a opinião que governa o mundo. Mas a opinião não permanece invariável. O que é que preside à sua modificação? " A difusão das Luzes", respondia La Mothe le Vayer no século XVII. É a expressão mais abstracta e mais superficial da ideia do poder universal da opinião. Os filósofos do século XVIII agarraram-se firmemente a este conceito, completando-o por vezes com generalidades melancólicas sobre a sorte, infelizmente pouco certa, da luzes. Mas nota-se já entre os espíritos mais esclarecidos e isso é indesmentível, a consciência do que há de insuficiente numa tal concepção. Helvetius indica que o progresso dos conhecimentos está sujeito a leis, e que, consequentemente, há causas ocultas, causas desconhecidas de que esse progresso depende. Ele faz mesmo uma tentativa altamente interessante, e cujo verdadeiro mérito não foi ainda apreciado, para explicar a evolução social e intelectual da humanidade pelas suas necessidades materiais. Mas esta tentativa encerra-se finalmente por um fracasso. E, por muitas razões, não teria podido encerrar-se de outra maneira. Pelo menos permaneceria como uma espécie de legado testamentário para os pensadores do século seguinte que quisessem prosseguir a obra dos materialistas franceses.
"O Materialismo e o ateísmo aparecem aqui como o resultado necessário da pura e activa consciência de si...
O admirável nos escritos filosóficos franceses e que os torna importantes é a sua espantosa energia, a força do conceito em luta contra a existência, contra a fé, contra todo o poder da autoridade, estabelecida há milhares de anos. É o seu carácter que é admirável, esse sentimento da mais profunda indignação contra a aceitação de tudo o que era estranho à consciência de si, daquilo que pretende existir sem ela, e onde ela própria se não encontra, é uma certeza da verdade racional que desafia o mundo das ideias aceites e que tem a certeza da sua destruição. Isso levou de vencida todos os preconceitos e triunfos deles."
HEGEL, Lições sobre a história da Filosofia.
Há já cerca de dez anos que a nossa atenção filosófica se sentiu atraída pela obra do socialista libertário P.J. Proudhon. Neste espaço de tempo, muito de parcialmente conclusivo foi possível atingir. Entre outras coisas, de que o pensamento filosófico, político, económico, social do autor de A Capacidade Política das Classes Operárias sofre influência directa do chamado socialismo utópico, nomenclatura que lhe pertence, e indirectamente do chamado materialismo do século XVIII, objecto de estudo do presente artigo. Como Proudhon se insere no conjunto dos filósofos que ontologicamente falando são chamados de materialistas, torna-se-me pertinente analisar as condições de possibilidade e simultaneamente de limitações do materialismo filosófico anterior ao materialismo do século XIX.
Daí referirmo-nos ao materialismo francês que nomeadamente encontramos presente na Enciclopédia a partir de 1751, data do primeiro volume. Na realidade, quando dizemos materialismo do século XVIII, queremos dizer materialismo francês do século XVIII pois na verdade, os filósofos materialistas mais importantes deste século são franceses. Pode-se argumentar com Holbach que é de origem alemã, o que é correcto, mas de qualquer das maneiras não invalida a tese geral atrás enunciada. Holbach era alemão, mas foi muito cedo para França e a sua obra mais importante e mais influente é o Système de la Nature escrita como o título indica, em francês.
