segunda-feira, dezembro 09, 2013

Mandela e o que mudou na África do Sul desde o fim do apartheid em 1994

Os actos de Marikana (no dia 17 de Agosto de 2012 a polícia sul africana reprimiu selvagemente uma manifestação de 3.000 trabalhadores em greve da mina Marikana (a 100 km de Johannesburgo), assassinando 34 operários e ferindo outros 78) recordam os piores actos repressivos da época do apartheid e foram comparados, com justiça, com o massacre de Sharpervile, um subúrbio de Johannesburgo, em 1960, e com o triste célebre massacre do Soweto, outro subúrbio dessa cidade, em 1976. São uma mostra de que a profunda desigualdade social entre a minoria branca (pouco mais de 10%) e a imensa maioria negra (pouco menos de 80%), de facto uma clara divisão de classes, não terminou com o apartheid, nem tampouco alterou a estrutura económica e social que está na base dessa profunda desigualdade .

O que mudou foi o facto de que agora é um regime e um governo controlados por um pequeno sector da população negra, uma nova burguesia que passou a defender o estado capitalista. Por isso, já não lhes interessa questionar a exploração e, inclusive, aceitam que a burguesia branca continue com as suas imensas riquezas e mantenha os seus privilégios, impondo uma exploração selvagem à classe trabalhadora, cuja imensa maioria é negra. Por isso, para entender as contradições que estalaram em Marikana, é necessário relembrar alguns elementos da história sul africana que levaram à situação actual.

 A África do Sul tem 50 milhões de habitantes e é o país mais desenvolvido e industrializado do continente africano. O eixo de sua economia é a actividade mineradora, especialmente a extracção de ouro, diamantes e platina (é o principal produtor mundial deste metal) e também petróleo. Actualmente, existem cerca de 500.000 trabalhadores mineiros, em sua absoluta maioria negros já que, pelas condições de trabalho e salários, os brancos não querem trabalhar nesta indústria.

O país sofreu duas colonizações brancas: uma de origem inglesa e outra holandesa, que deu origem aos chamados “africâneres”. Os africâneres foram ganhando predomínio e, a partir de 1910, começaram a construir o regime do apartheid, no qual os negros não tinham voto e nenhum direito político. Este sistema ficou completo em 1948.

 Os níveis de exploração da população negra eram próximos da escravidão: esta população vivia em gigantescas favelas ou vilas miseráveis, das quais a mais famosa foi a do Soweto, com quase um milhão de habitantes vivendo nas piores condições, quase sem nenhum serviço básico garantido.

Foi sobre esta base de super exploração e de um imenso aparato repressivo estatal que a burguesia branca sul africana, associada aos capitais ingleses e holandeses, construiu o  seu poderio e a sua riqueza.
   
Como parte da luta contra o apartheid, funda-se o Congresso Nacional Africano (ANC) que, a partir da década de 1950, começa a ter um crescimento cada vez mais acelerado até transformar-se na expressão política e na direcção da maioria da população negra. O seu dirigente mais conhecido e de maior prestígio popular e internacional foi Nelson Mandela, que esteve preso entre 1962 e 1990.

A luta do povo negro contra o regime do apartheid ia crescendo e radicalizando-se cada vez mais. Também o seu isolamento internacional. A sua queda parecia inevitável e existia a possibilidade de que esta luta varresse o regime por uma via revolucionária e avançasse também no caminho de uma revolução socialista do povo negro que também destruísse as bases capitalistas da dominação branca.

Estava colocada a possibilidade das massas na sua luta revolucionária expropriassem a burguesia branca, o que seria na realidade, a expropriação de quase toda a burguesia sul africana.
 Ante essa situação e para frear e controlar o processo revolucionário, a maioria da burguesia branca sul africana elaborou um plano de transição que “desmontasse” o apartheid de modo ordenado e, por sua vez, garantisse o seu domínio económico, através da manutenção da propriedade das empresas e bancos. As potências ocidentais apoiaram a fundo este plano, do qual um dos operadores foi o bispo negro Desmond Tutu, que ganharia o Prémio Nobel da Paz por este serviço.

