segunda-feira, abril 25, 2011

O NEGRO E O VERMELHO

FILOSOFIA DA MISÉRIA, MISÉRIA DA FILOSOFIA

“Recebi o libelo do sr. Marx, em resposta à Filosofia da Miséria:
é um composto de grosserias, falsificações, plágios...”
Pierre-Joseph Proudhon
Carta de 19 de setembro de 1847 ao sr. Guillaumin1


A Polêmica das duas “Misérias”
Sem pretender retomar a já longa história das relações complexas entre Proudhon e Marx, queria centrar a nossa atenção sobre a polêmica que se desenrolou em 1846-1847, e que deu lugar ao livro de Marx Miséria da Filosofia, respondendo à obra de Proudhon: Sistema das Contradições Econômicas ou Filosofia da Miséria.Relembremos rapidamente as circunstâncias e algumas datas.Proudhon era nove anos mais velho que Marx e, desde 1840, tinha adquirido um grande prestígio no debate político e no movimento de crítica social enquanto que Marx era ainda, nesta época, estudante, depois jornalista de inspiração liberal.Deste modo, logo que Marx chega a Paris em novembrode 1844, encontra em Proudhon um líder socialista reconhecido, e as numerosas noitadas que passa com ele são contemporâneas da sua rápida evolução ao encontro das posições socialistas e comunistas. A troca de cartas entre eles, em maio de 1846, situa-se neste diálogo: Marx propõe a Proudhon estabelecer uma correspondência confidencial entre líderes intelectuais; Proudhon responde exprimindo as suas reservas a respeito de um tal projeto e anuncia a Marx que prepara uma grande obra crítica: será o Sistema das Contradições Econômicas, que será publicado em outubro de 1846. A partir da recepção deste livro, Marx empreende a refutação polêmica sob o título irônico de Miséria da Filosofia, que será publicado em julho de 1847.Todos estes fatos são bem conhecidos, e podemos encontrar uma boa exposição no livro de Pierre Haubtmann: Proudhon, Marx et la pensée allemande. 2 Do mesmo modo são bem conhecidos os poucos textos de Proudhon que dizem respeito às suas relações com Marx e as páginas bastante numerosas de Marx sobre Proudhon, que vão desde os juízos de admiração dos anos de 1842 até aos textos constantemente críticos após 1847.Não irei retomar a totalidade deste grande dossiê que é rico em múltiplas implicações pessoais, sociais, científicas, políticas. Queria apenas reter o momento desta ruptura, e retomar a leitura paralela destes dois textos: Sistema da Contradições Econômicas e Miséria da Filosofia para tentar compreender melhor algumas dimensões essenciais deste diálogo entre Proudhon e Marx, e a sua interrupção.Estamos perante dois textos, ou melhor, três. Com efeito, possuímos as anotações feitas por Proudhonà margem do seu exemplar da obra de Marx.E estas reações, apesar de rápidas e pouco desenvolvidas, são extremamente ricas de ensinamentos.E quereria dar a estas respostas de Proudhon mais importância do que habitualmente se faz. Estas respostasprolongam, com efeito, a discussão, e estamos desta maneira em presença de três textos de inspiração e de status diferentes: o Sistema da Contradições Econômicas, em que Proudhon tem a iniciativa teórica, em seguida Miséria da Filosofia, no qual Marx se cola ao texto de Proudhon para criticálo, e também um terceiro texto, estas notas marginais nas quais Proudhon faz a crítica da crítica, e persegue, por assim dizer, o diálogo, em resposta às invectivas...Relembremos antes de tudo até onde vai a ambição de Proudhon nesta grande obra de cerca de 800 páginas que foi escrita durante mais de três anos. Trata-se de um verdadeiro somatório que visa construir uma síntese das dimensões econômicas, sociais e políticas do regime capitalista, do regime proprietário. Ambição que vai bem para além da Primeira Memória sobre a