domingo, março 02, 2014

A democracia "irrevogável" do PCP

O Parlamento português votou hoje uma deliberação que condena os crimes contra a Humanidade perpetrados pela Coreia do Norte e associa a Assembleia da República à ONU nessa condenação. Como seria de esperar, todos os partidos aprovaram a deliberação. Todos, menos o Partido Comunista Português. 

Os comunistas portugueses votaram contra esta deliberação. Vou repetir: votaram contra. E porquê? É que ninguém, no seu perfeito juízo democrata, consegue imaginar uma razão forte para se votar contra isto. Mas é capaz de existir, por isso vamos saber o que eles dizem.

Dizem, por exemplo, que "o relatório da ONU ainda não foi apresentado às Nações Unidas mas já teve a sua credibilidade internacionalmente posta em causa quanto à metodologia e conclusões".

Sim, a credibilidade foi internacionalmente posta em causa quanto à metodologia e conclusões, nomeadamente por comunistas, que, tal como se previa, não existem só em Portugal.

Mas é capaz de ser verdade. De facto, não é fácil perceber quantos milhares de presos políticos são torturados nas montanhas. Dizem que são entre 80 000 e 120 000, mas o PCP talvez quisesse números concretos, porque uma diferença de 40 mil pessoas ainda é muita gente. Manda o rigor que não se aprove um relatório que não sabe se são 80 mil ou 120 mil presos políticos. E a tortura? A verdade é que também ninguém viu. Só há relatos de pessoas que escaparam, mas isso pode ser imaginação a mais. 

Por outro lado, o PCP diz que o relatório da ONU - o tal sem credibilidade - foi elaborado através de audições realizadas em Seoul, Tóquio, Londres e Washington. Bom, a ONU bem queria ir fazer audições à Coreia da Norte, mas parece que não é fácil. Parece que a Coreia do Norte não gosta de visitas.

E entretanto, PCP, qual é o problema das audições serem realizadas em Seoul, Tóquio, Londres e Washington? Já sei. Não digam. São democracias, não é!? Que diabo, tinham logo de ir escolher democracias para fazer as audições. E depois ainda dizem que são imparciais.

Adiante - ou melhor, avante - o PCP conclui, pelo menos na notícia que li, dizendo que defende um projecto de "liberdade, democracia, justiça e progresso social" e que é isso que o distancia "de opções e orientações da República Popular da Coreia do Norte". 

Que opções e orientações serão essas, da República Popular da Coreia do Norte, que fazem tanta comichão ao PCP? É que eu ia jurar que a ONU tinha parido uma bosta de um relatório, cozinhado em Washington, e que não se passava nada de errado com a Coreia do Norte. Afinal, parece que há lá opções e orientações que não cheiram bem. Talvez milhares de presos políticos? Talvez torturas? Assassinatos? Ou será que é só um TGV? Se calhar a Coreia do Norte quer fazer um TGV e o PCP é contra, por isso é que se distancia. Deve ser isto. 

Não, não é. E obrigado ironia, mas já te podes ir embora. A comunidade internacional não tem dúvidas sobre as atrocidades que foram e são cometidas na Coreia do Norte. Tais atrocidades constituem crimes contra a Humanidade. Se o relatório não é mais detalhado, é porque a Coreia do Norte não colabora com as Nações Unidas e responde a todas as tentativas de diálogo com um clima de terror à sua volta. Ora, é justamente por isso que este relatório é um passo enorme. Mas também muito arriscado, porque vai enfurecer a China. E como enfurece a China, também enfurece o PCP. Talvez seja esta a verdadeira razão para o voto contra dos comunistas portugueses. 

Acontece que, na minha opinião, este gesto de subserviência do PCP encerra uma atitude antidemocrática e, por essa via, inconstitucional. O voto do PCP é uma ameaça clara e manifesta à liberdade e à democracia em Portugal, porque acaba de proteger, ao abrigo da Constituição da República Portuguesa, um regime totalitário. Pese embora a maior ou menor credibilidade dos relatórios que se conseguem fazer do que lá se passa, a violação dos direitos humanos na Coreia do Norte é uma evidência, que nem o PCP pode ignorar. 

É claro, porém, que em Portugal, por razões históricas, a única ameaça à democracia e à liberdade que se conhece é o fascismo, logo o PCP está amplamente protegido, porque pelo menos essa forma de ditadura eles não protegem. Que fique então o povo sabendo que o Partido Comunista Português, aquele que ainda há pouco tempo fez um brilharete eleitoral, protege um regime que persegue o seu povo e que tem as montanhas lotadas com presos políticos. O PCP protege, no Parlamento nacional, a tirania e o despotismo no mundo. Mas não se preocupem, porque para Portugal parece que tem um projecto de "liberdade, democracia, justiça e progresso social".