segunda-feira, maio 26, 2014

A tributação da riqueza

Um livro que está agora a atrair muita atenção nos Estados Unidos é Capital in the Twenty-First Century, do economista francês Thomas Piketty. Ele analisa uma enorme quantidade de dados históricos sobre alterações de riqueza e desigualdades de rendimentos nos países capitalistas avançados, antecipa com base nesta análise que as desigualdades de riqueza provavelmente aumentarão substancialmente nos próximos anos, até um ponto em que porão gravemente em perigo o funcionamento de todas as instituições democráticas. Portanto, ele advoga uma substancial tributação da riqueza, especialmente no alto nível do espectro da mesma. 

Num período em que economistas neoliberais sequestraram o discurso intelectual e que, também devido aos viéses dos media sob controle corporativo e à influência crescente do capital financeiro sobre instituições de ensino superior (e não por qualquer correcção intelectual dos seus argumentos) o facto de a publicação de um livro exprimindo preocupação sobre a ascensão das desigualdades da riqueza e argumentando a favor da sua tributação ter despertado a atenção do público deve ser saudado. Ao mesmo tempo, contudo, mesmo com base numa familiaridade superficial com a argumentação de Piketty, o que é tudo o que posso afirmar neste momento, dois pontos acerca da sua argumentação considero que merecem discussão. 

AFIRMAÇÃO ESTRANHA 

O primeiro é a visão de Piketty de que o aumento na desigualdade de riqueza ocorre porque a taxa de retorno sobre o capital é maior do que a taxa de crescimento da economia. Suponha que a taxa de retorno sobre o capital é de 8 por cento ao passo que a taxa de crescimento da economia é de 3 por cento e suponha que o stock inicial de capital é de 100. Então os proprietários do capital que estariam a obter um rendimento de 8 podem consumir metade dele, investir a outra metade (que é 4) e ainda ter uma expansão na sua riqueza que é maior do que a taxa de crescimento do produto. Assim, mesmo quando eles chafurdam na vida luxuosa a sua riqueza ainda pode crescer a uma taxa mais rápida do que o rendimento da sociedade e portanto mais rapidamente do que os rendimentos do trabalho. Em suma, eles podem comer o seu bolo e também tê-lo. 

Isto contudo levanta um certo número de questões. O que determina a taxa de crescimento da economia? A resposta de Piketty seria: a soma da taxa de crescimento da força de trabalho e da taxa de crescimento da produtividade do trabalho devida ao progresso tecnológico. A economia, em suma, é sempre assumida como sendo constrangida pelo trabalho, pelo menos no longo prazo. Isto entretanto parece uma afirmação estranha, uma vez que historicamente o capital tem movido vastas massas de pessoas através do globo, como escravos, trabalhadores contratados ou simplesmente trabalhadores migrantes, a fim de satisfazer suas exigências de trabalho. Imaginar que o capital simplesmente confia no crescimento interno da força de trabalho em "unidades de eficiência" (isto é, incluindo a taxa de crescimento da produtividade do trabalho) dentro de cada "economia desenvolvida" é irreal. 

Além disso, mesmo que o capital acumule mais rapidamente do que a taxa de crescimento da força de trabalho, não deveria este mesmo facto, pelo seu impacto sobre a procura de trabalho, ter um impacto sobre a taxa salarial e portanto sobre a taxa de retorno sobre o capital, de modo a que finalmente o crescimento dos rendimentos do capital e o crescimento dos rendimentos do trabalho se tornassem iguais? No exemplo acima, quando a taxa de retorno sobre o capital caiu para 6 por cento dos 8 por cento (em que começou), assumindo como antes que os capitalistas consomem a metade dos seus rendimentos e poupam e investem a outra metade (Piketty assume em outro lugar todos os problemas da procura agregada e portanto a questão do mercado em geral), a taxa de crescimento do seu stock de capital seria 3 por cento, a mesma da taxa de crescimento do produto. E então, daí em diante, haveria um crescimento equilibrado de rendimentos de salários e lucros, cada um a crescer a 3 por cento muito embora a taxa de retorno sobre o capital continuasse a ser de 6 por cento, do qual a metade é sempre consumida. 

Contudo, o problema é que mesmo quando as fatias de salários e lucros permanecem inalteradas desta maneira, a ameaça para as instituições democráticas continua séria e na verdade a crescer em intensidade. Para ver este ponto, deixe-nos deliberadamente assumir que o consumo dos capitalistas é nulo e que a taxa de retorno sobre o capital no exemplo acima é de uns meros 3 por cento, a mesma da taxa de crescimento do produto. Temos, por outras palavras, não um excesso da taxa de retorno sobre a taxa de crescimento do produto, mas uma igualdade entre as duas. E deixe-nos assumir, para fins de ilustração, que a taxa de aumento na produtividade do trabalho devida a progresso tecnológico é de 2 por cento ao ano ao passo que a taxa de crescimento da população (e portanto da força de trabalho em unidades naturais) é 1 por cento, acrescentando à taxa de crescimento da força de trabalho como um todo (em"unidades de eficiência") de 3 por cento. 

Neste caso o rendimento per capita da sociedade aumenta a 2 por cento (com o produto a crescer a 3 por cento e a população a 1 por cento), as fatias de salários e lucros permanecem constantes e a taxa de salário real aumenta a 2 por cento (a mesma taxa do crescimento da produtividade do trabalho). Mas o stock per capita de capital também aumenta a 2 por cento entre os capitalistas, uma vez que o stock de capital ascende a 3 por cento enquanto o crescimento populacional entre os capitalistas (assumindo ser o mesmo da população geral) é de apenas 1 por cento. A desigualdade de riqueza, por outras palavras, continua a manter-se acentuada: a população trabalhadora cujas poupanças são pequenas continua a ter zero riqueza, ao passo que os capitalistas, cuja proporção na população não aumenta, continua a ter aumento na riqueza per capita. 

Dito de modo diferente, a desigualdade de riqueza na sociedade aumentaria mesmo quando as taxas de retorno sobre o capital e a taxa de crescimento do produto são iguais, porque o capital se reproduz (breeds) mais rapidamente do que os capitalistas. Se os capitalistas constituírem, digamos, os 5 por cento de topo da população, então a distribuição de riqueza mudaria ao longo do tempo como se segue: 5 por cento do topo 100, 95 por cento da base zero; 5 por cento do topo 200 (após algum tempo), 95 por cento da base zero; e assim por diante. Ninguém pode acreditar que isto não comprometeria a democracia, quando os 5 por cento do topo consistem ad infinitum de pessoas das mesmas famílias. 


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