quarta-feira, março 25, 2015

Para uma Constituição Democrática com caráter de urgência – 3

8 – Democracia, só com ruptura com o regime cleptocrático

Os povos de Portugal e do resto da Europa são ignorados, desprezados e violentados por gestores obtusos, juristas maliciosos a soldo e coros de papagaios de oco verbo.

Quem tem vivido a austeridade, a perda de direitos, a precariedade na vida, a impunidade da corrupção e outros elementos que afligem os residentes em Portugal, pode testemunhar que a autoridade (governo/troika) separou, autonomizou as decisões, das consignas constitucionais. A lei foi suprimida pelo poderoso e inapelável TINA – “there is no alternative”; e, se uma lei é torpedeada com toda a ligeireza e impunidade isso é equivalente a não haver lei. A barbárie instalada, tal como as ondas magnéticas o corpo humano, trespassa a Constituição, sem lhe provocar um leve estremecimento.

Para a classe política tudo o que atrás se disse é retórica pois no seu seio há duas posições típicas face à actual Constituição da República Portuguesa (CRP). Uns borrifam-se porque nela nada os perturba na realização dos seus negócios ou na apropriação do produto do saque fiscal; outros, borrifam-se nela, encolhendo-se, temerosos para que não sucedam males piores, num conservadorismo atávico. Uma farsa, um jogo de sombras que anuncia o rolo compressor de um novo fascismo[2].

Daí que seja necessário uma CRP blindada às interferências das decisões convenientes para o capital financeiro, às empresas de regime e aos seus funcionários no poder; e essa blindagem só se consegue com uma população que seja protagonista da prática democrática e que recuse ser colonizada pela propaganda que a faz confundir democracia com a existência de uma classe política.

Convém que se esclareça não irmos proceder à elaboração de uma Constituição alternativa acabada. Isso exigiria uma abrangência de conhecimentos jurídicos e sectoriais que não temos e que só se consegue num leque muito alargado de pessoas; e, sobretudo com a participação interessada da população, num processo de decisão coletiva, semelhante ao que aconteceu na Islândia[3], poucos anos atrás.

Uma Constituição terá de ser sempre uma construção coletiva, discutida, participada, referendada e não um produto concebido por especialistas fechados em conclave, ungidos para decidir o que é bom ou mau para um povo dado por ontologicamente ignaro mas, antecipadamente devedor de gratidão pelo labor dos sábios.

Uma Constituição existente nunca é uma obra perfeita. E refletirá, não só a época em que foi elaborada como, sobretudo, as idiossincrasias e os interesses que os seus autores veicularam para o texto. É sempre um produto histórico, datado, tanto mais ultrapassado pela realidade quanto maior é a cópia de detalhes, como no caso da CRP. Pretendeu-se com toda essa profusão de detalhes estatuir práticas imutáveis, prevenir desvios e interpretações inconvenientes mas, cuidando de manter uma sociedade fatalista, pouco organizada, amordaçada e colocada pela classe política, para fora de qualquer protagonismo; essa estratégia visou manter fácil a obtenção de uma caução silenciosa ou silenciada às tais ínvias interpretações, cozinhadas por admiradores não confessos de Schmitt.

Não havendo uma sociedade dinâmica e atuante, não há democracia, nem Constituição que lhe possa valer, avultando pesadamente a tradicional aliança entre a oligarquia dos interesses e a classe política, ambas em regime de vassalagem face aos poderes externos, como se mostrou com toda a transparência, nos últimos anos.

O exercício que vamos desenhando, desenvolve-se numa conjuntura cada vez mais marcada pelo folclore eleitoral onde proliferam actores e vaidades, partidos e proto-partidos e na qual até já se fala de ruptura. Ora, para haver ruptura é preciso a tal dinâmica social e a colocação de consignas que, de modo claro, definam os processos que estimulem e consolidem essa dinâmica. Parece certo que não haverá um golpe militar como em 1974, que não surgirá nenhum caudilho polarizador (efémero) da plebe e, menos ainda, que entrarão pela fronteira entes salvadores e condoídos com a triste sina do povo português.

Neste contexto, de marasmo político e anomia social, há quem nos tenha dito que falar de revisão da CRP não é assunto actual ou mesmo, que favorece a direita.

Face à primeira crítica, pelo contrário, entendemos ser necessário o debate e a consolidação de ideias que, num futuro que se deseja próximo, possam servir para construir a democracia e mandar a classe política pelo cano abaixo. Ideias claras que promovam alternativas podem dotar a multidão de objetivos e ajudar à formação de dinâmicas sociais.

Quanto à segunda crítica, as alternativas sobre a organização política e a representação que vamos esboçando não são desejáveis pela direita em geral ou pela classe política em particular, bem mais interessadas em privatizações, formas de aumentar a punção fiscal, de perpetuar mordomias ou imunidades e para as quais a actual CRP tem sido fraco obstáculo. Vindo esta crítica dos lados da “esquerda” cuja ineficácia política é patente, não deixa de ser surpreendente[4].

Cingir-nos-emos, praticamente ao sistema político e ao modelo de representação cuja configuração actual afunilou as decisões sobre as nossas vidas num escol de muito duvidosa qualidade e bem conhecida venalidade mas, com todas as pretensões de representatividade e legitimidade. Acrescente-se que em grande parte essas decisões pertencem a indivíduos que nunca sequer passaram por qualquer veredito eleitoral, mesmo no actual plano adulterado de actos eleitorais em que são as chefias partidárias que nomeiam candidatos, apresentados à plebe como consumados representantes.