Deu-se forma a um pacto no qual em troca de eliminar o apartheid se manteria o sistema capitalista e a dominação económica burguesa. Assim, a burguesia branca abdicaria do controle directo do estado e aceitaria a chegada do ANC ao governo para manter a sua dominação de classe. Contaram para isso, com a colaboração de Nelson Mandela (libertado da prisão em 1990) e do Congresso Nacional Africano (ANC), que passaram a frear a luta do povo negro e participaram das negociações e da transição até 1994, quando Mandela foi eleito presidente.
  
O fim do apartheid foi um grande triunfo do povo negro sul africano que, ao eliminá-lo, obteve liberdades, direitos políticos e um sistema eleitoral baseado em “uma pessoa - um voto”. Pela primeira vez na história do país, elegeu-se um presidente negro.

Mas a estrutura económica do país não foi tocada e seguiu dominada pela burguesia branca que, agora, contava com a vantagem de ter um regime e governos negros para defender os seus interesses. Ao mesmo tempo, a nova burguesia negra aproveitou-se do acesso do ANC ao poder político para acumular força económica e passar a ser parte da classe dominante da África do Sul.

Quase 20 anos depois do fim do apartheid, a burguesia branca detêm grandes privilégios e riquezas enquanto a imensa maioria do povo negro segue vivendo na pobreza e na miséria. Mas agora essa burguesia branca tem como sócia a burguesia negra que se formou nas últimas duas décadas. Essa desigualdade explosiva é a base de um grande crescimento da violência social: com 50 mil assassinatos por ano (proporcionalmente, 10 vezes mais que nos EUA). Cerca de um quarto da população do país está desempregada e vive com menos de 1,25 dólar por dia.

Ao assumir o controle do regime e dos governos pós-apartheid, em 1994, Mandela e o ANC, mudaram o seu carácter. Até este momento eram a expressão da luta do povo sul africano contra o apartheid. A partir dali, transformaram-se nos administradores do estado burguês sul africano. A partir dessa opção, fizeram uma nova aliança com os antigos inimigos africâneres. Por essa aliança, em troca dos serviços prestados, os principais quadros e dirigentes do ANC transformaram-se numa burguesia negra, sócia menor da branca, que lucra com os negócios do Estado. Por exemplo, o atual presidente Jacob Zuma foi acusado de corrupção, em 2005, quando era vice-presidente, por receber uma alta comissão na compra de armamentos no exterior.

Mandela abandonou a política activa em 1999. Sucederam-no outros presidentes do ANC, e as sucessivas eleições já começaram a evidenciar processos de crise e desgaste desta organização.

Conclusão

É evidente a realidade sul africana. Um regime e um governo de uma organização “negra”, mas que defende os interesses da burguesia nacional – branca e negra.

Um aparato repressivo que não vacila em perpetrar massacres para defender esses interesses. Uma entidade patronal que se sente segura e actua com cínica soberba: dois dias depois do massacre a que já fizemos alusão os porta-vozes da mina advertiram que os trabalhadores que não se apresentassem para trabalhar seriam demitidos. Entretanto, os mineiros que extraem um metal que é vendido por 1.440 dólares a onça, ganham 500 dólares ao mês e vivem em casas e bairros nas piores condições, e são massacrados se lutam pelas suas reivindicações. Essa é a realidade do capitalismo na África do Sul.

É necessário tirar conclusões profundas. Na década de 1990, o povo negro sul africano obteve liberdades e direitos políticos que sem dúvida devem ser defendidas. Mas continuou submetido à pior exploração capitalista em benefício de uma minoria branca e, agora, também da nova burguesia negra oriunda dos seus antigos dirigentes.