O país à espera da notícia. Parecia a casa dos segredos. Todos davam palpites, todos muito íntimos a comentar com enorme familiaridade alguém que a grande maioria só conhece da televisão, todos muito certeiros nas suas convicções. E o veredicto lá saiu. José Sócrates permaneceria na casa. Bruá! Alguns paladinos do segredo de Justiça fizeram coro, agora contra o inaceitável segredo de Justiça. O juiz apenas comunicou aos arguidos e aos seus advogados, que não se queixaram do mesmo que os paladinos, a fundamentação da sua decisão de mantê-los em prisão preventiva.
E, como se a detenção fosse motivada por tráfico de enchidos de Vinhais e não de corrupção em larga escala, como se o que estivesse a ser averiguado fosse o estupro de um Zangado de peluche e não branqueamento de capitais e fraude fiscal, como se um dos envolvidos não tivesse sido Primeiro-ministro durante seis longos anos, continuou a ouvir-se o mesmo refrão que nasceu logo na Sexta-feira, “isto é apenas um caso de Justiça sem consequências políticas, porque à Justiça o que é da Justiça e à política o que é da política”. Entende-se. O que José Sócrates fez, se fez, não o fez sozinho. Há muita gente preocupada, preocupada consigo mesmo, preocupada com as consequências políticas que o envolvimento de um Primeiro-ministro num caso com a dimensão deste sempre terá e preocupada em semear na opinião pública e para proveito próprio, pessoal ou partidário, as mesmas solidariedades que vêm tornando possíveis toda a espécie de negócios, por mais ruinosos que sejam. E foram.
Proveitosos também. A ruína do lado que perde é sempre igual à fortuna do lado que ganha. À Justiça o que é da Justiça, muito bem, julgar se quem os conduziu do lado das perdas não jogou em vários tabuleiros e também participou no banquete que proporcionou ao lado dos ganhos, para que desta vez fiquemos todos a saber se foram apenas maus negócios ou uma divisão de proveitos reflexa da nossa divisão de perdas. Recordemos alguns. A memória do público da política, tão boa como a do público da casa dos segredos, esquece rapidamente os episódios e os protagonistas das séries passadas.
A estranha nacionalização selectiva do BPN apenas nacionalizou dívidas, deixando nas mãos da máfia que as amontoou tudo o que tinha valor. A reabilitação do parque escolar foi feita por meia dúzia de empresas contratadas maioritariamente sem concurso, logo, a preços malucos. Américo Amorim tornou-se o homem mais rico de Portugal do dia para a noite com a privatização da Galp. A exploração da rede hídrica nacional foi concessionada por quase um século a troco de umas migalhas. Empresas como a J. P. Sá Couto, que pôde vender com desconto pago pelos contribuintes o computador Magalhães em todas as escolas portuguesas, e a Martifer, que pôde vender a todos aqueles com dinheiro para aproveitarem a borla bombas de calor alegadamente ecológicas com descontos da mesma tipologia, estavam prestes a falir antes do negócio que as tornou imensamente lucrativas. As PPP que se constituíram para a construção de auto-estradas foram sendo renegociadas em termos cada vez mais desvantajosos para o Estado e, também progressivamente e na mesma medida, mais vantajosos para o parceiro privado. O “interesse nacional” foi constantemente invocado para justificar construções em áreas até aí ecologicamente protegidas. Foram perdidas largas centenas de milhão de euros descontados por todos nós para nos garantirem velhices dignas quando já não trabalharmos num jogo de casino que envolveu paraísos fiscais. A lista de negócios do socratismo é infindável, não cabe toda aqui.
Se aqui a trago é para ilustrar aquele “à política o que é da política”: o julgamento que dela fizeram os portugueses que a prolongaram despindo o santo que a produziu para vestir o santo que vendeu a preços novamente de amigo, entre outras, a EDP, a REN, os CTT, a ANA, os Estaleiros de Viana e se prepara para alienar a TAP, novamente sem outra reacção que não o mesmo despir do santo responsável pela nova lista para voltar a vestir o padroeiro da central de negócios responsável pela lista que a antecedeu. Com votos que condenam e não com a abstenção que vai permitindo esta alternância do arco da roubalheira seria possível, no “à política o que é da política”, condená-los a todos em simultâneo. Mas o coro exige-o é no “à Justiça o que é da Justiça” e pergunta: “então e os outros?” Os outros também teriam outros que, por sua vez, ainda teriam outros que também teriam outros outros.