quinta-feira, fevereiro 24, 2011

O NEGRO E O VERMELHO

PROUDHON E A PROPRIEDADE

Em 1840, um homem escreve: “A propriedade, é o roubo!” e ele crítica violentamente os fundamentos. Seis anos mais tarde, ele “balança”: “A propriedade, é o roubo, e a propriedade é uma instituição de justiça”. Dois anos antes, ele escreve: “É preciso armar a propriedade contra o comunismo”. Quatro anos ainda, e afirma: “A propriedade deve ganhar sem cessar na liberdade e na garantia”. Seis anos passam, e este indivíduo proclama: “Pela justiça… a propriedade tornou-se num elemento económico e social”. Quatro anos passam e o mesmo homem, na sua teoria da propriedade conclui: “A propriedade… é o apoio e a grande mola real do sistema social”. E quando ele aflige, três anos antes, um revolucionário (Marx) que ele admira sempre, em seguida repreende-o pela sua versatilidade, não havia razão de o tratar, no artigo necrológico que o consagra de “sofista” e de “pequeno burguês”?

CONTRADIÇÕES E DESMENTIDOS PROUDHONIANOS?
O homem “versátil” que está em questão é mesmo Proudhon. Estas linhas contraditórias são bem as suas, e este procedimento da exposição, à rigorosa lógica cronológica, é certamente aquele, tão conhecido, das citações mutiladas. Mas isso diz, deve-se constatar que este conjunto tão terrivelmente imperfeito, resume muito perfeitamente o que, até à nossa época, um homem medianamente sensato, com as ideias sociais afirmadas, era ajuizado em conhecer o autor das contradições económicas.
Com este desconhecimento, ainda todo relativo, existem razões históricas. A maldição pura dos moderados (Proudhon, o anti-proprietário, o anarquista) e, sucedendo aos elogios ditirâmbicos, a maldição furiosa de Marx (Proudhon, “o merceeiro”, o “pequeno burguês”) são reencontrados para afastar os espíritos demasiado conformistas desta obra genial. E a reivindicação que os “maurassiens” fizeram – pelo preço de um verdadeiro contrasenso – não contribuirá para a confusão. Além disso, se Marx tivesse a felicidade de ter em Engels um amigo fiel e um grande clarificador, Proudhon não teria a oportunidade de ter, pelo menos em França, discípulos cuja envergadura intelectual e fidelidade teriam servido a inteira difusão e a exacta sobrevivência da sua mensagem. Desde logo, as deformações conscientes ou inconscientes que farão suportar à sua obra ignorantes e malévolos, produzirão as confusões resistentes; e estes contrasensos afastarão da obra proudhoniana aqueles que eram os mais certos a ler.
Será que Proudhon é exclusivamente a vítima de circunstâncias contrárias e de intrigas políticas? Não é ele de algum modo ou em parte, responsável por estas confusões de facto?

UNIDADE DAS INTENÇÕES MAS VARIAÇÃO DAS POSIÇÕES?
A parte constituída pela ignorância e pela malevolência, o pensamento de Proudhon não variou defronte do problema que está no mesmo centro da sua obra, o tal da propriedade? Relativamente a esta última, não tomou ele diversas posições? Elas comprometeram o fundo ou simplesmente a forma? E, num e noutro caso, estas variações exprimem uma inversão de opinião ou traduzem uma resposta progressiva a um problema complexo? Enfim, não se constata nesta evolução, além de um aperfeiçoamento constante dos meios e das soluções propostas, uma unidade profunda, uma coerência indiscutível nos princípios e nos objectivos?
A esta série de questões, todo o intérprete de boa fé que foi firme, o saboroso e o paciente prazer de ler atentamente o conjunto da obra proudhoniana, faz geralmente a resposta de um Sainte-Beuve.
Para ele, a unidade do príncipio é inegável. Ele vê-a no ideal de uma justiça social e de uma economia “moralizada”: “Esta unidade consiste, escreve o autor das Segundas em que o autor não parou de procurar determinar a justiça social universal que deverá lucrar todas as classes da sociedade (…) e a introduzir a moral na economia política, nele “submetendo a liberdade de cada um ou as forças egoístas da sociedade”.
