Observemos o nosso primeiro-ministro, para além da
contingência do cargo que ocupa e das manigâncias ocultas do seu passado;
observemos como ele se revelou desde o primeiro momento, para além dos gestos e
dos discursos oficiais e protocolares; observemo-lo como figura ou tipo e
chamemos-lhe Pedro Manuel, como se fosse uma personagem literária — um Bloom de
Joyce, um Mr. Teste de Valéry, um Franz Biberkopf de Döblin, um Marcovaldo de
Calvino. O nosso Pedro Manuel tem traços de todos eles, mas não coincide inteiramente
com nenhum. Tem escassas potencialidades romanescas, mas consegue oferecer
matéria suficiente para um diagnóstico epocal, na medida em que é o triste
produto do tempo do homem-massa e o engendramento catastrófico do fim de todos
os encantamentos políticos, ideológicos e sociais. É o homem liso, da platitude
inerente às formações de uma sociedade homogénea. Se tem alguma aura, é a aura
pornográfica da massa contemporânea. É o homem alienado? Não, é o homem da
condição estatística, da indiferença, da impessoalidade. A sua presença é tão
espectral que não é possível ver nele senão a presença de uma ausência. E até a
sua voz de barítono, mas sem grão, e o tom de recitação com que debita são
desprovidos de corpo e de mistério. Enquanto figura ou tipo, isto é, naquilo
que tem de comum a tantos outros à sua volta e lhe absorve qualquer pretensão
de singularidade, o Pedro Manuel é a encarnação do “último homem” de Nietzsche,
sobre o qual se abateu a pobreza inerente a um niilismo completo. É, digamos
assim, um homem pós-histórico, que vive como se estivesse desde sempre morto.
Pedro Manuel é o nome de um homem anónimo que surgiu não há muito tempo à
superfície do planeta, um homem sem substância (o que não é exactamente o mesmo
que o “homem sem qualidades”, de Musil, que era ao mesmo tempo um conjunto de
qualidades sem homem). É um representante perfeito da pequena burguesia
planetária que herdou o mundo e da qual um eminente filósofo disse que ela era
a forma sob a qual a humanidade vai ao encontro da sua destruição. Esta pequena
burguesia, na realidade, não é uma classe, é apenas uma massa. Enquanto
governante ao mais alto nível, é legítimo pedir-lhe contas sobre o seu passado,
mas exigir tal coisa ao Pedro Manuel é completamente inadequado: ele não tem mais
espessura do que aquela que o confina a um eterno presente. E há-de morrer como
alguém que nada aprendeu, em que o “não quero nada, não sei nada e não tenho
nada”, muito embora pareça coincidir com um altíssimo conceito de pobreza, de
amplitude metafísica, que vem da Idade Média, do Mestre Eckhart, corresponde
antes à miséria do Nada que se mascara. É uma fantasmagórica vacuidade que traz
consigo uma única mensagem: nada nos pode defender da trivialidade, da
proliferação daninha de Pedros Manueis. A condição política de onde eles
emergem é destituída de toda a grandeza, incaracterística, triste como a carne
e sem sinais luminosos que assinalem o nosso horizonte. O contrário desta
condição, o homem que devemos opor ao Pedro Manuel, não é aquele que foi tantas
vezes solicitado pelo culto dos heróis e que vem para se erguer acima dos
outros, para os guiar. A nova pobreza de que o Pedro Manuel é o nome não deve
ser erradicada em nome de nostálgicas grandezas, a única coisa que devemos
exigir é não sermos espoliados pelo Nada e determinados pela condição póstuma
do último homem, que infelizmente não encarnou apenas no Pedro Manuel. Pedro
Manuel é nome de legião e Massamá é o espaço interior do mundo.