“A nova Europa deverá, portanto, constituir um todo: um
agrupamento de países autónomos na sua governação e administração, mas
orientados por princípios gerais uniformes”, o que implica “(a) o
reconhecimento pelos diferentes Estados da solidariedade dos seus interesses
individuais; (b) uma certa uniformização na estrutura desses Estados; (c) um
acordo geral sobre os princípios e processos a adotar para alcançar os fins que
se têm em vista”. O texto é de 1941, mas podia ser de 2015. Quem escrevia assim
sobre os projetos de “comunidade europeia” (a terminologia era mesmo essa) que
a Alemanha de Hitler queria impor à Europa na II Guerra Mundial era Tovar de
Lemos, negociador económico do Ministério dos Negócios Estrangeiros, um
diplomata monárquico que Salazar mandara para Berlim depois de se ter
convencido (ocupação de França e dos Balcãs, isolamento da Grã-Bretanha,
conquista de metade da parte europeia da União Soviética) que a Alemanha
ganhara a guerra no continente.
Governando um país periférico face ao conflito, as elites
salazaristas (seguindo uma tradição que se mantém até aos dias de hoje) não
queriam perder um barco que os levaria, sem participar na guerra, a entrar na
Nova Ordem Europeia que Berlim ia tecendo. O mais curioso é ver como os
dirigentes de um regime abertamente nacionalista se punham em bicos de pés
para, já então, se fazerem passar pelos melhores amigos do chefe da pandilha:
um tecnocrata dos anos 40 como era Tovar garantia a Salazar: “Podemos desde já
salientar que dificilmente se encontrará na Europa outro país que apresente em
relação à Alemanha tamanha similitude de instituições, de princípios de
governação e de ideologias políticas e sociais como o nosso. (…) Em parte
alguma encontrará a Alemanha menor necessidade de uniformização que em
Portugal.” (Relatório, 15/11/1941, reproduzido em Dez Anos de Política
Externa, 1936-1947)
Lembrei-me deste exemplo (entre muitos) a propósito da tese
sibilina que Wolfgang Schäuble, esse velho advogado que faz as vezes de
ministro das Finanças na Alemanha, expendeu sobre o “'sucesso' do programa
português” por comparação, subentenda-se, com o insucesso da política grega:
ele “explica-se pela confiança e credibilidade” (citado no Negócios,
18/2/2015). À sua frente, em Berlim, numa conferência da Fundação Bertelsmann,
a nossa ministra, com aquele seu sorriso profissional, deliciava-se com essa
outra farpa lançada aos novos governantes gregos do Syriza: "O mais
importante é não destruirmos a confiança mútua. Se [a] destruirmos, estamos a
destruir a Europa." “[Pelo contrário,] Portugal, em conjunto com a
Irlanda, é 'a melhor prova' de que os programas [europeus de assistência
financeira] funcionam, 'e de forma mais eficaz do que muitos esperariam há
quatro anos'.”
Foi, com certeza, nessa “confiança”, e beneficiando dessa
especial “credibilidade” de que a nossa ministra dos swaps goza
junto de Schäuble (um impoluto político investigado em 1999-2000 por
financiamento ilegal do seu partido) que, como garante o jornal alemão Die
Welt, terá pedido “pessoalmente” a Schäuble firmeza ao para enfrentar esse
“contador de histórias” (Passos dixit) que lhes parece ser
Varoufakis.
Já muito se disse sobre esta especial vocação do Governo
português (o de Passos não foi o primeiro, e não será, infelizmente o último)
para fazer o papel de queixinhas do xerife Schäuble, até mesmo quando o seu
vice Juncker quis vir encenar um arrependimento dissimulado e lamentar-se da
humilhação infligida a portugueses e a gregos. Os intermediários nacionais da
humilhação sentiram-se, naturalmente, magoados... O que me parece significativa
é essa terrível pobreza da política europeia do Estado português, ou
simplesmente de toda a sua política externa. País periférico do centro europeu
da economia mundial, e parceiro perfeitamente menor da estratégia
norte-americana no mundo (veja-se como andam desesperados os atlantistas
militantes ao verificar como Portugal aparece no item peanuts das
prioridades de Washington), a única estratégia que se percebe haver, de novo,
na forma como se tem posicionado Portugal na Europa e no mundo desde o fim do
período revolucionário e a descolonização é a permanente procura de colagem a
quem manda no mundo, isto é, aos EUA-polícia-global, por mais que a sua
política crie cisões no próprio Ocidente em que Lisboa enfileira; e ao
diretório de turno na Europa, o que, desde Maastricht, Tratado Orçamental e,
sobretudo, o pacto com a troika, passou a ser a Alemanha, mesmo
quando esta nem se preocupa em esconder a sua opção por uma UE organizada em
círculos concêntricos, no mais central dos quais está apenas ela e aqueles que
sigam os estritos preceitos que lhe garantam uma hegemonia económica e
comercial que, desde a unificação, ela deixou de fingir querer partilhar com os
demais. Os governos portugueses (direita ou PS, é indiferente) são, de resto, a
par do britânico, do holandês, do dinamarquês e dos da Europa pós-comunista (a
nova Europa, como lhe chamava Rumsfeld, para a distinguir de alemães e
franceses que então mostravam, a propósito da invasão do Iraque, alguma
autonomia), dos que mais se empenham em compatibilizar o que muitas vezes é
incompatível: um atlantismo ortodoxo, que cala todas as críticas a um
aventureirismo bélico americano que se tornou permanente, e um europeísmo que,
sem nunca se assumir federalista, presume a cedência total a Bruxelas/Berlim da
soberania económica como a melhor forma de impor aos portugueses um modelo que
contradiz todos os esforços de democratização social, contornando uma
Constituição que, desta forma, passou a ser irrelevante sequer rever.