Os actos de Marikana (no dia 17 de Agosto de 2012 a polícia
sul africana reprimiu selvagemente uma manifestação de 3.000 trabalhadores em
greve da mina Marikana (a 100 km de Johannesburgo), assassinando 34 operários e
ferindo outros 78)
recordam os piores actos repressivos da época do apartheid e foram
comparados, com justiça, com o massacre de Sharpervile,
um subúrbio de Johannesburgo, em 1960, e com o triste célebre massacre
do Soweto, outro subúrbio dessa cidade, em 1976. São uma mostra de que a
profunda desigualdade social entre a minoria branca (pouco mais de 10%) e a
imensa maioria negra (pouco menos de 80%), de facto uma clara divisão de
classes, não terminou com o apartheid, nem tampouco alterou a estrutura económica
e social que está na base dessa profunda desigualdade .
O que mudou foi o facto de que agora é um regime e um
governo controlados por um pequeno sector da população negra, uma nova
burguesia que passou a defender o estado capitalista. Por isso, já não lhes
interessa questionar a exploração e, inclusive, aceitam que a burguesia branca
continue com as suas imensas riquezas e mantenha os seus privilégios, impondo uma
exploração selvagem à classe trabalhadora, cuja imensa maioria é negra. Por
isso, para entender as contradições que estalaram em Marikana, é necessário
relembrar alguns elementos da história sul africana que levaram à situação actual.
A África do Sul tem 50 milhões de habitantes e é o
país mais desenvolvido e industrializado do continente africano. O eixo de sua
economia é a actividade mineradora, especialmente a extracção de ouro,
diamantes e platina (é o principal produtor mundial deste metal) e também petróleo. Actualmente,
existem cerca de 500.000 trabalhadores mineiros, em sua absoluta maioria negros
já que, pelas condições de trabalho e salários, os brancos não querem trabalhar
nesta indústria.
O país sofreu duas colonizações brancas: uma de origem
inglesa e outra holandesa, que deu origem aos chamados “africâneres”. Os africâneres foram
ganhando predomínio e, a partir de 1910, começaram a construir o regime do apartheid, no
qual os negros não tinham voto e nenhum direito político. Este sistema ficou
completo em 1948.
Os níveis de exploração da população negra eram
próximos da escravidão: esta população vivia em gigantescas favelas ou vilas
miseráveis, das quais a mais famosa foi a do Soweto, com quase um milhão de
habitantes vivendo nas piores condições, quase sem nenhum serviço básico
garantido.
Foi sobre esta base de super exploração e de um imenso
aparato repressivo estatal que a burguesia branca sul africana, associada aos
capitais ingleses e holandeses, construiu o seu poderio e a sua riqueza.
Como parte da luta contra o apartheid,
funda-se o Congresso Nacional Africano (ANC) que, a partir da década de 1950,
começa a ter um crescimento cada vez mais acelerado até transformar-se na
expressão política e na direcção da maioria da população negra. O seu dirigente
mais conhecido e de maior prestígio popular e internacional foi Nelson Mandela,
que esteve preso entre 1962 e 1990.
A luta do povo negro contra o regime do apartheid ia
crescendo e radicalizando-se cada vez mais. Também o seu isolamento
internacional. A sua queda parecia inevitável e existia a possibilidade de que
esta luta varresse o regime por uma via revolucionária e avançasse também no
caminho de uma revolução socialista do povo negro que também destruísse as
bases capitalistas da dominação branca.
Estava colocada a possibilidade das massas na sua luta
revolucionária expropriassem a burguesia branca, o que seria na realidade, a
expropriação de quase toda a burguesia sul africana.
Ante essa situação e para frear e controlar o processo
revolucionário, a maioria da burguesia branca sul africana elaborou um plano de
transição que “desmontasse” o apartheid de modo ordenado e, por sua vez,
garantisse o seu domínio económico, através da manutenção da propriedade das
empresas e bancos. As potências ocidentais apoiaram a fundo este plano, do qual
um dos operadores foi o bispo negro Desmond Tutu, que ganharia o Prémio Nobel
da Paz por este serviço.