Mas, para a grande crítica, esta unidade dos princípios e dos fins não impede nada, mas justifica pelo contrário, a evolução das posições proudhonianas e a franqueza com a qual ele a expõe: “Esta espécie de confissão pela qual ele oferece um tão grande dia (…) sobre a evolução do seu pensamento, foi-lhe censurado (…) pelos ininteligentes e pelos malevolentes que se purificam a transformar o que ele tinha dito da variedade dos seus estudos numa confissão descarada da variação dos seus sentimentos (...). proclama-se ao sofismo e à forma que lá se emprestará, mas o fundo da sua doutrina descansará sempre na união invariável de sentimentos (…) que ele professará até ao fim”.
É esta posição clássica de um Proudhon “de boa fé” que um economista como Gaëtan Pirou repreende: “Apesar das contradições que lhe seria ingénuo negar, apesar das incoerências e das hesitações inevitáveis, a obra de Proudhon tão espessa, tão complexa, apresenta uma unidade profunda porque ela é dominada pela preocupação constante de fazer em tudo e por tudo triunfar a justiça”. Esta tese de unidade “na intenção”, encontramo-la junto de um teólogo, como Henri de Lubac que falará da “justiça, ideia central da sua obra”, e junto de um sociólogo, como Célestin Bouglé, que revela “sob as variações que a diversidade das circunstâncias explica, uma mesma vontade fiel aos mesmos princípios (…) e apesar de tantos obstáculos (…) o mesmo ideal social”. Exprimida aqui por personalidades diversas como aquelas do escritor, de um economista, de um sociólogo e de um teólogo novalista, esta posição mediana significaria que se os princípios e os objectivos morais e sociais de Proudhon não mudaram, as traduções concretas que ele deu mudaram. Assim, a “invariância” ou constância das proposições e dos fins – mais evolução ou variação das posições e dos meios: tal seria o condensado destes julgamentos.
Desde logo, as diferentes posições que Proudhon teria tomado defronte da propriedade aparecem – intelectualmente – como as sucessivas traduções de um mesmo ideal de justiça social, e – pragmaticamente – como os progressivos ajustamentos de um empirismo na base do realismo, de boa fé e de experiência renovada.



FIRMEZA DOS PRÍNCIPIOS E DAS POSIÇÕES
Esta explicação corrente, por conter uma parte de verdade, assemelha-se um pouco superficial e própria a ancorar nos espíritos rápidos ou de má fé a imagem de um Proudhon cuja firmeza das boas intenções teóricas não impede nada a incoerência de um pensamento prático. Ora, a unidade do pensamento proudhoniano é uma unidade na fé racional e pragmática cujas concepções e construções traduzem simultaneamente a permanência. Para melhor discernir esta unidade inteira, Bouglé não nos mostra nada do caminho quando ele escrevia, na passagem já citada: “É preciso, para decidir (a unidade deste pensamento) seguir passo a passo o seu desenvolvimento, assistir ao trabalho íntimo por aquele, no fundo da experiência aumenta, ela procura responder aos problemas que ainda lhe coloca… Talvez então apercebia-se que uma mesma solução económica o assediava, cuja obsessão explica as suas reacções diversas”.
Tirando lucro das inúmeras interpretações proudhonianas, e de leituras e reflexões renovadas, nós não poderíamos demonstrar que para resolver o problema da propriedade, Proudhon propõe do príncipio ao fim da sua obra “uma mesma solução económica”?
Desde logo, as pretendidas variações de posição não aparecerão na realidade como a conjunção de uma variação de vocabulário, de uma diferença de acentuação e de uma formulação cada vez mais precisa, ou seja, de uma estruturação cada vez mais desenvolvida do seu pensamento primitivo.