Propriedade, pois não se trata somente de denunciar a relação de propriedade, mas de desenvolver todas as conseqüências e mesmo abrir vias de reflexão em direção às posições políticas que Proudhon prolongará ulteriormente. Trata-se de demonstrar que o regime capitalista está atravessado por contradições sócio-econômicas, e mais abundantemente, mostrar que estas contradições formam um verdadeiro sistema, uma unidade dinâmica de forças antagônicas que provocam por sua vez a vitalidade do regime e os seus efeitos destruidores. Trata-se de pensar o regime capitalista como totalidade, sem pretender, naturalmente, fazer uma análise exaustiva, mas com a ambição de fazer aparecer as estruturas fundamentais e as atividades essenciais.A dialética será então o instrumento intelectual necessário para analisar e ligar estas oposições, estas antinomias, estas tensões. Coloca-se, então, a Proudhon, a questão da natureza destas dialéticas e a urgência para ele de precisar este método e de justificá-lo. Questão que não é completamente nova, pois, já no livro anterior, A Criação da Ordem, Proudhon tinha procurado respostas para esta questão.Tinha então procurado naquilo que chamava a “dialéticaserial” o instrumento de análise dos fenômenos humanos. O pensamento de Proudhon está, neste ponto, em evolução, em trabalho, com a preocupação essencial expressa em A Criação da Ordem, de descobrir a especificidade das relações sociais e, por isso, de fazer aparecer, como ele escreve então, o seu caráter “ideo-realista”.
3 Enfim, a ambição de Proudhon, neste grande livro do Sistema das Contradições, é tirar as conclusões políticas destas análises, e, em particular, debater os planos de reforma social que não cessam de ser propostos desde os anos de 1820. Proudhon continua o seu projeto, ilustrado desde 1840, de examinar de maneira crítica estes projetos de reforma e de opor uma crítica científica às utopias saint-simonianas e fourieristas em particular. Projeta, ou pelo menos sonha, em arrancar o pensamento socialista às suas utopias. Ora, estes pr ojetos ambiciosos são exatamente os de Marx, e particularmente nos anos de 1845- 46, no curso dos quais opera a crítica das suas posições anteriores, denuncia por sua vez a tradição filosófica alemã e as posições liberais. Abandona nesse momento a problemática econômico-filosófica dos manuscritos de 1844 pela qual se esforçava pensar a alienação operária a partir de uma dupla leitura econômica e filosófica. É precisamente nestes meses do ano de 1845, em que redige com Engels A Ideologia Alemã, que repensa esta problemática e planeja consagrar os seus esforços à análise econômica.É nesse momento que formula o projeto de uma crítica da economia política que se tornará O Capital. Interessa-lhe então repensar as suas relações com a filosofia de Hegel e redefinir a dialética.Como Proudhon, Marx associa estreitamente o projeto científico e o programa político. Propõe-se, como Proudhon, a denunciar as utopias sociais que interpreta como etapas que devem ser superadas, e ambiciona fundar a teoria política, a teoria revolucionária sobre uma ciência renovada da economia e sobre a teoria materialista da história. Em 1845-46, Proudhon e Marx têm, portanto, os mesmos projetos, as mesmas ambições, e há todos os motivos para pensar que os seus encontros e as suas discussões se alimentaram desta identidade de vistas. Sabemos pelos seus próprios testemunhos que discutiram abundantemente questões filosóficas, de Hegel, de Feuerbach, e de economia política.Numa das suas notas marginais ao livro de Marx, Proudhon escreve: “O verdadeiro sentido da obra de Marx é que ele lamenta que em toda parte pensei como ele, e que o disse antes dele”.
