A quantidade e qualidade de competências a transferir para os municípios eliminam qualquer veleidade de autonomia das escolas e, mais ainda, de autonomia profissional dos professores.
A municipalização da educação pública constitui um antigo
objetivo da direita conservadora, fazendo parte, mais amplamente, da ideia de
“territorialização” educativa, segundo a qual a Escola deveria ser
etnograficamente construída e localmente instituída, competindo ao Estado as
tarefas de “catalização” e “regulação”.
Nesse
sentido, as loas à bondade das gentes e organizações locais, ou à sociedade
civil, contra a maldade do jacobinismo centralizador, podem ser encontrados,
sem dificuldade, nos próceres deste projeto etnoeducativo. De um modo simples,
o que está em causa é a defesa de uma escola “aberta” e construída pela
comunidade local contra uma escola supostamente fechada e governada pelo
corporativismo profissional dos professores. Mais especificamente, uma das suas
ideias fortes é que a Escola deve responder aos desafios da sociedade,
particularmente aos desafios e exigências da economia local e das necessidades
sociais concretas das comunidades, pelo que os projetos educativos destas
escolas devem responder, antes de mais, à sua situação social particular, sendo
que o seu pior pecado será o iluminismo emancipatório e “estrangeirado”. Bem
entendido, a autonomia destas escolas seria imensa, passando pela contratação
dos seus professores ou pela definição de partes muito importantes do seu
currículo, onde as componentes locais e a redistribuição das cargas horárias em
função de disciplinas tidas como nucleares, em detrimento de outras tidas como
secundárias, seriam poderes próprios. Por outro lado, estas etnoescolas
poderiam e deveriam competir entre elas através da qualidade do seu projeto
educativo e da excelência das suas práticas, instituindo-se assim um mercado
educativo cuja aferição seria feita pela realidade económica e social,
sobrevivendo umas e morrendo outras, em função da livre escolha das famílias.
Estas etnoescola
seriam financiadas pelo Estado,
quer através de financiamentos diretos quer através de cheques-ensino
atribuídos às famílias. Esta é uma descrição simplificada mas que contempla o
essencial.
O que este projeto liberal-conservador traz consigo é hoje
evidente: a defesa do darwinismo social, em nome da liberdade individual e do
comunitarismo reacionário. Por um lado a liberdade é usada como argumento para
a defesa da meritocracia e da desigualdade social, por outro o comunitarismo é
defendido como argumento para o combate à liberdade, eufemisticamente referido
como relativismo.
Mas o que este projeto liberal-conservador combate também é
claro: a autonomia profissional do professor, a educação para o universal, a
defesa do sujeito e do cidadão emancipados, uma educação não instrumental e
escolas orientadas por lógicas pedagógicas, de solidariedade, democracia e
igualdade sociais.
O projeto experimental de Nuno Crato para a municipalização das
escolas portuguesas está algures a caminho deste projeto e constitui um híbrido
destas propostas liberais-conservadoras. A hibridez decorre da própria ideia de
municipalização da educação pública, fazendo-a depender de um nível local do
Estado, não correspondendo, portanto, à institucionalização de um mercado educativo.
De facto, não se percebe como este objetivo se pode compaginar com a ideia de
introdução do cheque-ensino ou das “escolas livres” e de um mercado educativo
etnográfico, já que isso corresponderia a uma intrusão do Estado central no
âmbito de gestão das escolas públicas que agora se quer conceder aos
municípios.
Mas esta hibridez decorre, também, da contradição entre a
retórica da autonomia das escolas e aquele que é um dos mais marcantes e
assustadores objetivos desta reforma de Crato, o da transferência de parte
muito substancial das competências pedagógicas e curriculares das próprias
escolas para os municípios, praticamente as esvaziando daquilo que lhe é
próprio por definição: o múnus pedagógico, i.e., o saber, a experiência, o
conhecimento e a construção pedagógica concreta.
É tão vasta a proposta de Crato de corresponsabilização ou de
simples transferência de competências pedagógicas das escolas para os
municípios que as escolas ficariam, na prática, a ser diretamente dirigidas
pelos vereadores e presidentes das câmaras municipais. Só como exemplo,
propõe-se que passem a ser competências em mútua corresponsabilização da Escola
e dos municípios a construção do “plano de formação contínua de professores”, a
“concepção e concretização de estratégias de prevenção relativas a potenciais
grupos de risco”, a “identificação dos alunos em risco de aprendizagem e
concepção e concretização de estratégias de prevenção e ação”, a “programação
das ofertas curriculares no âmbito da gestão flexível do currículo”, a
“definição de conteúdos, metodologias, atividades e avaliação das componentes
curriculares locais” e o “desenvolvimento de métodos e instrumentos adequados
de avaliação aos alunos em consonância com o Projeto Educativo”. Como
competências exclusivas dos municípios passaríamos a ter, por exemplo, entre
muitas outras, o “estabelecimento de protocolos com outras instituições para a
concretização de componentes curriculares específicas de caráter vocacional
e/ou profissionalizante”, o “implementar projetos, experiências e inovações
pedagógicas, em função dos recursos humanos disponibilizados”, o “recrutamento
de pessoal docente para projetos específicos de base local” ou a
“contratualização de serviços educativos especializados a afetar a determinados
projetos”.