domingo, novembro 02, 2014

ASSUNTO: PSEUDOCIÊNCIA NA FACULDADE DE FARMÁCIA

Caros docentes, discentes, displicentes, Homo sapiens em geral da Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa: chegou ao meu conhecimento, o que só prova que os vossos meios de divulgação funcionam bem, que está a ser oferecido na vossa instituição um “Curso Avançado em Medicamentos Homepáticos”. Pelo nome fico com a dúvida se terei perdido o curso básico ou se a homeopatia é sempre avançada. Mas é precisamente para  tirar dúvidas que vos escrevo. E também porque, confesso, não quero pagar os 50€ da taxa de candidatura e muito menos os 500€ de “propinas”, embora reconheça que a inclusão do número da conta bancária (IBAN) no aviso de abertura seja uma solução bastante prática.

A homeopatia, que foi inventada há 200 anos pelo médico alemão Samuel Hahnemann, tem vários princípios. Segundo um deles, a Lei dos Semelhantes, uma substância capaz de provocar um determinado sintoma numa pessoa saudável pode ser usada para tratar esse mesmo sintoma numa pessoa doente. O que me leva a supor que, se tiver algum problema grave com o fígado, o poderei resolver com uma aguardente velha. Mas este princípio, francamente, não interessa muito, tendo em conta outro, de acordo com o qual o poder curativo de uma substância será tanto maior quanto mais diluída ela for. Pouco importa se é uma aguardente velha ou a água dos dentes de uma velha. Como os remédios homeopáticos são preparados através de um grande número de diluições sucessivas, no final não sobra nada.

E aqui fica um curso básico de preparação de “medicamentos homeopáticos”: pega-se numa gota de uma substância qualquer, a chamada tintura-mãe, e dilui-se em 99 gotas de água. Dá-se três pancadinhas, pega-se numa gota dessa primeira diluição e dilui-se novamente em 99 gostas de água. Se repetirmos este procedimento 28 vezes chegamos a um preparado 30C, uma diluição (“potência”) comum em remédios homeopáticos. A diluição total de um preparado 30C é equivalente à de uma gota de tintura mãe diluída em 999999999999999999999999999999999999999999999999999999999999 gotas  de água (são 60 noves).

A chatice é que a matéria é constituída por átomos e moléculas. Não podemos dividir indefinidamente uma determinada quantidade de matéria porque a partir de certa altura ficamos com menos de um átomo ou de uma molécula. E é possível saber o número de moléculas que existem numa determinada quantidade de matéria em virtude do “número de Avogadro”, uma constante determinada por vários métodos independentes e que esteve na base do Nobel da Física de 1926. Como qualquer estudante de química do 10.º ano poderá confirmar, se partirmos de uma tintura-mãe com uma concentração de 1 molar (é uma concentração respeitável) ao fim de 12 diluições centesimais sucessivas restará menos do que uma molécula por cada litro de preparado homeopático. Claro que a concentração inicial pode ser diferente. Mas, como a diluição de um preparado homeopático 12C é tão grande, pouco importa qual é a concentração inicial da tintura-mãe. No final restarão no máximo meia dúzia de moléculas por cada litro, que nenhum efeito têm. E há remédios homeopáticos bastante mais diluídos, em que a probabilidade de se encontrar uma única molécula da tintura-mãe é equivalente à de ganhar o Euromilhões várias vezes seguidas.

Assim, gostaria de perguntar se o número de Avogadro foi revisto, e com ele boa parte da física e da química. Ou se o número de Avogadro, a física e a química que conhecemos se mantêm, e os remédios homeopáticos não têm nada a não ser água e açúcar (no caso dos comprimidos).

Também sei que muitos homeopatas dizem que isto não interessa por causa das pancadinhas dadas entre cada diluição, e que justificam que água retenha uma memória das moléculas que teve dissolvidas (ainda estou à espera da primeira auto-biografia de uma molécula de água). Sei que um artigo da autoria de um famoso cientista francês, publicado em Junho de 1988 na prestigiada revista Nature, demonstrava a existência de uma memória da água. Foi um mês glorioso para a homeopatia, mas foi só um, porque o artigo acabou denunciado como uma fraude em Julho desse mesmo ano, na mesma revista, após uma comissão independente ter tentado reproduzir os resultados.

Em coerência, os ensaios clínicos metodologicamente bem concebidos demonstram que os remédios homeopáticos funcionam tão bem como comprimidos de açúcar, porque são comprimidos de açúcar. 
Ou não será assim? Fico, então, a aguardar pela revogação do número de Avogadro, pelas provas experimentais reprodutíveis de que a água tem memória e pelo corpo de ensaios clínicos bem concebidos que demonstre a eficácia dos remédios homeopáticos. Até lá, julgo que a homeopatia não tem lugar numa faculdade de farmácia que deseje ser levada a sério.

Cordialmente,
David Marçal