4 Fórmula naturalmente insuficiente, mas que contém uma larga parte de verdade, de tal modo os projetos de um e do outro estavam próximos. A irritação de Marx, a sua agressividade a respeito do livro de Proudhon, alimenta-se desta cumplicidade de irmãos inimigos na qual se misturam confusamente os pontos de desacordo e os entendimentos fundamentais.Marx, nos seus anti-Proudhon, retém três pontos de ataque que se situam a níveis diferentes: a análise econômica antes de tudo, o método dialético em seguida, as conclusões políticas por fim. Examinemo-las sucessivamente:1. A polêmica sobre a economia. É objeto das primeiras páginas do livro e que anuncia o título trocista do primeiro capítulo: “Uma descoberta científica”.Marx toma como objetivo as teorias do “valor constituído” e da “proporcionalidade dos produtos” que Proudhon tinha proposto no seu segundo capítulo.Esta polêmica desenrola-se a partir dos postulados de base que Proudhon tinha anunciado desde 1840 e que retomam as teses de Adam Smith e Ricardo sobre o valor trabalho.Marx e Proudhon partem do mesmo princípio fundamental segundo o qual, como o repete Marx: “... o valor relativo de um produto é determinado pelo tempo de trabalho necessário para produzi-lo”. Há bem uma “proporcionalidade”, um “ganho de proporcionalidade” como conseqüência do valor determinado pelo tempo de trabalho. E Marx discute sobretudo as formulações que os princípios. Do mesmo modo, Marx retoma como uma evidência, e sem insistir, a teoria do salário: teoria do salário-sustento da força de trabalho que Proudhon tinha exposto na Primeira Memória, retomando esta teoria de Ricardo ou de Eugène Buret, por exemplo. Por fim, Marx retoma, se não os termos, pelo menos a idéia fundamental da extorsão dos valores, a idéia do “roubo” proprietário, que elaborará mais rigorosamentena teoria da mais-valia. Marx vai discutir as formulações de Proudhon, reprovar-lhe negligenciar o “movimento constituído” que faz do trabalho a medida do valor, de negligenciar provisoriamente o “antagonismo das classes”, mas a discussão situa-se no interior do mesmo quadro teórico.Quais foram as reações de Proudhon a estas críticas relativas à análise econômica? Enquanto que o iremos ver reagir vigorosamente às discussões relativas à dialética, não escreve nada, nem uma frase, à margem deste capítulo! Como que, até parece, estas objeções poderiam fazer parte de uma discussão que importava continuar. Só encontramos aqui uma única palavra: Proudhon escreve um “Oui”, não na seqüência de uma análise de Marx, mas à margem de um excerto que Marx transcreve de uma obra do socialista inglês Bray, de 1839. O excerto é o seguinte: “Os produtores só têm que fazer um esforço — e é por eles que todo o esforço pela sua própria saúde deve ser feito — e as suas cadeias serão para sempre quebradas...Como fim, a igualdade política é um erro, ela é mesmo um erro como meio”.5 Esta única reação de Proudhon indica claramente que as seus olhos, uma tal afirmação é mais importante e significativa que as discussões de teoria econômica.2. Segunda polêmica: sobre a dialética. As reações de Proudhon, sobre os métodos e sobre a concepção da dialética, vão ser numerosas, precisas e vigorosas. Aqui também se trata de uma discussão que prossegue. Sabemos que Proudhon e Marx tinham longamente discutido o conjunto da dialética, e, mais tarde, Marx gabar-se-á de ter “injetado” hegelianismo em Proudhon: “Em longas discussões, muitas vezes durante toda a noite, injetava-o de hegelianismo — para seu prejuízo, visto que não sabendo alemão, não podia estudar a coisa a fundo”,6 escreverá Marx, bastante mais tarde, em janeiro de 1865.No entanto, desde 1847, faz a Proudhon a mesma censura, a de não ter compreendido a dialética hegeliana, o que é por sua vez exato e exterior ao debate pois que Proudhon não procurou ser um discípulo de Hegel: encontrou somente na filosofia de Hegel elementos de reflexão para as suas próprias análises, segundo o