-Formalmente, se lá houvesse variação da posição de Proudhon sobre a propriedade, isso seria essencialmente uma variação de vocabulário. Se as definições da propriedade – monopólio e da propriedade – função ficarão nos mesmos de uma ponta à outra da obra proudhoniana, os seus nomes mudarão. Com efeito, Prouhon, depois de ter respectivamente nomeado “propriedade” e “possessão”, chegará, seguidamente, a dar-lhes a mesma denominação corrente de “propriedade”. Mas abandonando o nome de “possessão”, é com a causa das confusões e das consequências jurídicas que ele implicava (domínio eminente reservado ao poder público) chegaria com o mesmo golpe a suscitar, em sentido contrário, uma nova confusão de linguagem para aqueles, numerosos, que identificam as coisas com o mesmo nome, mesmo que as qualificativas precisas os diferenciem.
-Circunstancialmente, ele teria igualmente uma diferente acentuação nos papéis que Proudhon dará à “solução económica” que deve resolver o problema da propriedade. Primitivamente, ele ergue a sua propriedade – possessão, a fé contra a feudalidade capitalista, e contra o estatismo comunista. Seguidamente, consciente da força grandiosa do estadismo – continuando a criticar violentamente a feudalidade industrial onde ele profetiza o desaparecimento – insistirá sobre o papel protector e libertador da propriedade – função (individual ou colectiva), face a este estadismo super- proprietário onde o comunismo autoritário é para ele a expressão mais perfeita. Desde logo, os espíritos partidários serão tentados a revelar, nesta acentuação, uma variação ideológica – Proudhon não parou de lutar a fé contra o absolutismo proprietário de uma raça identificando-se com a sociedade, e um Estado identificando-se com um povo.
-Fundamentalmente, ele não teria variação, nem na concepção da propriedade – função, nem no essencial da construção proposta. Mas uma formulação cada vez mais explícita leva Proudhon a adaptar esta propriedade - função (a “possessão” dos primeiros tempos) – prevendo-lhe o estabelecimento progressivo no tempo, e a aplicação diversificada segundo os diferentes espaços económicos (agricultura, indústria, serviços), sociais e políticos (esfera nacional ou internacional).
Desde logo, a construção proposta tomará uma complexidade tanto mais que a sua exposição se encontrará projectada entre muitos livros e que o carácter espesso, e por vezes altivo, destas obras desmascarará a lógica e a coerência.
É a conjugação deste enriquecimento fundamental, desta acentuação circunstancial, e desta variação formal que fará criar ignorantes e malévolos no desmentido, e ocultará de inúmeros comentadores de boa fé a constância das posições e das soluções proudhonianas.

UMA SIMPLES MUDANÇA DE VOCABULÁRIO
Desde a sua Primeira Memória, Proudhon distingue dois tipos de direitos: a propriedade – roubo “direito de usar e abusar”, “direito ganho, ou seja, de produzir sem trabalhar”, “direito de invasão e de exclusão” – e a propriedade – utilitária (propriedade – função nomeada por ele como “possessão”): “direito de usar uma coisa conforme a utilização geral”, direito “colocado sob a vigilância da sociedade, submetida à condição do trabalho e da igualdade”.
Este último direito aparenta-se-lhe como o direito de usufruir. Com efeito, ele escreve, “misturais de interesse geral, até à plena saturação esta propriedade – monopólio, vós terão um príncipio novo análogo, não idêntico, ao direito de possessão e de uso conhecido dos velhos juriscônsules”. (sobre o direito da propriedade, explicações). Mas pode-se então exigir-se porquê Proudhon se recusa, antes de mais, chamar este novo direito com o nome de “propriedade – utilitária” ou de “propriedade -função”. “A possessão individual foi “nomeada primeiro propriedade” reconhecia bem Proudhon (Segunda Memória) e segundo M.Leroux, “ele não teve propriedade e propriedade: uma boa e a outra má?” Na realidade, Proudhon crê que uma identidade de nome não serve para justificar, por uma simples confusão de linguagem, a propriedade – monopólio ao mesmo tempo que a propriedade – função.
