segunda-feira, outubro 06, 2014

Igualdade e diferenças

O discurso de Emma Watson nas Nações Unidas, a propósito da campanha “HeForShe”, foi elogiado por frisar que o feminismo não implica odiar os homens (1). Realmente, a discriminação é um problema de todos e lutar por direitos iguais não exige odiar ninguém. Infelizmente, é provável que qualquer pessoa a quem seja necessário dizer isto será uma pessoa a quem não adianta dizê-lo. No entanto, por muito difícil que seja mudar mentalidades, é inevitável que as pessoas sejam substituídas, com o passar do tempo, e quanto mais se discutir estes problemas mais fácil será às próximas gerações corrigir os erros das anteriores. É neste espírito que vou criticar a definição que Watson propôs para o feminismo: 

«A crença de que homens e mulheres devem ter os mesmos direitos e as mesmas oportunidades. É a teoria da igualdade política, económica e social dos sexos.» 

Concordo plenamente que homens e mulheres devem ter os mesmos direitos e as mesmas oportunidades. É corolário do princípio fundamental de que todas as pessoas devem ter os mesmos direitos e as mesmas oportunidades. Não é por serem todas iguais, até porque cada pessoa é diferente das outras e até vai sendo diferente de si própria ao longo da sua vida. Devemos ter os mesmos direitos e oportunidades porque, independentemente das diferenças, somos seres que sentem, desejam, planeiam, sonham, anseiam e pensam ao longo da vida. É isso que nos torna todos diferentes, únicos até, mas também é isso que nos faz a todos igualmente dignos de viver o que somos e como somos, cada um à sua maneira. Se pensarmos nestes atributos que nos tornam diferentes e fundamentam os nossos direitos enquanto indivíduos, é fácil perceber como é injusto discriminar alguém pelo grupo em que o colocamos, seja pela cor, pelo sexo ou pelo sítio onde nasceu. Devemos julgar e respeitar cada pessoa pelo que essa pessoa é e não por uma média do seu grupo ou um preconceito acerca do que “essa gente” deve ser. 

Na nossa sociedade, a discriminação sexual não é a pior. Por exemplo, discriminar as pessoas pelo sítio onde nasceram é mais grave. Quem vive em regiões mais afluentes tem dificuldade em admitir que as pessoas nascidas do lado de lá de uma linha arbitrária no mapa são tão merecedoras de direitos e oportunidades quanto as que nasceram do lado de cá. A orientação sexual também parece ser motivo de maior discriminação do que o sexo em si e quem não se encaixa nos estereótipos de género tende a sofrer ainda mais discriminação do que quem se conforma com o esperado de um homem ou de uma mulher (2). Mas a discriminação sexual é muito grave noutros sítios e é algo que, por cá, se percebe estar inversamente correlacionado com o civismo. Por isso, a discriminação sexual é um bom campo de batalha nesta guerra contra a injustiça de avaliar indivíduos pelos grupos em que os colocamos, sem esquecer que a guerra tem mais batalhas do que esta. 

É da segunda parte da definição que discordo, a da «teoria da igualdade política, económica e social dos sexos». Logo à partida, parece sugerir que homens e mulheres devem ter os mesmos direitos porque são iguais, quando a igualdade de direitos não tem nada que ver com a igualdade no resto. Também é improvável que, ao darmos direitos e oportunidades iguais a toda a gente, passe a haver«igualdade política, económica e social» entre todos. Pessoas diferentes têm preferências e aptidões diferentes e não vão todas fazer o mesmo. É certo que Watson se refere à média dos homens e das mulheres e não ao que cada um faz individualmente mas, mesmo assim, não é razoável esperar que a igualdade de direitos resulte na mesma proporção de homens e mulheres em profissões como polícia de choque ou educador de infância. Também não deve ser só a discriminação que faz com que as top models femininas ganhem mais do que os seus congéneres masculinos, ou o contrário no futebol profissional. Se bem que estes exemplos sejam extremos, é provável que as diferenças físicas, hormonais e de desenvolvimento entre os sexos tenham efeitos médios perceptíveis na generalidade dos casos. É duvidosa a hipótese de que homens e mulheres individualmente livres de escolher o que fazem acabem por fazer, em média, exactamente a mesma coisa. 

Mas é enquanto norma que esta “teoria” é mais prejudicial porque, se tentamos forçar uma igualdade social, económica e política entre os sexos, estamos a cometer precisamente a injustiça que devíamos combater. Estamos a subordinar os direitos de cada indivíduo a preconceitos acerca do grupo. Esta confusão entre a igualdade de direitos e a igualdade de escolhas, que leva à imposição de quotas e medidas afins, apenas muda o aspecto da discriminação sem resolver o problema. É como combater a escravatura exigindo paridade no número de escravos de diferentes raças. O problema que temos de resolver não é o de haver diferenças médias entre grupos. O problema é o de haver restrições às escolhas do indivíduo em função de medidas agregadas do grupo, o que acontece quer o objectivo da discriminação seja favorecer um dos sexos quer seja o de forçar a paridade. Para evitar lutar contra si próprio, o feminismo devia pugnar apenas pela igualdade de oportunidades e de direitos, o que inclui o direito à diferença sem discriminação. 

1- UN Women, Emma Watson: Gender equality is your issue too.
2- Por exemplo, Não quer ser "ela". Não quer ser "ele". Só quer ser uma pessoaNota: se não conseguirem ler isto por o Público protestar que já não têm artigos de borla, abram o link uma janela privada ou limpem os cookies.


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