método intelectual que lhe era familiar.Estes debates interessam vivamente Proudhon como se vê, pelo número e pela vivacidade das suas notas marginais. Sobre diversos pontos, Proudhon nega que esteja em desacordo com o seu crítico. Por exemplo, logo que Marx escreve que ele deve “considerar a produção feudal como um modo de produção fundado sobre o antagonismo”,7 Proudhon mostra o seu espanto: “Será que Marx tem a pretensão de dar tudo isto como seu, em oposição com algo de contrário que eu teria dito?”;8 ou então, noutro lugar: “Eis, pois, que tenho o infortúnio de pensar como vós!”;9 ou então, ainda: “Digo precisamente tudo isso”;10 ou ainda: “Mentira: é precisamente o que digo”.11 E proudhon suspeita Marx de uma certa má fé:“Cabe unicamente ao leitor acreditar que é Marx que, após me ter lido, lamenta pensar como eu. Que homem!”.12 Mas, sobre o âmago, sobre a concepção da dialética, Proudhon não cede nada e apercebe-se bem do desacordo essencial. Marx coloca o princípio de que a dialética só pode ser histórica: o estudo das categorias econômicas não pode ser feito, diz ele, “segundo a ordem dos tempos”.13 Abandonar este método histórico é, necessariamente, voltar ao idealismo. Marx retoma os temas da Ideologia Alemã e as teses gerais do materialismo histórico: fazer “a história real”, é analisar como as relações sociais são “produzidas pelos homens”. “As relações sociais estão intimamente ligadas às forças produtivas”... e “os homens produzem também os princípios, as idéias, as categorias, conformes às suas relações sociais”.14Sobre este ponto fundamental que compromete por sua vez a concepção da dialética, a relação à história e o determinismo histórico, Proudhon reage violentamente. Em face desta crítica de Marx, escreve: “... é precisamente o que digo. A sociedade produz as Leis e os Materiais de sua experiência”.15 Estamos aqui no centro da oposição entre duas concepções da dialética: entre duas maneiras firmemente opostas de interpretar as contradições. Marx não pára de censurar a Proudhon o negligenciar as causalidades históricas, as anterioridades e as sucessões, as especificidades históricas. Ora, Proudhon tinha precisamente procurado uma outra via de reflexão (uma via que qualificaríamos hoje de estrutural ou estruturalista), consistindo pôr em relevo as contradições do sistema, os antagonismos sincrônicos entre — monopólio e concorrência, por exemplo — divisão do trabalho e recomposição do trabalho etc. Método que contrariamente ao que pensa Marx, não manifesta nenhuma ignorância da perspectiva histórica, mas que contém implícita uma crítica do modelo historicista da evolução concebido como necessário e previsível, quer dizer, do modelo do materialismo histórico que é o de Marx. E tocamos aqui um desacordo, com efeito insuperável, entre uma análise dos antagonismos e das contradições sócios-econômicos como propõe Proudhon, e o esquema histórico de Marx associando a análise do passado e uma representação da revolução necessária e inelutavelmente comunista.
E chegamos assim a um debate sem saída. Marx acusa Proudhon, por exemplo, de reduzir a dialética à oposição entre os bons e os maus lados das coisas... e Proudhon pode responder que ele próprio fez a crítica deste tipo de argumentação. 3. Terceiro aspecto da polêmica: o político. Chegamos às conclusões políticas onde a discussão dá lugar, podemos dizer, a um diálogo de surdos, e onde a parte do não dito, a parte dos subentendidos, torna-se essencial. Ainda aqui, a questão do devir histórico, a questão da revolução socialista ou comunista, tinham seguramente feito objeto de discussões, de vivos debates entre Proudhon, Bakunin, Marx, Karl Grün e ainda outros. Nestes anos de 1845-46, Proudhon acumula reflexões sobre “a Associação”, sobre a Associação progressiva, como se pode ver nos Carnês destes dois anos. Tem todo o sentido pensar que teria feito conhecer a Marx as suas reservas a respeito de uma visão simplista da revolução, reduzindo