“Convêm-lhe, escreve ele, de chamar as coisas diferentes de nomes diferentes. Se se conserva o nome da propriedade pela primeira espécie, é preciso chamar a segunda “furto”. Se, pelo contrário, reserva-se para aquele o nome de propriedade, é absolutamente necessário substituir aquele por este de possessão ou por outro equivalente. Tanto mais que ele arrebatava uma sinonímia odiosa,” (Segunda Memória).
Mas os espíritos mais evoluídos receiam, no seu conservadorismo mental, a publicidade de uma mudança de nome que a realidade de uma mudança de definição. “Se eu dizia, escreve Proudhon, que a propriedade é um bem, mas a propriedade – casta, a posição da propriedade, é um mal, eu seria um génio pregado pelos bacharéis das investigações. Se, pelo contrário, eu prefiro a língua clássica de Roma e do código civil e se eu digo que a possessão é um bem, mas a propriedade é um furto, imediatamente os súbditos bacharéis protestam o monstro… Poder de expressão!” (Segunda Memória). O que chama ele de “propriedade”? Ele esclarece-o claramente: “Existe na propriedade uma loucura de abuso e odiosos abusos… eu chamo exclusivamente propriedade a soma destes abusos…” (Segunda Memória). Entretanto, Proudhon hesita diante do equívoco seduzido pela sua apelação de “possessão”. Presentemente a “diferença está bem estabelecida entre propriedade e possessão, e a primeira” (a propriedade – monopólio) “deve necessariamente desaparecer, convêm-lhe para a frágil vantagem de restaurar uma etimologia de conservar o significado da propriedade?”
Assim o puro Proudhon balança com o Proudhon realista. Mas ele não comete um “laxismo”, em sentido contrário, recuperando do significado de “propriedade” “a soma dos abusos proprietários”? Na sua Terceira Memória, nós vemo-lo ainda atordoado no equívoco da linguagem que estes escrúpulos criaram.
“A propriedade é hoje em dia abusiva, refere. É preciso devolvê-la à sociedade…- Eu não exigo o melhor. – Por isso, é necessário substituir o trabalho dividido, a concorrência egoísta, a repartição arbitrária, pela exploração unitária, a solidariedade e uma melhor repartição dos produtos. – É isto que eu não paro de repetir. – então, vós nunca declamareis contra a propriedade? – Sem dúvida… porque então a propriedade não será mais…”
Mas, desde 1843, com a Criação da Ordem, Proudhon admite que há falta, o que ele tinha chamado “possessão” e definido como propriedade. “A propriedade, desde que ela existe, é indefensível, ela inclina-se contra a sua ruína, ou se quisermos, se o significado parece bastante duro contra a sua metamorfose (…); a responsabilidade do trabalho aplicado à propriedade mudará aqui um direito novo que não teria nada mais em comum com o antigo que o príncipio (a individualidade) e talvez o nome”. E neste mesmo capítulo V da criação da ordem, Proudhon vem conceder esta definição que parece ser extraída da teoria da propriedade, que ele escrevera vinte anos mais tarde: “o direito da propriedade (já o nome de possessão é abandonado) é uma ficção legal na qual reconhecemos mais tarde a utilidade para a formação e a mobilização dos capitais, a responsabilidade dos trabalhadores e a liberdade individual. “Era reconhecer na propriedade das funções económicas, pessoal e social, às quais iria juntar, cinco anos mais tarde (Direito ao trabalho e à propriedade) uma função política, como” equilíbrio do estadismo. Desde logo, em 1846, nas Contradições económicas, propriedade-monopólio e propriedade-função são denominadas da mesma maneira: “A propriedade é o preço do trabalho e a negação do trabalho … a propriedade é uma instituição de justiça, e a propriedade é o furto”. Sob o mesmo nome e com a mesmo instituição, existem dois direitos diferentes, dois princípios contraditórios.
