1. Os escoceses, como qualquer outro povo, têm o direito indiscutível e inalienável de escolher, sem coações, ameaças ou interferências, o seu enquadramento político e as relações com outros povos. Se entendem não aceitar a autoridade de Westminster ou de Downing Street, sob o chapéu tutelar de uma rainha e preferem uma gestão estatal de maior proximidade, têm esse direito; o referendo, a realizar-se na base da liberdade de expressão e de escolha dos escoceses, não merece verberação; se os escoceses pretendiam afrouxar o nível de relações institucionais com ingleses, galeses ou norte-irlandeses, isso cabe ao direito de associação que se considera irrecusável, aplicado a povos ou grupos mais restritos de pessoas.
2. Os estados-nação de hoje sofrem de uma tara, que remonta a tempos muito mais recuados do que os 300/400 anos que nos distanciam da sua efetiva constituição. Gostam de alargar as suas fronteiras e reagem mal a qualquer tentativa do seu encolhimento; e, mesmo quando este acontece em regimes ditos democráticos, nada se altera na substância, apenas na forma; a canhoneira já não está na frente das opções. A redução surge sempre como a perda de controlo sobre uma população e do trabalho que desenvolve, de redução de carga fiscal e de decisão sobre um património, por parte de uma elite de parasitas, ciosa da inviolabilidade da coutada. Para a orgulhosa Inglaterra que dominou os mares até 1918 e muitas terras até à descolonização dos anos 60; que ainda tem uma relíquia chamada libra; que teve forças para derrotar nas Malvinas uma junta militar fascista; que tem armas nucleares, não sabendo qual o seu préstimo; e que mantém um distanciamento para com a UE proporcional ao protagonismo alemão na amálgama comunitária, a saída da Escócia do Reino dito Unido em torno da família Windsor seria traumático.
3. Seria traumático em termos históricos porque a Inglaterra não poderia hoje agir na Escócia com a barbaridade, os massacres e humilhações com que tratou os irlandeses até à sua sofrida independência em 1921… para mais sob a forma de república; e, mesmo assim, ainda amputou o país do Ulster, com a justificação da expressão protestante dos irlandeses locais, argumento que escondeu o interesse na indústria local, mormente dos estaleiros, controlada pelos britânicos. Nos anos 70, agora somente no Ulster (designado por Irlanda do Norte), a Inglaterra manteve-se em guerra com os defensores da união da ilha verde num único estado, defensores esses, alcunhados de católicos ou terroristas e objeto de uma política repressiva indigna do velho liberalismo inglês; este, aliás, tem um longo rosário de indignidades, na Índia, na África do Sul ou no desterro dos habitantes de Diego Garcia para que os EUA ali ficassem à vontade para o controlo do Índico e dos estreitos de Aden e Ormuz.
4. Seria ainda traumático porque uma Escócia independente reduziria o tal Reino Unido a um plano mais secundário no cenário europeu, deixando de ter lugar no conjunto das damas de honor da Alemanha, que ficaria reduzido à França e a uma Itália enfraquecida. Merkel, a teutónica, lá no fundo acharia graça à independência escocesa; e isso também não agradaria a outras chancelarias europeias mesmo que não tenham independentismos latentes nas suas fronteiras.
5. Os estados-nação europeus são na realidade constelações de povos e culturas distintas, sendo o caso suíço um exemplo secular de vivência pacífica no seio da sua diversidade. Em outras situações essa diversidade foi esmagada, como na França post-1789 que, mesmo assim, ainda tem bretões e corsos a contestar a sua suserania. Num contexto de crise e perante a muita incompreensão das caraterísticas do capitalismo de hoje, é sempre possível explorar uma identidade, real ou remota, para apelar a secessões, a diabolizações ou à expulsão do Outro, tomado como peste e fonte de todos os males; a proximidade face ao chauvinismo e ao racismo é infinitesimal e em relação ao fascismo não é muito maior. O sucesso, muitas vezes depende do empenho de interesses exteriores na tutela de um território e das suas riquezas para pagar por esse separatismo, como no caso dramático do Biafra.