as mudanças sociais a uma ruptura breve e definitiva. Proudhon não tinha feito, no Sistema das Contradições, senão delinear a sua teoria anarquistada revolução social, de maneira rápida mas suficientemente explícita. Escreveu, por exemplo: “O problema consiste, pois, para as classes trabalhadoras, não a conquistar, mas a vencer... o poder, o que quer dizer... fazer surgir das entranhas do povo, das profundezas do trabalho, uma autoridade maior... que envolve o capital e o Estado, e que os subjuga”.16 Marx, a leste da discussão, rompe o debate com Proudhon, retoma sozinho a palavra e expõe, pela primeira vez, esta concepção da revolução política e necessariamente comunista que irá expor de novo no Manifesto do Partido Comunista, no ano seguinte, e que não deixará, doravante, de justificar e defender. É por conseqüência desta discussão que define a sua concepção definitiva. Entretanto, o debate não é mais só com Proudhon.Como Marx indica explicitamente, esta sucessão de afirmações sobre o devir necessário das lutas operárias em direção à revolução recusa largamente a visão política e histórica de Hegel. Hegel encontra-se ainda legitimado por sua contribuição à concepção da dialética, e exclui do debate o que diz respeito à concepção do devir histórico. Mais ainda, estas páginas constituem uma tomada de posição nas discussões entre os jovens hegelianos. Estas páginas, muito rápidas e dogmáticas, respondem do mesmo modo a todo um conjunto de discussões com múltiplas implicações. Marx visa aqui desmarcar-se simultaneamente do seu antigo mestre em filosofia, dos seus mais próximos amigos hegelianos, e do seu antigo mestre em crítica social, Proudhon. E faz uma autocrítica; condena vivamente as suas posições anteriores, liberais e românticas dos anos 1842 a 1844. Debate confuso, com múltiplos fins, no qual Marx procura muito mais definir-se que prosseguir um diálogo. É notável que em presença destas páginas, Proudhon não acrescente nenhuma anotação. As suas observações terminam em face da crítica de Marx sobre os seus capítulos “Concorrência e Monopólio”, e não exprime nenhuma outra reflexão na margem destas últimas páginas do panfleto de Marx. Poderíamos, certamente, interpretar de um modo diverso tal silêncio. Não obstante, a interpretação mais verossímil é que o desacordo é tão claro, aos olhos de Proudhon, o esquema histórico de Marx pouco razoável, e politicamente contestável, que não sente absolutamente a necessidade de reformular a crítica nas suas notas marginais. Proudhon já tinha expressado o seu ceticismo a respeito desta concepção simples da revolução na sua carta a Marx de maio de 1846. Já conhecia a concepção de Marx e suspeitava que iria preparar, eventualmente, um novo despotismo. Pensava, por conseguinte, que sobre este ponto, as posições estavam tomadas e eram definitivas, e não havia mais matéria a dialogar. A querela das duas Misérias termina deste modo por uma clara oposição das escolhas políticas. É necessário acrescentar que para além das expressões, para além dos conteúdos manifestos, existiam várias oposições que não fazem objeto de expressão. Como em toda a polêmica, existia um conteúdo latente cuja análise seria inesgotável, da qual não pretendemos fazer mais do que uma análise suficiente. Duas dimensões seriam, parece-me, a sublinhar e que se completam:A primeira diz respeito ao estranho silêncio deSISTEMA DAS CONTRADIÇÕES ECONÔMICASOU FILOSOFIA DA MISÉRIAPierre-Joseph ProudhonÍcone, 2003, 440 p.Marx sobre o ponto essencial que é a crítica proudhoniana do comunismo. É, com efeito, neste texto de 1846 que Proudhon faz, pela primeira vez, uma análise longa e detalhada da comunidade para demonstrar, segundo os seus termos, que: “A comunidade é impossível...”, que ela conduzirá a instaurar um novo estatismo sob o poder de um só, queela é, enfim, “a religião da miséria”.16 Marx leu bem este capítulo, como testemunham as citações que faz, embora evite evocar a argumentação de