1. “Pecámos contra a dignidade dos povos, nomeadamente na
Grécia e em Portugal e muitas vezes na Irlanda”. As declarações do presidente
da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, proferidas a propósito da actuação
da troika, perante os representantes dos Estados-membros e
transmitidas pelos órgãos de comunicação social, constituem um mea
culpa formal e em termos raramente ouvidos da boca de um político.
Juncker considerou que a troika era um
órgão sem legitimidade democrática e que a Comissão Europeia agiu de forma
errada ao dar-lhe carta branca para impor políticas de austeridade aos
Estados-membros e ao “confiar cegamente” nela. Juncker considerou que, no
domínio da assistência financeira aos estados, “tudo deve ser revisto” e
admitiu mesmo que parecia “estúpido” ao dizer isto agora, ele que foi
presidente do Eurogrupo, mas que é necessário “aprender com as lições do
passado e não repetir os mesmos erros”. Mas Juncker não disse apenas que a troika foi
ineficaz. Ao usar a expressão que usou, o presidente da Comissão introduziu um
julgamento moral que não pode deixar de ser pesado. Para Juncker, a acção da troika não
foi apenas tecnicamente errada. Ela foi também politicamente contraproducente e
moralmente inaceitável.
É impossível não concordar com o político luxemburguês
quando diz que faz figura de parvo ao admitir agora isto, enquanto se calou
antes, mas é evidente que Juncker, que de estúpido terá pouco, o diz hoje
porque o pode dizer sem grandes custos e não o podia dizer antes sem arriscar a
cabeça.
O que faz com que Juncker tenha ganho este espaço de manobra
não é apenas o facto de ser hoje presidente da Comissão Europeia, mas o facto
de a posição do novo Governo grego ter obrigado as instituições europeias, os
governos europeus, as instituições financeiras, os analistas, os media e
a opinião pública a uma reavaliação do papel e da legitimidade da troika que
dificilmente poderia ter outro resultado.
Se não houvesse outra razão, esta seria já uma boa razão
para nos congratularmos com a eleição do Syriza na Grécia.
2. As declarações de Juncker são raras num político, mas não
são a história toda. E a história toda poderia fazer deste episódio um case
study nos cursos de relações internacionais, se Passos Coelho e o seu
Governo tivessem relevância política ou intelectual para ficarem na história.
A história completa-se com a reacção do Governo português às
declarações de Juncker, pela boca de Marques Guedes, ministro da Presidência do
Conselho de Ministros e dos Assuntos Parlamentares, que considerou as
declarações do presidente da Comissão Europeia “infelizes” e garantiu que a
dignidade de Portugal “nunca foi beliscada” pela troika.
Como se pode entender que, por um lado, a Comissão Europeia
diga que ofendeu a dignidade dos portugueses, que se penitencie pelo facto e
que afirme que isso não pode voltar a acontecer, e que, por outro lado, o
Governo português responda que não senhor, que a dignidade dos portugueses não
foi ofendida, que não há razão para penitências nem para falar de indignidade?
A explicação é chocante, mas simples: acontece que
Jean-Claude Juncker é mais exigente na defesa da dignidade dos portugueses do
que o Governo português.
Para Paulo Portas (que instituiu oficialmente o regime de
“protectorado” de Portugal sob a tutela das potências europeias sem o mínimo
sobressalto patriótico, como se se tratasse apenas de um contratempo menor) e
para Pedro Passos Coelho e Maria Luís Albuquerque, para quem servir os credores
de Portugal é a mais alta das honrarias, é difícil imaginar o que seria ofender
a dignidade dos portugueses, porque o conceito de dignidade do povo português é
algo extremamente vago, que se encontra subalternizado em relação à vassalagem
devida aos mais fortes e à admiração devida aos mais ricos.
Outra razão por que o Governo português e o seu ministro
porta-voz receberam mal a afirmação de Juncker é porque ele fechou, de facto, a
porta àtroika e disse que esta indignidade não pode voltar a
acontecer, mas, caso se apresentasse outra oportunidade, o Governo em bloco
gostaria de obedecer de novo às ordens da troika, mesmo sendo ela
arrogante, antidemocrática e ineficaz, porque sabe que isso agrada aos seus
maiorais.
3. Quando o Governo grego disse que não negociaria com a troika e
acabou por aceitar negociar com — além do Eurogrupo — a Comissão
Europeia, o FMI e o Banco Central Europeu, houve quem tivesse falado de uma
mera “questão de semântica”, já que estas três instituições eram, de facto, a troika.
Mas há uma diferença política fundamental. Há um mundo de diferença entre ter
ministros a negociar com Christine Lagarde, Mario Draghi e Juncker ou ter os
mesmos ministros a obedecer a três burocratas com imenso poder, imensa
arrogância, nenhuma legitimidade e nenhuma flexibilidade. Para perceber como
isto é diferente, basta ver as diferenças entre o discurso dos dirigentes do
FMI e a posição do funcionário do FMI na troika durante o
“programa” português. A Grécia conseguiu arredar a troika do
panorama e, também por isso, a vitória do Syriza é importante para a Europa.