Assim apresentada a casa aparentava-se entretanto um pouco à deriva da prestidigitação: com efeito, Proudhon entende reunir nesta formulação duas constatações: de um lado a propriedade presente, justificando os seus abusos para as suas utilidades, é ela mesma contraditória: do outro lado, esta contradição interna (entre a propriedade-trabalho e a propriedade-fortuna) produz um processo dialéctico que, voluntariamente e judicialmente utilizado, pode permitir à propriedade fazer-se “equação”, de se equilibrar purificando-se. O que ele explicará doze anos mais tarde na Justiça, escrevendo: “o que eu procurava desde 1840 definido a propriedade, o que eu quero hoje em dia (…) é que se faça o balanço”.

UMA MESMA DEFINIÇÃO DA PROPRIEDADE
E Proudhon, numa passagem pela capital da sua teoria da propriedade resume o publicado exacto da sua evolução: “Em 1840, ele tinha 22 anos, pronunciava (…) a condenação da propriedade, desde que ela fosse produto no direito romano e no direito francês, na economia política e na história. Eu repousava, nestes termos não menos energéticos, a hipótese contrária, a comunidade. Qual era então o meu pensamento? Que a propriedade deveria ser sintetizada numa fórmula superior dando igualmente satisfação ao interesse colectivo e ao interesse individual. Eu dava (nota-se a confissão claramente proibida) a esta fórmula superior prevista e afirmada por mim desde 1840, o nome provisório e equívoco de possessão, termo equívoco que eu não podia querer e que eu abandonei:
Qual era esta fórmula superior? A “propriedade – função” é a mesma que ele definia sob o nome abandonado de “possessão” como “um direito de usar uma coisa conforme a utilização geral”, um direito “colocado sob a vigilância da sociedade”. É esta mesma instituição que ele previa, desde 1843, como um “direito novo” de propriedade, assegurando “a responsabilidade do trabalhador e a liberdade individual”. A propriedade, esclarece ele na sua Teoria, “não pode ser um direito já que ela é uma função”. E esta função é quádrupla: pessoal, económica, social e política.
É ela antes de mais pessoal: a propriedade “é acordada ao homem com vista a protegê-lo contra os atentados do poder e as incursões dos semelhantes. Assim concebida “ela revela-se como uma função à qual todo o cidadão é chamado”.
Mas esta função é igualmente económica. “A humanidade não é ela própria a proprietária da terra (…) nós devemos cultivá-la, possuí-la, usufruí-la”, não arbitrariamente, mas segundo “as regras e os fins que excluem todo o absolutismo”. A este respeito, todo o proprietário contracta em presença daquele dos “compromissos” que limitam o seu próprio direito.
Ele segue-se que esta função é também social. “O cidadão, enquanto trabalha, produz, possui,” fá-lo” em função da sociedade, mas não é de todo funcionário do Estado”, pois esta propriedade serve justamente para o precaver contra as usurpações estatais.
Também, finalmente, esta função revela-se igualmente política:” Servir de equilíbrio ao poder público, balançar o estado, e por este meio assegurar a liberdade individual: tal será, no sistema político, a função principal da propriedade”.
Na verdade, mais ainda que o poder capitalista, “o poder do estado é um poder de concentração”. Se deixamo-lo agir sem equilíbrio, “toda a individualidade desaparecerá (…) a sociedade tomba na comunidade”. Que é que sobressai finalmente desta aproximação e deste encadernamento de textos que vão desde os primeiros escritos de Proudhon até à sua morte? Uma condenação constante da propriedade – monopólio: uma mesma concepção prática de uma propriedade – função: o abandono do nome provisório de “possessão”, reconhecido equívoco e inadequado ao seu pensamento; enfim a descoberta, no centro do feito proprietário, de um processo dialéctico real, relativizando os absolutos que se afrontam, e permitem, pela organização da sua oposição permanente, um equilíbrio dinâmico da propriedade.

FIRMEZA NOS MEIO E NAS SOLUÇÕES
Através de uma experiência sem aumento, uma grande firmeza de concepção política: tal é a constatação à qual nós provocámos o exame dos testes. Mas não se pode ir mais longe na análise, e mostrar que Proudhon, do príncipio até ao fim, nem sempre proposto, para resolver o problema da propriedade, que uma mesma solução económica? Sem dúvida, de esquemático a simples, esta solução se tornaria muito detalhada e muito complexa. Sem dúvida, a sua crença no estadismo obrigará Proudhon a acentuar-lhe algumas clarezas. Mas o esboço ficará idêntico de uma ponta à outra da obra.