Proudhon e de fazer a crítica, como se o debate se apoiasse sobre um ponto tão decisivo que seria preferível não abordá-lo. Marx escolhe, deste modo, ignorar, ou finge ignorar, tudo o que o separa radicalmente de Proudhon, quer dizer, toda a crítica do comunismo e toda a orientação anarquista de Proudhon.Marx, podemos dizer, substitui aqui a discussão por troças, despropósitos e diferentes formas de injúrias. Proudhon encontra-se qualificado de “poeta incompreendido”, de tonto,17 e, desde as primeiras linhas, de ignorante em filosofia e em economia. É o sentido do exergo irônico pelo qual Marx se coloca como professor de filosofia e de economia. É o conteúdo do exergo datado de 15 de junho de 1847: “O sr. Proudhon tem a infelicidade de ser singularmente desconhecido na Europa. Na França, tem o direito de ser mau economista porque passa por ser bom filósofo alemão. Na Alemanha, tem o direito de ser mau filósofo porque passa por ser um dos melhores economistas franceses. Nós, na nossa qualidade de alemão e de economista ao mesmo tempo, quisemos protestar contra esse duplo erro”.18 Proudhon percebe bem esta estratégia polêmica de Marx quando nota à margem: “Troçais sempre antecipadamente: começais por ter razão”.19 A segunda dimensão que queria sublinhar fazaparecer uma oposição radical entre Proudhon e Marx. Este texto de 1847 inscreve-se numa estratégia de ruptura e numa concorrência pela conquista de autoridade no seio do movimento social. Marx coloca-se como detentor de competências filosóficas e econômicas que lhe permitiriam julgar e condenar.Trata-se praticamente de excluir Proudhon do movimento social, de demonstrar que ele não é um representante válido deste movimento. Daí o recurso a fórmulas que serão abundantemente repetidas nos conflitos ulteriores e que decretam simbolicamente a exclusão designando Proudhon como porta-voz da pequena burguesia.20 Fórmula que toma todo o seu sentido numa estratégia de conquista de autoridade contra os seus concorrentes. E, a este nível, a oposição é completa entre Proudhon e Marx, e o diálogo impossível. A discussão cessa porque Proudhon não se situa neste terreno. É capaz de polemizar vigorosamente (e mostrá-lo-á contra Pierre Leroux ou Louis Blanc, por exemplo), mas, para ele, a discussão é e deve ser prosseguida e permanente. Não se trata de eliminar os adversários para conquistar posições de poder, não se trata de reconstituir uma autoridade, mas de continuar debates que fazem parte da vida política e do seu pluralismo.E se Proudhon não respondeu à obra de Marx, é, seguramente por várias razões, mas, sem dúvida, também porque lhe repugnava entrar neste tipo de conflito: recusava confundir o debate político com as estratégias de conquista de poder.Conhecemos a seqüência dos acontecimentos: Proudhon não terá mais a ocasião de reencontrar ou discutir os trabalhos de Marx. Este, ao contrário, voltará múltiplas vezes sobre as teses de Proudhon para continuar a criticá-las.
Notas:1. Pierre Haubtmann, Proudhon, Marx et la pensée allemande,Grenoble, Presses Universitaires de Grenoble, 1981.2. Proudhon, De la Création de l’Ordre dans l’Humanité,1843, Paris, Nouvelle Edition, M. Rivière, p. 286.3. K. Marx, Misère de la philosophie, notas marginais deProudhon, Paris, Costes, 1950, p. 135.4. Ibid., p. 82.5. Ibid., p. 216.6. Ibid., p. 144.7. Id..8. Ibid., p. 135.9. Ibid., p. 128.10. Ibid., p. 127.11. Ibid., p. 135.12. Ibid., p. 126.13. Ibid., p. 127.14. Id..15. Proudhon, Système des Contradictions, Paris, M.Rivière, t. I, p. 345.16. Ibid., t. II, p. 302.17. Misère de la philosophie, op. cit., p. 101.18. Ibid., p. 25.19. Ibid., p. 137.20. Ibid., p. 150.O presente texto foi extraído da obra Proudhon Revisitado: Repensar o Federalismo, Universitária Editora, Lisboa, 2001, com a devida autorização do autor. A Editora Imaginário publicou na colecção Escritos Anarquistas, vol. 19O Essencial Proudhon, do mesmo autor.

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