Se nos vamos debruçar sobre o materialismo será então importante perguntar, antes de mais nada, o que é o materialismo no sentido filosófico habitual? (1)
O Materialismo é a antítese do idealismo.(2) O idealismo procura explicar todos os fenómenos naturais, todas as propriedades da matéria, por esta ou aquela propriedade do espírito. O materialismo opera precisamente ao contrário: ele procura explicar os fenómenos psíquicos por esta ou aquela propriedade da matéria, esta ou aquela particularidade orgânica do corpo humano ou animal. Todos os filósofos para quem o dado primeiro é a matéria pertencem ao campo dos materialistas e todos aqueles para quem o espirito é o dado primeiro pertencem ao campo dos idealistas. Isto é tudo o que se pode dizer do materialismo em geral, do materialismo no sentido filosófico habitual; porque o tempo edificou com base nele estruturas tão diversas que elas conferem ao materialismo de cada época um aspecto que o diferencia completamente do materialismo das outras épocas.(3)
Materialismo e idealismo a isto reduzem as grandes direcções do pensamento filosófico. É verdade que quase sempre existiram paralelamente sistemas dualistas que consideravam o espírito e a matéria como substâncias distintas e independentes. Mas o dualismo nunca pode fornecer uma resposta satisfatória a uma questão impossível de iludir: como é que duas substâncias distintas, que não possuem nada de comum entre si, podem exercer influência uma sobre a outra? Por isso os pensadores mais consequentes e mais profundos se inclinaram sempre para o monismo, isto é, para a explicação dos fenómenos por um único princípio fundamental.(4)
Todo o idealista consequente é monista acontecendo o mesmo com todo o materialista consequente. Nesta perspectiva, não há qualquer diferença entre Barkeley, por exemplo, e Holbach. O primeiro foi um idealista consequente, o segundo um materialista não menos consequente, mas um e outro foram também monista; e, tanto um como o outro, se aperceberam igualmente da impotência dos sistemas dualistas, os mais divulgados, até aos nossos dias.
A primeira metade do século XIX viu o reinado do monismo idealista em filosofia; a segunda metade assistiu, no domínio da ciência ao triunfo de um monismo materialista que, de resto, nem sempre é lógico nem confessado.
Não cabe aqui expor em pormenor a história do materialismo. Bastará aos nossos propósitos considerar o seu desenvolvimento a partir da segunda metade do século XVIII. E, ainda aí, nos importa sobretudo examinar uma das correntes - na verdade a principal: o materialismo de Holbach, de Helvetius e dos seus adeptos.
Os materialistas desta tendência mantiveram uma polémica acesa com os pensadores oficiais da época, os quais, invocando Descartes sem nunca lá chegarem a compreendê-lo, pretendiam que existem no homem certas ideias inatas, isto é, independentes da experiência. Na sua refutação desta teoria, os materialistas franceses não mais fizeram do que retomar a doutrina de Locke que, desde os fins do século XVII, tinha demonstrado que não existem ideias inatas. Mas, ao retomarem esta tese, conferiram-lhe um aspecto mais sistemático; puseram os pontos nos is em que Locke, como liberal inglês bem educado, não tinha querido tocar. Indo até ao fim das suas ideias, eles foram sensualistas intrépidos, quer dizer, consideram todas as funções psíquicas do homem como modificações da sensação.
Inútli pôr-se aqui a questão de saber até que ponto, neste ou naquele caso, os seus argumentos permanecem válidos à luz da ciência actual. É evidente que os materialistas franceses ignoravam muitas das coisas que hoje um simples estudante conhece: referimo-nos antes de mais às teorias físicas e químicas do Holbach, no entanto absolutamente ao corrente das ciências da natureza do seu tempo. Pelo menos eles tiveram o mérito incontestável de encaminhar o seu pensamento logicamente do ponto de vista da ciência da sua época; e é tudo o que de direito se pode exigir a um pensador. Não surpreende que a ciência contemporânea tenha ultrapassado os materialistas franceses do século XVIII; mas o que importa é que os adversários destes filósofos estavam em atraso relativamente à ciência do seu tempo.
Certos historiadores da filosofia têm o costume de opor às concepções dos materialistas franceses as de Kant, cujos conhecimentos científicos de modo algum podem negar-se. Mas esta oposição peca por absoluta falta de base. Provar-se-ia sem custo que Kant e os materialistas franceses partiram do mesmo princípio, mas desenvolveram-no de maneiras diferentes, chegando assim a conclusões diferentes sob a acção das sociedade desiguais em que um e outros viveram e pensaram.