Desde o seu primeiro livro, Da Celebração de domingo, Proudhon indica os limites práticos nos quais se inscreve a procura de uma solução económica na qual define os princípios de uma vez por todas: “Descobrir e constatar as leis económicas, restritivas da propriedade, distributivas do trabalho, (…) encontrar um estado de igualdade social que não seja nem comunidade, nem despotismo, nem fragmentação, nem anarquia, mas liberdade na ordem, e independência na unidade (…) e, este primeiro ponto resolvido, (…) indicar o melhor modo de transição”. E na sua Primeira Memória, ele esclarece o seu programa pela procura “de um sistema no qual todas as instituições actuais, menos a propriedade ou a soma dos abusos da propriedade (nota-se a nuance essencial) podem não só encontrar lugar, mas que elas sejam elas mesmas um meio de igualdade”. Assim, desde esta época, Proudhon indica o meio e a prática de “purgar” a propriedade abusiva: a acção das instituições sobre a propriedade e a “socialização” do meio económico. E na sua Segunda Memória, ele destaca um segundo meio: a relativização da propriedade pela generalização dos direitos de todos. E isto que ele explica muito claramente na sua Terceira Memória: “Esgotar as consequências do regime proprietário desenvolvendo os direitos de todos, é na minha opinião o único modo racional de nos elevarmos sem impulso a uma forma social sintética”. E, na mesma época, ele resume assim os princípios de acção da solução económica que ele preconiza: “Em duas palavras, abolir progressivamente e até à extinção da fortuna, eis a transição. A organização resultará do príncipio da divisão do trabalho e da força colectiva combinadas com a conservação da personalidade do homem e dos cidadãos”.
Uma vez cercados os assuntos e os carácteres desta solução económica, e desempenhados os princípios gerais da acção, que meios vai ele efectivamente emprestar para acelerar o acontecimento desta solução económica? É diante de toda a acção institucional dobrada numa acção reivindicadora? Esta acção institucional deve traduzir-se pela constituição de um “direito do trabalho” e “a consequência necessária” desta constituição “será a transformação do direito absoluto, sob o qual nós vivemos, no direito profissional”. Animado pelo príncipio de reciprocidade e de respeito mútuo, este “direito do trabalho” e suas implicações práticas conduzirão à perturbação da jurisprudência… reconstituí-la a ajudar um novo direito administrativo e do elemento económico” (Terceira Memória).
Desde a sua Primeira Memória, Proudhon marca a consequência prática da aplicação deste direito económico à propriedade:
direito de operário “na participação dos produtos e nos benefícios” e na “propriedade – social” resultado do trabalho colectivo;
direito do caseiro “a uma porção da propriedade (…), ao novo valor”, produzido pelo seu trabalho.
Mas estas consequências proprietárias não deverão ser, em caso algum, assimiladas pelo direito do Estado identificando-se com uma comunidade. “A comunidade, é a morte!”, escreveu Proudhon, desde a sua primeira obra, porque a comunidade é o proprietário absoluto por excelência. “A comunidade é proprietária, e proprietária não somente de bens, mas de pessoas e de vontades”. Também, desde 1846, nas Contradições, ele engloba este direito económico “numa teoria da mutualidade (…) num sistema de garantias (…) que tem lugar de dar crédito ao capital e o Estado (…) e sem interditar a iniciativa individual (…) restabelecem incessantemente a sociedade, as riquezas que a apropriação destroi”, e , na sua revolução social, ele exige uma restruturação mutualista da economia “substituindo sobretudo o direito relativo e móvel da mutualidade, ao direito absoluto da propriedade”.