6. Tornou-se, recentemente obrigação de qualquer mandarim participar no coro de condenação das pretensões independentistas dos escoceses e ameaçá-los com o ostracismo comunitário, a perda do SNS ou das pensões da segurança social, a fuga das sedes de empresas para o sul, a queda do emprego, da libra, do euro e porque não, acusá-los do aumento das vítimas do ébola ou do derretimento dos glaciares, se votassem maioritariamente YES?
Conseguimos compreender o esforço dos mandarins atuais em intercalar o “problema” da Escócia nos seus múltiplos afazeres. Obama manifestou-se sobre a Escócia entre uma tirada sobre a erradicação do ISIS e outra anunciando o envio de 3000 soldados para a Libéria para combater o… ébola. Por sua vez, os toscos comissários europeus tiveram de fazer um intervalo no seu constante diálogo com os 700 grupos de lobby que o sistema financeiro tem, aquartelados em Bruxelas.
Compreendemos muito bem o agrado como o neo-franquista Rajoy recebeu a ideia de que a UE não reconheceria qualquer secessão nos estados-membros, sendo o novo estado considerado território não-comunitário; e isso deu-lhe força para vir a impedir o referendo catalão de novembro, evidenciando bem o caráter franquista que domina o poder em Madrid e numa atitude muito distinta da tomada em Londres. E, para terminar esta referência a sacripantas, cabe referir o barão da Macaronésia que, entre duas garrafas de whisky, aproveitou a onda do referendo escocês para clamar por um no seu feudo.
7. Os mandarins de serviço são os dignos sucessores dos criminosos que retalharam a Jugoslávia, que colocaram o país em guerras cruentas, na divisão de famílias e a organizarem estados frágeis mas muito “étnicos”; coisas tão bizarras como a Bósnia-Herzegovina, república federal dividida em duas repúblicas, uma de sérvios ditos ortodoxos e outra que junta eventuais católicos de origem croata com supostos muçulmanos, tendo ficado esquecidos, sem estado, ateus, agnósticos, judeus, budistas... Na parte final do processo de desmembramento encheram a Sérvia de projéteis de urânio empobrecido (que espalham radiotividade durante milénios) para poderem libertar o Kosovo e entregá-lo a gangs de mafiosos que traficam o que podem, recebendo dinheiro da UE e hospedando a gigantesca base americana de Boldsten, denominada por pequena Guantanamo e que desenvolve a cultural função do escrutínio dos Balcãs.
8. Convém, porém, ter presente o que significam as independências, hoje. Estamos fora do tempo em que as burguesias nacionais procuravam defender os seus capitalistas da concorrência exterior e torná-los mais aptos na exportação, mantendo os trabalhadores mansos e competitivos enquanto o povo, em geral, inchava o peito de orgulho perante a bandeira pátria a esvoaçar à frente dos jovens mobilizados para a guerra. A segmentação de um território em estados ditos soberanos corresponde apenas à segmentação territorial de uma dada classe política, situação em que cada parcela se vai colocar como lídimo representante dos seus capitalistas na articulação ou no encaixe subalterno face ao capital transnacional e às suas redes de negócio. Como se assistiu há pouco mais de 20 anos, a classe política soviética repartiu-se geograficamente, criou vários estados-nação e garantiu o exercício de funções subalternas face aos grupos multinacionais e ao capital financeiro, trocando o catecismo de Lenin pelo de Hayek, a construção de um capitalismo de estado por um neoliberal.
9. Todo esta histeria sobre fronteiras e soberanias tem como pano de fundo um capitalismo transnacional que atravessa as fronteiras com mercadorias e capitais sem perguntar a ninguém, reduzindo substancialmente o papel dos estados-nação e naturalmente considerando laterais todas as polémicas sobre soberanias, que pouco ou nada o beliscam. Desde que o capital circule, que os mercados funcionem, que a competitividade aumente, que os investimentos sejam rentáveis e os trabalhadores labutem mansamente, pouco importa para o capitalismo globalizado de hoje, onde fica a classe política a contratar e a comprar e que detenha jurisdição sobre um dado território e um determinada população.