Há uns anos conheci um jornalista que tinha sido enviado especial no conflito israelo-palestiniano. Entre muitas outras coisas, ele contou-me que apanhava um táxi para ir para a guerra. Precisava de estar nas zonas de mais ou menos combate, então apanhava um táxi e dizia ao motorista, assim como quem diz “é ali para o Saldanha”, “é ali para a guerra”. E o motorista do táxi levava-o.
Isto não quer dizer nada, naturalmente, mas é uma boa imagem da anormal normalidade com que naquela região se vive este conflito, mesmo quando a guerra fria aquece. Porém, a situação agrava-se de vez em quando. Como por estes dias. Intensificam-se os ataques dos dois lados, mas Israel, com a sua força bruta, faz muito mais estragos.
Perante isto, o mundo e a opinião pública não podem ficar indiferentes, é evidente. Mas há qualquer coisa em torno deste conflito que o distingue de muitos outros. Parece um conflito que está na moda. Todo a gente fala sobre ele. Há imensas imagens. Fotografias. Gráficos. Desenhos. Bonecos. Até já há roupa para vender. E quando Israel ataca a Palestina, vai tudo a correr ao armário buscar os cachecóis.
Logo se partilham pelas redes sociais imagens horrorosas, a maior parte delas seguramente falsas ou de outros conflitos. Uma pequena nota lateral, a este propósito. São acontecimentos destes que tornam mais relevante que nunca a existência de uma imprensa séria, credível e imparcial, pois nestas alturas as redes sociais são perigosas e é possível, como já se sabe, uma manipulação dos sentimentos. Pela minha parte, rejeito ler, ver ou ouvir o que quer que seja que venha de órgãos que não transmitam garantias de segurança na informação.
Voltamos então ao conflito para tentar perceber o porquê de estar tanto na moda e de ser um conflito intelectualmente chique e de que fica muito bem falar e tomar parte. Creio que a razão está na divisão entre Israel e a Palestina que assenta perfeitamente na divisão entre a direita e a esquerda. Logo, ao primeiro ataque israelita, o mundo ocidental entra em campanha. A esquerda e a direita digladiam-se. Se repararem, aliás, a abordagem política que se faz do conflito israelo-palestiniano é exactamente a mesma que se faz de um arrastão na praia do Tamariz.
Agora vejam bem: No Darfur, a guerra fez já quase 500 mil mortos e 3 milhões de deslocados. Ora, em 11 anos de conflito no Darfur, eu não li tanta coisa, não vi tanta imagem, tanto desenho, tanto boneco, tantas lágrimas de crocodilo, tanto desespero, tanta t-shirt e cachecol, como vi nas últimas 48 horas sobre o conflito israelo-palestiniano.
Podia ser que a situação estivesse mais ou menos estabilizada nos “sudões”. Mas não está. Continua em marcha um genocídio. Alastra a fome e a miséria em proporções inimagináveis. Mas ninguém parece querer saber. Já sobre os populares rockets do Médio Oriente, queremos saber tudo: quem atirou, porquê, quando, onde, como; e assim que puderem mandem imagens do hospital cheio de vítimas porque as audiências disparam.
Sim, o conflito israelo-palestiniano já é um reality show. E é líder. Enquanto aquilo no Sudão é tudo muito pobre, as pessoas são muito feias, a paisagem é muito árida e nem sequer há mísseis. Quase que ainda usam catapultas, embora se matem às aldeias inteiras. Enfim, uma miséria que não interessa a ninguém.
Mas devia interessar. Não era preciso interessar mais do que nos interessa e preocupa – e ainda bem – o conflito entre Israel e a Palestina. Só tinha de interessar a mesma coisa. Porque às vezes pensamos que estamos a ter bom coração mas sem sabermos estamos apenas a participar num programa de televisão. Um programa de televisão com vítimas reais, diariamente contabilizadas como se fossem pontuação.