Desde já, na sua criação da ordem, Proudhon tinha delineado a sua concepção prática da economia, concebida como uma sócio-economia articulando-se numa compatibilidade económica, uma sociologia económica, e um direito económico. As Contradições económicas esclarecem esta articulação, indicando claramente a natureza, colocando-a no papel que ele entende reconhecer neste direito económico no qual a mutualidade será a fonte e o príncipio director bem como realizador. Assim, esta solução económica que Proudhon indica desde os primeiros escritos – este direito económico real à base da reciprocidade, de responsabilidade, de trocas e de trabalho; este regime económico restruturando propriedade e instituições – não é mais que o direito mutualista, regime que insere, no centro de uma economia contratual, propriedades – função diversificadas e instituições especializadas. Desde logo, este “direito económico” aparece como a expressão de um “mutualismo económico” apresentando-se conjuntamente como um príncipio permanente do “equilíbrio” e da “organização” (“o príncipio da mutualidade”) – como uma acção institucionalizante traduzem, regularizam e protegem as instituições abertas e evoluídas da vida dos grupos e das realidades sócio-económicas; enfim, como um direito pluralista exprimindo as relações vivas e os benefícios dinâmicos das forças, das pessoas e dos grupos que constituem a economia e a sociedade económica.
“ O que é que constitui o direito económico no qual eu tenho vezes falado nas publicações económicas, concluí Proudhon neste testamento que é a capacidade política das classes operárias, (…) deve-se compreender imediatamente, que é o regime da mutualidade. Ao redor das instituições mutualistas livremente formadas pela experiência e pela razão, os feitos económicos não são mais que uma confusão de manifestações contraditórias, produto do destino, da fraude, da tirania e do furto” (capítulo XIV).
Assim, na exposição sem riqueza da sua solução económica, a linha é contínua, sem falhas. Ele cansa-se de seguir muito atentamente, de passagem em passagem, de um livro ao outro, a corrente do rio proudhoniano, sem o deixar agarrar pelos braços mortos das digressões nem pelas rupturas de plano, e sem se afastar ao horizonte de uma só obra.

A CONSEQUÊNCIA DE UMA FIDELIDADE
As suas últimas obras: Do Príncipio federativo, Da Capacidade política das classes operárias, e Teoria da propriedade – que os espíritos superficiais ou mal intencionadas consideram por vezes como contraditórias – formam na realidade um ”tryptique”, na qual as superfícies complementam-se perfeitamente para expor em toda a sua fecundidade esta solução económica na qual Proudhon dá antes de mais, o esboço essencial, mas que ele não deixou de desenvolver. Esta “teoria mutualista e federativa da propriedade” a que Proudhon fala no fim do capitulo XIII da capacidade devia ser a exposição sintética desta solução económica que ele tinha ocultado após vinte e cinco anos. Se a morte impediu a publicação desta livre síntese, a Teoria da propriedade dá-nos, com os seus outros dois testemunhos ( Princípio Federativo e Capacidade), o essencial. E com as passagens construtivas dos seus livros anteriores (nomeadamente a Justiça, a Guerra e a Paz, A Ideia geral da Revolução) nós poderemos reconstituir a estrutura e as aplicações.
A propriedade é uma função. As suas funções são pessoal, social, económica e política. Desde que a propriedade permaneça um direito absoluto, mas desde que ela seja um absoluto ao qual são chamadas todas as pessoas individual ou colectiva - ela relativiza-se diante dos indivíduos e das colectividades sociais.
Direito absoluto, mas direito absoluto de todos, ela torna-se:
Uma função relativa a todo o homem que tem direito à propriedade da sua pessoa e dos frutos do seu trabalho;
Uma função relativa à sociedade e às colectividades sociais que pela sua existência e pela coordenação dos esforços que elas mantêm e permitem trocas, divisão do trabalho e desempenho de um excesso colectivo.
Assim todo o homem possui, mas em função da sociedade, e os membros das colectividades sociais têm, em muitos ganhos pessoais, um direito de propriedade sobre o excesso colectivo produzido pela união dos esforços.
Como função económica, este direito absoluto de propriedade produz igualmente um trabalho absoluto de produzir “Segundo os fins e as regras “. Este trabalho absoluto relativiza o direito absoluto de possuir.