Seja como for, sabe-se que os materialistas franceses consideravam o conjunto da actividade psíquica do homem como uma modificação da sensação. E considerar a actividade psíquica deste ponto de vista significa aceitar que a totalidade das representações, dos conceitos e dos sentimentos é engendrada pela acção do meio exterior sobre o homem. Era exactamente assim que eles encaravam a questão. Sem se cansar, apaixonadamente e da maneira mais categórica, eles proclamaram que, com todas as suas ideias e todos os seus sentimentos, o homem é aquilo que o meio faz dele, isto é, em primeiro lugar a natureza e, em segundo lugar, a sociedade.(5)
Esta concepção do homem como produto do meio fornece aos materialistas franceses o seu principal fundamento teórico para reclamar reformas. Se o homem depende, com efeito, do meio exterior e lhe deve todas as particularidades do seu carácter, deve-lhe também os seus defeitos; se se quer lutar contra estes, torna-se pois necessário modificar consequentemente o meio, mais exactamente o meio social, porquanto a natureza não faz o homem nem bom nem mau. Coloque-se este homem numa sociedade razoável, ou seja, em condições em que o instinto de conservação deixe de empurrar cada um para a luta contra todos, harmonizem-se os interesses do indivíduo com os da sociedade inteira, e a virtude aparecerá naturalmente, tal como uma pedra, privada do ponto de apoio, cai por si mesma.
A virtude não se prega; prepara-se através de um ajustamento razoável da sociedade. Os materialistas franceses devem aos bons ofícios dos conservadores e dos reaccionários do século passado que se persista em considerar a sua moral de egoísmo. Com muito mais razão definiram-na eles como uma moral que se confunde inteiramente com a política.
A teoria segundo a qual a vida de espírito é um produto do meio conduziu por vezes os materialistas franceses a conclusões inesperadas, mesmo para eles próprios. Assim , eles pretenderam, por exemplo, que as ideias do homem não têm influência absolutamente nenhuma sobre o seu comportamento e que, na sequência disto, a difusão desta ou daquela ideia numa sociedade não poderia modificar a sua história um milímetro que fosse. Se as ideias de um ser humano são determinadas pelo meio que o cerca, as da humanidade, no seu devir histórico, são-no pela evolução do meio social, pela história das sociedades. Se quiséssemos descrever "o progresso da razão" sem nos limitarmos à questão "como?" (como é que a razão se desenvolveu historicamente), mas colocando-nos também e tão natural "porquê" (porque é que este desenvolvimento se verificou assim e não doutra maneira?), deveríamos começar pela história do meio, pela história da evolução das sociedades. O centro de gravidade deslocar-se-ia assim, pelo menos de início, para a pesquisa das leis da evolução social. Os materialistas franceses chegaram até este problema, mas longe de saberem resolvê-lo, nem sequer souberam colocá-lo correctamente.
Quando chegou a altura de tratar da evolução histórica da humanidade, esqueceram a sua teoria sensualista do Homem com "H" grande e, à maneira de todos os "espíritos esclarecidos" do tempo, pretenderam que "cést l'opinion qui governe le monde", isto é, as sociedades humanas. É aqui que reside a contradição inicial do materialismo no século XVIII. É nos raciocínios dos partidários deste, ela fraccionou-se numa série de contradições derivadas, de contradições secundárias comparáveis aos trocos de uma nota de banco.
Temos por exemplo a tese de que o homem, com a totalidade das suas opiniões, é o produto do meio, essencialmente do meio social. É a consequência inelutável do princípio de Locke: "no innate principles", não há ideias inatas. Em contrapartida temos a tese que diz o meio, com a totalidade das suas propriedades, é o produto da opinião. É a consequência inelutável do princípio da filosofia da história dos materialistas franceses: c'est l'opinion qui governe le monde.
Desta contradição decorre um certo número de contradições derivadas: por um lado o homem considera boas as formas sociais que lhe são úteis; considera más as que lhe são prejudiciais. Por outro temos que as formas em questão aparecem aos homens úteis ou prejudiciais segundo o sistema das usa opiniões. No fim de contas, tudo se resume pois, uma vez mais, à opinião que governa o muno.
