Vitor
Gaspar desvendou em declarações a Maria João Avillez (que deu um livro) e a
Teresa de Sousa (que deu uma entrevista) o que pensa dos dois anos e meio em
que esteve à frente do Ministério das Finanças. Como é evidente, pensa bem. E
como é evidente merece ser contraditado.
1)
"O programa de ajustamento português, de modo geral, foi, em meu entender,
muito bem sucedido", diz Gaspar. Note-se o "de modo geral", que
suponho excluir o facto da recessão ter sido muito mais longa do que o
previsto, do desemprego ter subida a níveis impensáveis, e do desemprego jovens
ser verdadeiramente explosivo. Danos colaterias, claro. Quanto aos resultados
do ajustamento, agora foram necessários três anos de recessão para Portugal
repor os desequilíbrios externos. Nas crises de de 78-79 e 83-85, Portugal
repôs esses mesmos desequilíbrios com apenas um ano de recessão. Não abona a
favor da tese de um ajustamento muito bem sucedido.
2)
Gaspar recusa aceitar que se enganou, que agiu mal, que previu mal, que errou,
que não foi capaz. "Não vejo nenhuma razão para não dizer simplesmente: os
limites iniciais do Programa não foram cumpridos". É uma linha de
argumentação notável. Alunos que chumbam podem dizer o mesmo aos pais. Médicos
cujos doentes morrem por erros clínicos podem dizer o mesmo aos familiares.
Engenheiros que constroem pontes muito mais caras que o previsto podem dizer o
mesmo a quem os contratou.
3)
Gaspar diz que nunca houve incumprimento nem muito menos imcumprimento repetido
porque "as metas iniciais do programa foram sempre renegociadas antes do
momento em que o seu incumprimento se colocaria". Outra contribuição
notável para o argumentário de milhentos profissionais. Quando for
completamente evidente que não se vão cumprir as metas acordadas, mudam-se as
metas de maneira a tudo bater certo. É o método de ganhar o euromilhões à
segunda-feira.
4) O desemprego é "a suprema preocupação e a prioridade
máxima", diz Gaspar. Como?! Em que ponto do programa de ajustamento é que
está inscrita esta preocupação? E em que ponto da aplicação do programa é que
Vítor Gaspar tomou medidas para estimular a economia e travar o disparo
exponencial do desemprego? Gaspar apenas abriu a boca de espanto quando viu os
resultados que a sua política de busca draconiana dos equilíbrios financeiros
estavam a ter sobre a economia real. Foi por isso que quando anunciou que tinha
chegado o tempo do investimento ninguém o acreditou, como ele próprio
reconhece.
5)
Gaspar considera insultuosa a ideia de ser encarado como o quarto elemento da
troika. Mas depois diz que as relações foram sempre boas com a troika e que
"os nossos interesses estão, no fundamental, completamente alinhados com
os deles" - a saber os credores internacionais e a troika. Pois parece do
mais elementar bom senso admitir que, num país que está sob tutela
internacional, obrigado a engolir até à última gota o óleo de fígado de
bacalhau que outros lhe querem impor, pudesse existir alguma tensão e mesmo
fortes divergências entre quem nos defendia e quem estava do outro lado da
mesa. Pelos vistos, com Gaspar essa dicotomia nunca se colocou.
6)
E é por isso que, como Maria João Avillez reconhece, Gaspar "fazia parte
do 'clube', nunca deixou de o frequentar, guardou amigos. Em certa medida - ou
em toda a medida? - era de 'lá'. Nós não sabíamos mas a Europa sabia. E não o
iria perder de vista no Terreiro do Paço". Foi isso que aconteceu. A
Europa mandou para cá alguém para tomar conta do remédio que ela nos queria
aplicar. Em África aplicava-se a esta pessoa um nome pouco simpático. E agora
que Gaspar nos deixou, o clube está a tratar de lhe arranjar um emprego simpático,
onde se ganhe muito bem, onde as reformas nunca sejam cortadas, onde o seguro
de saúde cubra todas as maleitas possíveis e imaginárias e onde nunca possamos
dizer de Gaspar que ele vive acima das suas possibilidades.