Nuno Crato, Poiares Maduro e os autarcas experimentalistas
trataram a Educação como se fosse uma grande rotunda e os professores como
pacientes sujeitos a raio X: quietinhos, não respirem, já está!
É o mais generoso que se pode dizer quando se analisa o
processo e a proposta de Contrato Interadministrativo de Delegação de
Competências, com que pretendem pôr em prática o que é comummente designado por
municipalização da Educação. O processo teve a clareza de um pântano. O
documento são 28 páginas de verbo magro e matreirice gorda. Deplorável, para
qualquer administração pública decente. Adequado a um Governo a que só falta
privatizar o Galo de Barcelos. Passemos a alguns factos ilustrativos da mediocridade,
que todos não cabem.
Várias cláusulas da proposta de contrato são ilegais, porque
desrespeitam o regime de autonomia, administração e gestão das escolas
públicas, fixado em três diplomas (DL n.º 75/2008, de 22 de Abril, DL n.º
224/2009, de 11 de Setembro, e DL n.º 137/2012, de 2 de Julho). É o caso
concreto da alteração das competências dos conselhos gerais e dos directores,
que só um decreto-lei poderia derrogar. O choque entre a lei e o contrato é
mais gritante no caso das escolas com contratos de autonomia. Aqui, são duas
portarias (a n.º 265/2012 e a n.º 44/2014) implodidas pela autocracia dos
contratantes.
Pelo escândalo que gerou, caiu o convite escabroso para que
as câmaras cortassem professores, até ao limite máximo de 5% do número
considerado necessário, a troco de 12.500 euros por docente abatido. Mas porque
os agiotas não dormem em serviço, a Cláusula 40.ª ampliou o cinismo da poupança
a todos os recursos educativos e regulamenta a partilha de 50% dos despojos.
Chamam-lhe “incentivos à eficiência”.
O pessoal não docente passa a ser gerido pelas autarquias
(Cláusula 19.ª), abrindo-se a porta à utilização do mesmo em qualquer serviço
camarário. A Cláusula 21.ª torna ainda mais fácil a contratação de privados
para o funcionamento das AEC. A Cláusula 25.ª congela todos os gastos
por quatro anos. A Cláusula 39.ª favorece a desvirtuação do trabalho
pedagógico sério em benefício dos resultados nos exames. A definição dos
critérios para a organização e gestão da rede escolar fica pelouro da autarquia,
via verde para a privatização que se pretende. E o empreendedorismo
voluntarista que as autarquias podem iniciar com a decisão sobre 25% dos curricula já
esboçou os primeiros sinais com o presidente da Câmara de Óbidos a anunciar
Filosofia para os alunos do 1.º ciclo do básico, yoga para os do
jardim-de-infância e golfe e eco design para os do secundário.
Serão poucos os que guardarão memória do Guião para a
Reforma do Estado, apresentado pelo vice-primeiro-ministro e objecto de reunião
magna do Governo na Sala do Capítulo do vetusto Mosteiro de Santa Maria de
Alcobaça. Redigido em corpo 16 e com espaçamento pródigo para suprir em espaço
o que lhe faltava em ideias, o documento teve o mérito de fixar em escrita uma
agenda de entrega ao mercado das mais importantes funções sociais do Estado,
sendo as propostas para a Educação o paradigma claro da intenção de utilizar
fundos públicos para financiar negócios privados: criação de escolas
concessionadas, instituição do cheque-ensino e reforço dos contratos de
associação.
Por ironia do destino, a pompa do acto foi servida por
circunstância curiosa, que os monges de Cister não protegeram: a imprensa,
nacional e internacional, com a prestigiada The Economist à
cabeça, dava-nos na mesma altura conta da falência completa da alma
mater das escolas concessionadas. A reforma inspiradora, a sueca,
iniciada há 20 anos, falhara em toda a linha: a diferença de qualidade entre
escolas tornou-se um problema nacional; a segregação social, que antes não
existia, cresceu preocupantemente; os resultados dos alunos suecos, medidos
pelo PISA, desceram exponencialmente; os gastos públicos não diminuíram; e o
ministro sueco da educação anunciava o fim da festa e o retorno das escolas à
tutela directa do Estado, reconhecendo que a reforma não poupou, não melhorou e
segregou, em nome de uma liberdade de escolha que não funcionou.
Os pressupostos fixados na proposta de delegação de competências
em apreço, cruzados com as intenções que já foram anunciadas quanto ao
cheque-ensino, poderão repetir no país o que se verificou na Suécia, com a
criatividade activa dos grupos económicos a explorarem o negócio até que, anos
volvidos, se reconheça a sua falência. Com esta municipalização, os autarcas
acabam promovendo políticas a que se oporiam se a iniciativa partisse do
Governo central, e o Governo central subtrai-se, maquiavelicamente, aos
protestos que as suas políticas originariam. É caso para citar Steve Jobs:
“Porquê alistarmo-nos na marinha, se podemos ser piratas?”