Temos ainda que por uma lado é um erro grosseiro supor que a moral religiosa, por exemplo, o preceito do amor pelo próximo, contribui mesmo numa pequena parte, para melhorar os costumes. Preconceitos desta natureza, como, de resto as ideias em geral, não têm poder sobre o homem. Tudo depende do meio social, do estado da sociedade.(6) Mas por outro lado e como nos mostra a experiência histórica, é admissível admitir o contrário pois se as opiniões em geral governam o mundo, as opiniões falsas dirigem-no à maneira de tiranos. Não seria difícil alongar esta lista de contradições que o materialismo francês nos legou.
Só que há contradições e contradições. Há efectivamente contradições estéreis e tem a ver com a maneira como as perspectivamos. Mas existe um outro género de contradições. Distinguem-se das primeiras porque não adormecem o espirito humano nem retardam o seu progresso, mas impelem-se para diante, e por vezes com tanta força que se revelam mais fecundas, quanto às suas consequências, que as teorias mais harmoniosas. Poder-se-ia retomar a este respeito a fórmula de Hegel: "Der Widerspruch ist das Fortleitende".(7) E é nesta categoria que é preciso classificar as contradições do materialismo francês do século XVIII.
Detenhamo-nos sobre a contradição inicial: é o mais que determina as opiniões; são as opiniões que determinam o meio. A este respeito deve dizer-se o que Kant dizia das suas antinomias: a tese é tão válida como a antítese.(8) Não se poderia, com efeito, pôr em dúvida que o meio social determina as opiniões. E é também fora de dúvida que nenhum povo aceitaria uma ordem social contrária à totalidade das suas opiniões sem se insurgir contra essa ordem, remodelando-a à sua maneira. Deve, pois, reconhecer-se também que a opinião governa o mundo. Mas como podem duas proposições, verdadeiras em si mesmas, contradizer-se? A coisa explica-se muito simplesmente. Elas só se contradizem pelo facto de nós as considerarmos do ponto de vista errado: deste ponto de vista, parece - e deve absolutamente parecer - que, se a tese é verdadeira, a antítese é falsa, e reciprocamente. Mas que se encontre o ponto de vista certo e a contradição desaparecerá, cada uma das proposições que nos embaraçava revestirá um aspecto novo: descobrir-se-á que uma completa a outra, mais exactamente, que ela a condiciona, sem de modo algum a excluir, que se esta proposição era falsa, a outra também o seria, embora de início nos tivesse parecido antagónica.
Como encontrar esse ponto de vista certo? Tomemos um exemplo. Muitas vezes se disse, sobretudo no século XVIII, que o regime político de um povo é condicionado pelos costumes deste. E é perfeitamente justo. Quando os antigos costumes republicanos dos romanos desapareceram, a república cedeu o lugar à monarquia. Mas, por outro lado, sustentou-se, com não menos frequência, que os costumes de um povo são condicionados pelo seu regime político. E isto também não pode pôr-se em dúvida. É perfeitamente claro até à evidência que os costumes dos romanos do Império deviam constituir algo de contraditório relativamente aos antigos costumes republicanos. E assim se chega a esta conclusão: que o regime é condicionado pelos costumes e que os costumes o são pelo regime. Mas esta conclusão é contraditória. Fomos sem dúvida levados a ela porque uma das duas proposições é falsa. Qual delas? Por muito que quebremos a cabeça a pensar no assunto, não se encontrará qualquer erro nem na primeira nem na segunda; uma e outra são irrepreensíveis, porque, realmente, os costumes de um povo agem sobre o seu regime político e, neste sentido, constituem a sua causa, ao passo que, por outro lado elas são condicionados por esse regime em relação ao qual, neste sentido, constituem o efeito. Onde procurar a saída então? Nas questões deste género, contentemo-nos normalmente em descobrir uma interacção: os costumes influem na constituição; a constituição influi nos costumes; tudo se torna claro como o dia; e aqueles a quem esta limpidez não satisfaz, demonstram a mais lamentável inclinação para uma estreiteza de espírito. Encara-se a vida social sob o ângulo da interacção: cada um dos aspectos da vida age sobre todos os outros e sofre-lhes, por sua vez, a acção.