Deu-se forma a um pacto no qual em troca de eliminar o apartheid se
manteria o sistema capitalista e a dominação económica burguesa. Assim, a
burguesia branca abdicaria do controle directo do estado e aceitaria a chegada
do ANC ao governo para manter a sua dominação de classe. Contaram para isso,
com a colaboração de Nelson Mandela (libertado da prisão em 1990) e do
Congresso Nacional Africano (ANC), que passaram a frear a luta do povo negro e
participaram das negociações e da transição até 1994, quando Mandela foi eleito
presidente.
O fim do apartheid foi
um grande triunfo do povo negro sul africano que, ao eliminá-lo, obteve
liberdades, direitos políticos e um sistema eleitoral baseado em “uma pessoa -
um voto”. Pela primeira vez na história do país, elegeu-se um presidente negro.
Mas a estrutura económica do país não foi tocada e seguiu
dominada pela burguesia branca que, agora, contava com a vantagem de ter um
regime e governos negros para defender os seus interesses. Ao mesmo tempo, a
nova burguesia negra aproveitou-se do acesso do ANC ao poder político para
acumular força económica e passar a ser parte da classe dominante da África do
Sul.
Quase 20 anos depois do fim do apartheid,
a burguesia branca detêm grandes privilégios e riquezas enquanto a imensa
maioria do povo negro segue vivendo na pobreza e na miséria. Mas agora essa
burguesia branca tem como sócia a burguesia negra que se formou nas últimas duas
décadas. Essa desigualdade explosiva é a base de um grande crescimento da
violência social: com 50 mil assassinatos por ano (proporcionalmente, 10 vezes
mais que nos EUA). Cerca de um
quarto da população do país está desempregada
e vive com menos de 1,25 dólar por dia.
Ao assumir o controle do regime e dos governos pós-apartheid,
em 1994, Mandela e o ANC, mudaram o seu carácter. Até este momento eram a
expressão da luta do povo sul africano contra o apartheid.
A partir dali, transformaram-se nos administradores do estado burguês sul
africano. A partir dessa opção, fizeram uma nova aliança com os antigos
inimigos africâneres. Por essa aliança, em troca dos serviços prestados, os
principais quadros e dirigentes do ANC transformaram-se numa burguesia negra,
sócia menor da branca, que lucra com os negócios do Estado. Por exemplo, o
atual presidente Jacob Zuma foi acusado de corrupção, em 2005, quando era
vice-presidente, por receber uma alta comissão na compra de armamentos no
exterior.
Mandela abandonou a política activa em 1999. Sucederam-no
outros presidentes do ANC, e as sucessivas eleições já começaram a evidenciar
processos de crise e desgaste desta organização.
Conclusão
É evidente a realidade sul africana. Um regime e um governo
de uma organização “negra”, mas que defende os interesses da burguesia nacional
– branca e negra.
Um aparato repressivo que não vacila em perpetrar massacres
para defender esses interesses. Uma entidade patronal que se sente segura e actua
com cínica soberba: dois dias depois do massacre a que já fizemos alusão os
porta-vozes da mina advertiram que os trabalhadores que não se apresentassem
para trabalhar seriam demitidos. Entretanto, os mineiros que extraem um metal
que é vendido por 1.440 dólares a onça, ganham 500 dólares ao mês e vivem em
casas e bairros nas piores condições, e são massacrados se lutam pelas suas
reivindicações. Essa é a realidade do capitalismo na África do Sul.
É necessário tirar conclusões profundas. Na década de 1990,
o povo negro sul africano obteve liberdades e direitos políticos que sem dúvida
devem ser defendidas. Mas continuou submetido à pior exploração capitalista em
benefício de uma minoria branca e, agora, também da nova burguesia negra
oriunda dos seus antigos dirigentes.