sábado, novembro 29, 2014

É TUDO UMA CABALA

Felizmente não somos um povo histérico, pois de outro modo estaríamos a correr nus pelas ruas, sem direcção, chocando uns contra os outros e gritando “u-lulululululu”.
Porquê? Pelo seguinte: Ainda nem uma semana tem uma notícia razoavelmente simpática sobre o défice, que aparentemente está a mirrar. A notícia é só razoavelmente simpática porque as descidas devem-se ao aumento da receita fiscal, ou seja, ao estrafegamento do cidadão luso, esbulhado pelo seu próprio país. Claro que também há uma dose de receita fiscal que vem do Totoaudi, porque o cidadão luso gosta de jogar e desatou a pedir facturas, mas não é a lotaria que nos está a tirar do buraco.
Porém, mesmo espoliados e com frio, pelo menos parece que o défice mirra e isso já não é completamente mau, pois podia perfeitamente estar a subir. Não seria a primeira vez que ficávamos sem nada em solidariedade para com as contas públicas e elas nem um abraço.
Sucede que Bruxelas falou hoje, para nos dar uma alegria, como sempre, porque Bruxelas não nos consegue ver cabisbaixos. Diz então que Portugal está em risco de incumprimento do défice. E como é que isto se resolve? Exactamente! Um Audi ali para o cavalheiro que disse “com mais medidas de consolidação”.
Ou seja, ainda não chega. Isto parece os jogos sem fronteiras. Parece que transportamos, sobre um piso escorregadio, um enorme balde de água que devemos verter para outro balde até atingirmos uma determinada medida. Às vezes parece que estamos mesmo quase, “vai, vai, vai, vai”, mas na verdade não chega e temos de ir buscar mais.
Ora, do lado da despesa está quieto, porque o Governo até já está a trabalhar à luz das velas. Dizem eles que não podem poupar nem mais um tostão e nós só temos de acreditar, pois sabemos que o Estado esforça-se por nos representar da melhor forma, em respeito pelos valores mais nobres da República, entre os quais, aquele que dita que um líder parlamentar não pode andar de Renault Clio.
Por falar em despesa, sabemos também que a despesa com o Parlamento vai subir 6 milhões de euros em 2015. Porquê? Por causa das campanhas eleitorais. Ou seja, os portugueses pagam 6 milhões de euros para serem aldrabados durante 15 dias.
Bom, mas se do lado da despesa nada mais há a fazer, porque não podemos andar por aí com uma democracia toda maltrapilha, então será do lado da receita que temos de ir ao encontro dos receios de Bruxelas. Isto se quisermos ir, porque o Governo já disse que não é preciso. A gaita é que os portugueses sabem que sempre que Bruxelas disse que era preciso uma coisa e o Governo disse que não era, quem é que acabou por ter razão? Exactamente! Outro Audi ali para a senhora que disse “Bruxelas”.
O cidadão luso está, por isso, muitíssimo feito ao bife. Olhem para o vosso pecúlio e pensem “vai ter de ir mais qualquer coisinha”. Às vezes na arrecadação temos lá coisas que já não usamos mas que têm valor. É alienar.
Na verdade, esta não é uma novidade assim tão grande. Fomos avisados, aquando da bancarrota, que estavam pela frente décadas de grande riqueza mas ao contrário – não se diz a outra palavra para não dar azar. Felizmente, temos alternativa, porque a oposição, que nos levou pela mão até à bancarrota, já explicou, milhares de vezes, que isto resolve-se com o crescimento económico, o que é uma verdade indesmentível. Mas… e como é que se consegue esse crescimento económico brutal, que nos tira da forca, assim do dia para a noite? Ah, isso é surpresa. Primeiro temos de votar e eles depois logo dizem. Queríamos saber já, era? Lambões.
Tem de se ter paciência. Até lá, o Parlamento podia entreter-se a investigar, por exemplo, como é que se chegou a este descalabro. Uma espécie de comissão parlamentar de inquérito ao caso Portugal. Mas tinha de ser uma comissão parlamentar de inquérito a sério, porque as de brincar só concluem coisas a fingir e para o caso não chega.
Ora, como já se viu que o Parlamento não consegue levar a cabo uma comissão de inquérito a sério, temos ser nós, a nossas expensas, a fazer essa investigação, para a qual eu quero, desde já, contribuir, sem pedir nada em troca, porque eu faço isto pelo meu país, que ainda é Portugal mas que já esteve mais longe de ser a Estónia.
Pois bem, a minha cabala é que o problema de Portugal são as cabalas. Não há corrupção, não há incompetência, não há má gestão pública, não há falta de ética nem de patriotismo, não há incúria nem desleixo, há apenas muitas cabalas. Mesmo aquela ideia de que Portugal é um país estruturalmente pobre, desigual e marcado pela injustiça, é uma enorme cabala. Devíamos por isso, em vez de querer respostas para os problemas que o país nem sequer tem, procurar quem nos mete estas aldrabices na cabeça, impedindo-nos de ver um país próspero, justo e que oferece uma qualidade de vida tão grande que os seus habitantes até equacionam emigrar, pois provavelmente não se consideram merecedores de tanta folgança.