Os filósofos do século XVIII também se inclinavam para este ponto de vista quando sentiam a necessidade de pôr em ordem as suas concepções da vida das sociedades e resolver as contradições que os consumiam. É neste ponto de vista de interacção que se detém, por exemplo, Montesquieu em obras tão célebres como Grandeza e Decadência dos Romanos ou Do Espírito das Leis.(9)
O ponto de vista é, sem dúvida, justo: existe incondicionalmente interacção entre todos os aspectos da vida social. Infelizmente, este ponto de vista justo esclarece muito pouco, pela simples razão de que não fornece nenhuma indicação quanto à origem das forças que exercem essa interacção. Se o regime político pressupõe os costumes sobre os quais age, não é a ele, evidentemente que esses costumes devem a sua aparição. E o mesmo raciocínio vale para os costumes: se eles pressupõem o regime sobre o qual agem, não foram eles, manifestamente, que o criaram. Para sair desta aparente confusão, temos que encontrar o factor histórico que produziu simultaneamente os costumes de um dado povo e o seu regime político, criando ao mesmo tempo a possibilidade da sua interacção. Se descobrimos este factor, encontraremos o ponto de vista certo, objecto da nossa reflexão, e poderemos então resolver sem dificuldade a antinomia que nos embaraça.
Aplicado à contradição inicial do materialismo francês, vejamos o que isto significa: os materialistas franceses enganavam-se redondamente quando, contradizendo a sua concepção habitual da história, pretendiam que as ideias não são nada, porque o meio seria tudo, mas não é menor o erro existente na sua concepção habitual da história que faz da opinião a causa principal, fundamental, da existência de qualquer meio social dado. Existe, sem dúvida, interacção entre a opinião e o meio. Mas uma análise científica não pode limitar-se a reconhecer esta interacção, visto que esta não nos explica de modo algum os fenómenos sociais.
Para compreender a história da humanidade - no caso presente, a história das sua opiniões por uma lado e, por outro lado, a história das sociedades que ela conheceu no decurso da sua evolução - é preciso ultrapassar o ponto de vista da interacção, é preciso descobrir, se a coisa é possível, o factor que determina ao mesmo tempo a evolução do meio social e a evolução das opiniões. Cabia às ciências do século XIX a descoberta deste factor.(10)
É a opinião que governa o mundo. Mas a opinião não permanece invariável. O que é que preside à sua modificação? " A difusão das Luzes", respondia La Mothe le Vayer no século XVII. É a expressão mais abstracta e mais superficial da ideia do poder universal da opinião. Os filósofos do século XVIII agarraram-se firmemente a este conceito, completando-o por vezes com generalidades melancólicas sobre a sorte, infelizmente pouco certa, da luzes. Mas nota-se já entre os espíritos mais esclarecidos e isso é indesmentível, a consciência do que há de insuficiente numa tal concepção. Helvetius indica que o progresso dos conhecimentos está sujeito a leis, e que, consequentemente, há causas ocultas, causas desconhecidas de que esse progresso depende. Ele faz mesmo uma tentativa altamente interessante, e cujo verdadeiro mérito não foi ainda apreciado, para explicar a evolução social e intelectual da humanidade pelas suas necessidades materiais. Mas esta tentativa encerra-se finalmente por um fracasso. E, por muitas razões, não teria podido encerrar-se de outra maneira. Pelo menos permaneceria como uma espécie de legado testamentário para os pensadores do século seguinte que quisessem prosseguir a obra dos materialistas franceses.
Sem comentários:
Enviar um comentário