Cortes, mais cortes e ainda mais cortes, servidos aos bocadinhos um a seguir ao outro, juntamente com a ilusão que desta vez é que é, que será o último corte antes da recuperação económica que virá logo a seguir montada nesse derradeiro esforço para conquistar um futuro radiante para todos. Hoje é a vez deainda mais uma revisão em baixa dos valores das reformas e, para que não seja a última vez que se reformam reformas num sistema cujo equilíbrio depende dos salários sobre os quais incidem os descontos que o financiam, também ainda mais uma revisão em baixa dos salários na função pública, pois então.
E a culpada volta a ser a madrasta da demografia. Era o que mais faltava que as gerações que descontaram a vida inteira para financiar um Serviço Nacional de Saúde de excelência que aumentou a esperança de vida que hoje prolonga as suas velhices pudessem agora colher os frutos desses e dos outros descontos que também realizaram anos a fio para conquistarem o direito a um final de vida digno. A justificação para ainda mais uma machadada nas conquistas destas gerações que construíram o progresso da nossa sociedade ao longo das décadas que se seguiram à revolução de Abril volta a ser o envelhecimento populacional.
O poder político continua a conseguir esconder-se atrás do pretexto de uma quebra de natalidade que as estatísticas confirmam mas que como justificação para arruinar velhices não faz qualquer sentido: se com a falta de jovens que vai crescendo com o passar dos anos temos hoje uma taxa de desemprego jovem a trepar os 40% que os empurra para uma emigração que apenas encontra paralelo na década de 60 do século passado, sem falta de jovens esse desemprego monstruoso e essa emigração em massa seriam ainda maiores. O problema não é de forma alguma a natalidade. O problema está na inflexão do crescimento da massa salarial que começou com a adesão a um euro que transferiu para a esfera laboral os mecanismos de ajustamento que deixaram de poder fazer-se através da desvalorização cambial.
Desde a adesão ao euro, pela mão de um “europeísmo convicto” a favor ou contra consoante está no Governo ou na oposição, as relações laborais foram alteradas pelo menos três vezes, todas elas direccionadas para a redução dos salários sobre os quais se realizam os descontos que financiam a Segurança Social e os serviços públicos. O mesmo nas relações de emprego público, com carreiras desmanteladas para evitar progressões e promoções na carreira, congeladas anos a fio juntamente com actualizações salariais que a partir de 2010 foram substituídas por cortes sucessivos nos salários nominais. O salário mínimo foi abruptamente congelado em 2010. Não foi à toa que, durante o mesmo período, assistimos a outras tantas alterações da fórmula de cálculo de pensões do regime contributivo e que a idade mínima para adquirir o direito a uma aposentação sem penalizações tenha sido sucessivamente aumentada.
Agora, quer porque o arco da redução de salários que desequilibrou o sistema entretanto descobriu como rentabilizar uma crise desencadeada pela mesma delinquência banqueira que com ela enriquece, quer porque o “europeísmo convicto” desse mesmo arco recusa outro caminho que não o do empobrecimento do seu povo e da agenda de concentração de riqueza que lhe está associado, sem renegociação da dívida externa e sem romper com este paradigma, podemos desde já preparar-nos para as décadas de reduções salariais que temos à nossa frente. E sem salários médios minimamente decentes não teremos nem as reformas, nem a Segurança Social, nem a Saúde, nem a Educação, nem nenhuma das conquistas que herdámos das gerações que hoje deixamos – também se deixam – maltratar. Não há-de ser nada. Os filhos que não tivemos e os que deixarmos emigrar depois que nos amparem nas velhices miseráveis que a nossa inconsciência política semeou como forma de nos agradecerem o nada que lhes deixaremos como herança do uso peculiar que demos a uma democracia que tanto custou a conquistar.