domingo, março 22, 2015

Manual da investigação preguiçosa e eficiente

Procure cedo jornalistas, para que estes, conscientes ou não, lhe vão dando uma mãozinha na arena pública, e vai ver que passo a passo o seu caso se faz.


O título parece remeter para um paradoxo ou um delírio. Mas não, trata-se apenas de um exercício de ficção (que, felizmente, não tem qualquer semelhança com a realidade, nem por mera coincidência), e já se sabe que a ficção é boa a harmonizar contrários e a oferecer lições sob a forma de aparentes delírios. Se Orwell ou Huxley regressassem ao mundo dos vivos e se pusessem a imaginar um futuro opressivo e nada admirável, teriam de incluir nos seus escritos pelo menos um capítulo sobre a investigação criminal, não só porque o processo criminal se tornou protagonista da (pós)modernidade, mas também porque é um bom medidor da saúde ou da doença de uma sociedade.
Ora, imagino – e imagino apenas, porque a realidade que conheço e vivo é diferente, claro – que Orwell ou Huxley fariam o tal capítulo em jeito de manual, enunciando as regras de ouro de uma investigação simultaneamente preguiçosa e eficiente. Se bem aplicadas, e especialmente se acumuladas – duas, três ou todas –, permitiriam que uma investigação sentadinha e em feliz descanso fosse eficiente ou até mesmo muito eficiente. Primeira regra: prenda-se preventivamente o suspeito ou o co-suspeito, mesmo que os perigos que justificam a prisão tenham de ser, digamos, dramatizados, e espere-se que ele, cansado de estar preso, dê uma colaboraçãozinha ou se arrependa um pouco ou bufe qualquer coisa, após o que se poderá ponderar a libertação. E basta esperar sentado. A eficiência pode tardar, mas na maior parte dos casos chegará, de uma forma ou de outra. E será, bem-haja, uma eficiência para todo o processo, pois as declarações valem para sempre. Segunda regra: escute-se muito ao telefone, e interprete-se ainda mais, pois já se sabe que a luz nasce da interpretação, sobretudo quando – em vez de gastar energia a procurar, a dissecar ou a pensar – se pode preguiçar, de auscultadores postos, e esperar que a preguiça aguce a imaginação (perdão, a interpretação).
Terceira regra: aposte-se forte na prova indirecta, aquela que permite a qualquer investigador sentado em remansoso descanso, e a qualquer julgador bem sintonizado com ele, descobrir e construir o que, levantado e à procura, levaria muito mais tempo a descobrir, se é que descobriria. Deduza, imagine, deduza da dedução, induza, lucubre. Como diria a Floribela, sirva-se de uma super-hiper-mega prova indirecta, e verá que chegará ao resultado, mesmo que pelo caminho possa ter dado regalados bocejos. Quarta regra: procure cedo jornalistas, para que estes, conscientes ou não, lhe vão dando uma mãozinha na arena pública, e vai ver que, passo a passo, o seu caso se faz, primeiro na arena pública e depois – com sorte, sintonia e/ou preguiça – na arena do processo. A quarta regra talvez seja a mais importante de todas, sobretudo em certo tipo de investigações, mas qualquer das outras já dará um bom contributo para demonstrar que preguiça e eficiência podem andar de mãos dadas. Na ficção, naturalmente.

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