quinta-feira, dezembro 25, 2014

Treta da semana (atrasada): a priori, de novo.

Pelas minhas contas, este é o 400º post desta rubrica. Era para ser sobre o Gustavo Santos, mas vou deixá-lo para o 401º e ressuscitar a discussão sobre o conhecimento a priori. Não só para evitar estragar a efeméride com o Gustavo Santos mas também porque descobri que 71% dos filósofos julgam que o conhecimento a priori não é um disparate (1) e, por coincidência, comecei também a discutir isto nos comentários a um dos meus posts (2). 

A distinção entre conhecimento a priori e a posteriori é ilusoriamente clara. O conhecimento é a priori se puder ser obtido sem dados empíricos adicionais e a posteriori se for necessário obter mais dados. Um exemplo clássico de conhecimento a priori é “nenhum solteiro é casado”. Para um dado conceito de solteiro e casado, esta afirmação é evidentemente verdadeira mesmo sem ser preciso perguntar aos solteiros se são casados. Um exemplo de conhecimento a posteriori será “nenhum corvo é branco”. Para um certo conceito de corvo, não é evidente se isto é verdade ou não e precisamos de ir observar corvos para tentar testar a hipótese. 

Mas esta distinção é ilusória porque a compreensão de todos os conceitos depende de dados empíricos e o que caracteriza uma proposição como verdadeira a priori é simplesmente a decisão arbitrária de considerar que a informação necessária para concluir que é verdadeira faz parte dos conceitos. Vou dar alguns exemplos deste problema. Primeiro, “nenhum solteiro é casado”. A experiência da Ana levou-a a formar um conceito de solteiro com sendo o de uma pessoa que não é casada. Assim, a Ana não precisa de mais informação para concluir que a afirmação é verdadeira. Mas o Pedro é advogado e trata de muitos casos de emigrantes e imigrantes. Na experiência dele, uma pessoa pode ser casada num país mas esse casamento não ser legalmente reconhecido noutro, onde é considerada solteira. Portanto, para o Pedro, essa afirmação não é verdadeira. É possível alguém ser solteiro e casado ao mesmo tempo. 

O Pedro não percebe nada de biologia. Não sabe distinguir um corvo de uma gralha preta, não faz ideia da definição biológica de espécie e, para ele, um corvo é simplesmente um pássaro preto e grande. Por isso, com este conceito de corvo, “nenhum corvo é branco” é verdade a priori para o Pedro. Mas a Ana é bióloga. Sabe que corvo, em Português, refere normalmente a espécie Corvus corax e que alguns indivíduos dessa espécie são brancos. Portanto, para a Ana “nenhum corvo é branco” nem sequer é verdade. É possível ser corvo e branco ao mesmo tempo. 

É claro que, se os conceitos são diferentes, então as proposições também são diferentes, mesmo quando expressas nas mesmas palavras. Para o Pedro, as frases “nenhum solteiro é casado” e “nenhum corvo é branco” afirmam proposições diferentes daquelas que afirmam quando a Ana as interpreta. Mas para aprendermos alguma coisa daqui temos de ser capazes de fazer esta distinção. Temos de compreender que “nenhum solteiro é casado” é verdadeira para aquele conceito de solteiro mas é falsa para o outro e, como os conceitos são formados pela experiência, essa compreensão também é empírica. O a priori surge apenas como consequência trivial, e irrelevante, de num caso incluirmos no conceito a informação necessária para determinar a verdade da proposição. 

É isto que acontece com proposições como “o Super-Homem usa cuecas vermelhas por cima das calças” ou “o hélio foi descoberto no Sol antes de ser encontrado na Terra”. Se considerarmos que o conceito de Super-Homem inclui o seu visual característico e que o conceito de hélio inclui saber que o elemento tem este nome por ter sido primeiro encontrado no Sol então estas afirmações são verdadeiras a priori. Caso contrário são verdadeiras a posteriori. Mas a diferença está unicamente na decisão arbitrária de incluir, ou não, as cuecas do Super-Homem e a descoberta do hélio nos respectivos conceitos. Em qualquer dos casos, os dados empíricos necessários para avaliar a verdade destas proposições são os mesmos, pelo que se trata de uma distinção sem diferença alguma. 

O problema epistemológico de distinguir entre verdade a priori e a posteriori é como o de decidir se eu sou pesado demais para a minha altura ou baixo demais para o meu peso. Sim. Sou. E depois da festança ainda vou ficar pior. Boas festas para todos. 

Adenda: no Facebook, o Pedro Galvão deu-me um exemplo muito melhor do que estes que usei aqui. Se bem que a intenção dele não tenha sido esta, não resisto aproveitá-lo. O exemplo é “tudo o que é verde tem cor”. Para sabermos que esta afirmação é verdade precisamos de saber, empiricamente, três coisas: que certos estímulos nos fazem sentir ver cor; que coisas verdes reflectem luz numa certa gama de frequências; e que essa gama de frequências de luz é uma que nos faz sentir ver cor. Vamos assumir que o conceito “ter cor” é o de ser capaz de produzir em nós essa sensação. Se o conceito de “ser verde” incluir tanto a propriedade de reflectir luz de certas frequências e a propriedade dessa luz causar a sensação de cor, então a frase “tudo o que é verde tem cor” é verdade a priori porque toda a informação empírica necessária para a avaliar já está nos conceitos. No entanto, se “ser verde” apenas indicar a frequência da luz reflectida sem implicar nada acerca da nossa percepção da cor, então a verdade da afirmação terá de ser determinada a posteriori porque é preciso saber adicionalmente que essa frequência de luz nos causa uma sensação de ver cor. O ponto importante aqui é que aquilo que precisamos de saber empiricamente é sempre o mesmo. Esta distinção apenas separa a decisão arbitrária de definir o conceito de “verde” só em função da frequência da luz e a decisão igualmente arbitrária de incluir nesse conceito a nossa percepção subjectiva da cor. 

1- Sean Carroll, What Do Philosophers Believe?, via Facebook
2- No Facebook, O melhor método.


DAQUI