segunda-feira, março 02, 2015

Treta da semana: a estratégia

O Conselho de Ministros aprovou a semana passada uma «estratégia nacional de combate ao terrorismo» (1). Em concreto, isto parece consistir de dois tipos de medidas. Por um lado, «a unidade de coordenação antiterrorismo vai ter as competências reforçadas», o que é suspeito. Como resposta a um aumento do risco de ataques terroristas seria razoável aumentar os recursos desta unidade, o número de efectivos ou a qualificação do seu pessoal, mas as competências deviam ser as mesmas. Nomeadamente, coordenar as acções de antiterrorismo. Por outro lado, o Conselho de Ministros decidiu alterar várias leis, «atualizando a definição de terrorismo», mudando a «lei que estabelece o regime jurídico das ações encobertas para fins de prevenção e investigação criminal», a «lei que estabelece medidas de combate à criminalidade organizada», as leis de«Organização da Investigação Criminal» e de «Segurança Interna», e até «criminalizando a apologia pública do crime de terrorismo». Isto é muito mais consistente com o aproveitamento do terrorismo como desculpa para abusar do poder do que com medidas racionais de combate ao terrorismo. 

Logo à partida, não faz sentido haver legislação específica para o terrorismo. O terrorismo é o recurso organizado a crimes violentos para lançar o pânico e coagir populações e órgãos de soberania. Tudo isso já é regulado pelo código penal. A conspiração para cometer crimes, a organização de pessoas com intuito de cometer crimes, os crimes violentos, a perturbação da ordem pública, a ameaça e a coação já são crimes. Não há nada mais no terrorismo que precise de ser criminalizado. Pelo contrário. Dada a motivação e a psicologia do terrorismo, o pior que se pode fazer é conceder-lhe esta distinção. Nem lhes devíamos chamar terroristas. São criminosos. Não é por matarem por uma ideologia em vez de por dinheiro, ódio ou qualquer outro motivo corriqueiro do criminoso vulgar que merecem uma categoria própria para a sua criminalidade. 

Outro problema sério é mudar as leis em resposta a uma ameaça que não traz crimes novos. Já temos leis pensadas para homicídios, crime organizado, uso de armas de fogo, bombas, e o que mais os terroristas possam usar. Não existem lacunas legais que o terrorista possa aproveitar para nos aterrorizar sem cometer ilícitos, a menos que seja membro do Conselho de Ministros. 

E a cereja no cimo do bolo – ou, melhor, a varejeira pousada na bosta – são os novos crimes que propõem. «Uma das propostas passa pela criação de novos tipos de crimes de terrorismo, nomeadamente a criminalização da apologia pública do crime de terrorismo, viagens para adesão a organizações terroristas e o ato de aceder ou ter acesso aos sítios da internet onde se incita ao terrorismo.»(2). Viajar não é crime. Nem quando alguém viaja para assassinar, para roubar ou para burlar a viagem é crime. O que faz sentido porque viajar não é crime. O crime é assassinar, roubar e essas coisas. Excepto no caso do terrorismo. Aquelas três perigosas adolescentes britânicas que viajaram para a Síria, por exemplo, cometeram um crime terrível que nos deve assustar a todos. Temos por isso de dissuadir qualquer pessoa disposta a viajar para aderir a uma organização terrorista pela ameaça de três meses de pena suspensa, sessenta dias de multa ou o que o valha, se for apanhado em flagrante viagem. 

Criminalizar a «apologia pública do crime de terrorismo» vai além do disparate. Primeiro, porque a apologia pública do que quer que seja é um direito que temos de proteger do terrorismo em vez de o sacrificar por causa do terrorismo. Em segundo lugar, não é nada claro qual o limite do crime. Se a apologia de que se rebente bombas em Lisboa for crime, também será crime defender que se rebente bombas em Mosul ou noutro sítio qualquer? Será inconveniente se tiverem de prender todo o Estado-Maior-General das Forças Armadas por causa desta legislação. Mas, acima de tudo, nenhuma lei que proíba a apologia do que quer que seja pode ser legítima numa democracia porque a legitimidade democrática das leis exige um debate livre acerca do que queremos ou não queremos que seja crime. A monarquia, por exemplo, é expressamente proibida na nossa Constituição mas nem assim se justifica criminalizar a sua apologia. Porque, se fosse proibida a sua apologia, já não seria legítimo proibir a monarquia. 

Querem também criminalizar «o ato de aceder ou ter acesso aos sítios da internet onde se incita ao terrorismo». Não é só aceder. É também crime ter acesso. Suspeito que esta gente tenha a mesma ideia da Internet que a minha avó tinha há uns anos, quando me disse para não deixar os miúdos irem lá ver coisas depois das dez da noite porque a essa hora dão programas que não são para crianças. 

As leis devem ser fruto de uma ponderação cuidada entre a segurança e as liberdades que queremos defender e a democracia exige que isto seja feito de forma transparente, respeitando a vontade dos cidadãos e os seus direitos fundamentais. Que meia dúzia de burocratas escolhidos pelo poder executivo se ponham a alterar coisas como a «o regime jurídico das ações encobertas»e a inventar crimes novos à porta fechada assusta-me mais do que a ameaça do terrorismo em Portugal. 

1- Governo, APROVADA A ESTRATÉGIA NACIONAL DE COMBATE AO TERRORISMO
2- TVI24, Terrorismo: os novos crimes aprovados pelo Governo.


DAQUI