sábado, março 01, 2014

O automóvel como centro do mundo

O automóvel é todo um mundo. Não só cria uma cultura e uma economia, como novos códigos de ação e mais aprofundadas esferas ocultas. Passo a explicar.
Cria uma cultura porque surge no centro das cidades. Alarga o espaço urbano para nele melhor caber, como parecia prever o Marquês de Pombal. É ícone do progresso industrial e da liberdade individual, basta ver a América. Mostra diferenças sociais e conquistas pessoais - "o meu carro é melhor do que o teu". Concentra nos seus diferentes tipos e acrescentos um elogio à tecnologia como poder, performance e estilo, como é exemplo a subcultura tuning.
Permite uma economia porque representa um novo modo de crescimento industrial. Ajuda a impulsionar a cadeia de produção, bem como o método científico de gestão, como se vê em Henry Ford. Faz parte de um setor que dinamiza a economia como poucos. Podemos detetar o poder económico de um país em função da sua indústria automóvel (Portugal não tem uma marca digna desse nome). Faz e deixa cair cidades, como Detroit.
Forja códigos de ação porque passamos a usar uma nova linguagem para nos entendermos ao volante. Quem não conhece o código da estrada não acede a este mundo com a mesma eficácia. Além disso, há linguagens informais que também se inventam a par, como o piscar de luzes ou os quatro piscas - ninguém disse que os quatro piscas com o carro parado são vinculativos sob o ponto de vista do código da estrada, mas toda a gente os usa e entende-se assim.
Por fim, desenvolve novas esferas ocultas porque implica complexidade técnica e de conhecimentos. Há uma especialidade: a de mecânico. Comprar ou mandar concertar um carro é um ato de fé para qualquer pessoa que não seja especialista. Um automóvel é verdadeiramente aquilo que a economia chama aos objetos tecnológicos: "caixa negra". Funciona, não sabemos é como. E então estamos sempre a ser enganados, não há nada a fazer. As trocas concorrenciais de peças só fazem os preços baixar caso os envolvidos conheçam bem os objetos em causa. Se os desconhecerem, é um tiro no escuro. É assim com quase todos os automobilistas. Ninguém sabe nada. Temos fé no mecânico, o padre-especialista.
Portugal abraça todas estas dimensões. No mês de janeiro as vendas aumentaram em relação ao ano anterior, mesmo em crise. Faz parte dos nossos hábitos trocar de carro com frequência. Nesse aspeto, ainda somos novos ricos. Construímos auto-estradas numa lógica de favorecimento do género de vida proporcionada por este veículo. E apesar da sua centralidade, grande parte das vezes nem reparamos nisto. Vivemos como se fosse natureza. Como se estivesse por aí desde sempre. Como se não fosse uma escolha. A fenomenologia chama a isto "pano de fundo". A tecnologia coloca-se muitas vezes como algo de que estamos distraídos porque não nos coloca problemas ou não surge de modo patente. Por isso, de repente notamos esse mundo quando o automóvel não pega ou quando nos deparamos com acidentes. Aliás, se compararmos o número de mortes na estrada e aquelas que ocorrem em combate entre militares, percebemos como a capacidade de nos espantarmos ou revoltarmos depende da perspetiva. Morrer na estrada não é só uma tragédia individual, é uma cultura.

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