Quanto à função política da propriedade, ela não conduz a conceder ao direito absoluto da propriedade a um Estado identificando-se ficticiamente a uma comunidade, mas a relativizar o Estado pela propriedade. Com tanto que absoluta, ela deve contrabalançar com este outro absoluto que é o Estado.
Assim, pelas suas funções pessoais, sociais e económicas, a propriedade direito absoluto é provocada a relativizar-se pelo exercício deste direito absoluto pelos outros homens, pela sociedade, pelos trabalhos absolutos que ele conduz em matéria económica. Ela é à sua maneira obrigada a relativizar o absolutismo do Estado sabendo face a si como um direito absoluto exercido pelo conjunto dos proprietários individuais e colectivos.
Desde logo, a propriedade – “relativizada” interiormente pelo exercício do direito absoluto de todos os titulares deste direito – tornam-se exteriormente, mesmo em conjunto, adestrado face ao estado, um direito absoluto com o qual deve compôr a natureza absolutista do poder político.
Tal é a “metafísica” profunda desta teoria pragmática. Ela anima e explica toda a estruturação mutualista e federalista que unifica e diversifica á vez esta “solução económica” oculta com todo o cuidado.
A mutualização da agricultura e da constituição de propriedades de exploração:
a “socialização” progressiva da indústria pela participação e co-gestão, e a constituição ao lado das propriedades artesanais, de propriedade empreendidas
a organização cooperativa dos serviços (seguros, crédito, comércio)
a multiplicação das instituições mutualistas suscitam entre eles conjuntos, o tecido de uma economia contratual
a criação de “federações agrícola-industriais” destinadas a compôr, face ao Estado e à “constituição política”, a sociedade económica, detentora de um direito absoluto de propriedade e fecham da “constituição social”: toda esta estruturação parte da “teoria mutualista e federativa da propriedade”.
Também Proudhon, nas últimas páginas da sua Teoria da propriedade conclui: “Graças a esta solução económica, a terra não está nas mãos do Estado, mas sob a mão de todos (…) cada trabalhador tem a mão sobre uma porção de capital”, e ele prevê “cedo ou tarde a exaltação destas estruturas libertadoras”. Mas para que esta exaltação seja possível, é preciso que as estruturas políticas sejam animadas e dispostas segundo os mesmos princípios.
Qual é este “príncipio político” que deve ser “adequado e idêntico ao príncipio económico?” É “o príncipio federativo, sinónimo de mutualidade e de garantia” (Capacidade, capítulo XIII). Assim, “transportado na esfera política, o que nós temos chamado até aqui de mutualismo, toma o nome de federalismo. Numa simples sinonímia é-nos dada a revolução toda inteira” (Ibidem).
Mas, federação política implicará federação económica, e emancipação política, emancipação económica: “O problema do proletariado e aquele do equilíbrio europeu estão solidários (…). É preciso ao direito político confrontá-lo com o direito económico (…). Se a ordem federativa não serve para proteger a anarquia capitalista e mercantil, melhor será para os povos, a unidade imperial que a federação” (Príncipio federativo, capítulo XI).
As propriedades submetidas ao regime da mutualidade, os Estados submetidos à ordem federativa, serão suficientes? Não, pensa Proudhon. “O elemento da regeneração” é ainda com “o equilíbrio da propriedade… a revolução moral” (Teoria da Propriedade, conclusão); é ainda com a “federação (…) os princípios da justiça iminente (capítulo I).
Parti da justiça e do direito absoluto que todo o homem possui. Proudhon chega à propriedade mutualista e à ordem federativa. Alguma variação, alguma mudança real de posição; um enriquecimento constante, uma boa fé absoluta. Um sistema completo? Não, pois isso seria a mensagem da utopia: “O povo queria acabar, ora (…) ele não teve o fim” (carta a Langlois, Dezembro 1851). “Nós nunca seremos o fim do direito, porque nós nunca cessaremos de criar entre nós novos benefícios” (Justiça, I, capítulo IV).

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