segunda-feira, março 30, 2015

Treta da semana: a lista.

O Ministério das Finanças implementou um sistema que notifica a chefia quando um funcionário consulta registos fiscais de certas pessoas importantes. A preocupação principal neste momento parece ser a de descobrir quem criou a lista dessas pessoas e apurar “responsabilidades políticas”. Para descobrir o autor eu sugeria que usassem o método Rua Sésamo. Na lista constam o Presidente da República; o Primeiro-Ministro; o Vice-Primeiro-Ministro; e um dos cinco Secretários de Estado que auxiliam a Ministra das Finanças. Perguntem qual dos quatro não pertence ao conjunto e terão pelo menos uma ideia do autor mais provável. Mas isto não é sobre a lista e muito menos sobre o autor, ambos problemas menores. 

Um problema mais sério é a forma como o Ministério das Finanças zela pelo sigilo fiscal. Aparentemente, criaram a lista porque todos os funcionários das Finanças têm acesso permanente a todos os registos de todos os contribuintes e era necessário saber quem andava a bisbilhotar os processos das três pessoas mais importantes do Estado. Ou os do outro. Mas não há razão para dar a todos os funcionários um acesso permanente a todos os registos. Se bem que todos os registos devam estar sujeitos a verificação, cada funcionário precisa apenas de aceder àqueles com os quais está a trabalhar em cada momento. Seja por amostragem, denúncia ou detecção de inconsistências, é fácil automatizar a atribuição de processos aos funcionários permitindo acesso apenas aos registos relevantes e enquanto for necessário. Isto até nos serviços de atendimento telefónico e presencial. O contribuinte que telefone com dúvidas pode ser atendido por um telefonista que regista o NIF, o sistema depois atribui aleatoriamente o atendimento a um funcionário disponível e só este último tem acesso aos dados do contribuinte enquanto resolve o problema. No atendimento presencial, o contribuinte pode inserir o seu NIF quando obtém a senha de atendimento e a autorização de acesso aos dados e concedida temporariamente ao funcionário que atenda essa senha. 

Haverá certamente muitas formas de restringir o acesso apenas ao que é estritamente necessário e, se bem que nenhuma seja impossível de contornar, é o que basta para resolver o problema do funcionário que vai bisbilhotar a situação fiscal do Ministro, do vizinho, do ex-namorado ou do tal secretário só porque tem tudo à mão. Mas este episódio levanta uma questão mais fundamental do que a incompetência informática das finanças. É a questão daquilo que devíamos mesmo manter privado e o que devíamos abrir ao escrutínio público. Nisto parece-me que andamos com os critérios trocados. 

Se queremos respeitar a privacidade, o melhor é não registar a informação privada. Por exemplo, sempre que andamos com o telemóvel ligado, a operadora vai registando as antenas por onde passamos. Além de dar um incentivo errado à polícia – se apreender criminosos é mais fácil do que prevenir o crime temos mais cada vez mais agentes a olhar para o ecrã do computador e cada vez menos a patrulhar as ruas – não se justifica que registem as antenas por onde já passámos. Deviam manter somente a informação actualizada das antenas às quais o telemóvel está ligado no momento. A retenção dessa informação devia ser proibida. 

Se a informação tiver de ser registada e guardada, então a segunda melhor opção é apagá-la assim que for possível. Por exemplo, no Metro o bilhete pode ter de ser validado à entrada e à saída, pelo que é preciso guardar um registo até ao final da viagem. Mas assim que a viagem termina o registo pode – e deve – ser apagado. Não há razão para acumularem perpetuamente o registo de quem anda onde, especialmente quando muitos usam passes com identificação. Que a lei permita, encoraje e, em alguns casos, até obrigue o registo de informação que devia ser privada é muito mais grave do que qualquer violação do sigilo fiscal. 

E se a informação tem de ser guardada por períodos prolongados, a única forma de preservar alguma privacidade é restringir o acesso apenas a pessoas de confiança. É o que fazemos com o que partilhamos com um médico ou um advogado, com quem estabelecemos uma relação pessoal. A situação fiscal não encaixa em qualquer destas categorias. Como tem de ser guardada durante anos e tem de estar acessível a gente que não conhecemos de lado nenhum, o sigilo fiscal permite apenas uma frágil ilusão de privacidade, facilmente quebrada por episódios como este. Além disso, a situação fiscal nem sequer é informação de natureza privada. O pagamento de impostos é um dever público; a remuneração depende de mecanismos públicos de regulação de contratos e até o dinheiro em si depende da colaboração de todos para funcionar como reserva de valor e meio de troca. 

Compreendo que manter secreto o salário que se recebe ou os impostos que se paga dê algum conforto psicológico mas, em rigor, estas são interacções públicas, e até de interesse público, que não merecem medidas especiais que as mantenham no sigilo. Além disso, há claras vantagens em tornar pública esta informação, entre as quais reduzir a fuga ao fisco; revelar conflitos de interesse, especialmente de quem ocupa cargos públicos; acabar com a assimetria do que é secreto para uns mas facilmente acessível a muitos outros; ou até ajudar a combater a discriminação salarial e outra desigualdades injustas. Em vez de nos preocuparmos em manter os impostos secretos devíamos estar muito mais preocupados com aquilo que é privado, que pode ser mantido privado e que deve ser mantido privado. Como o sítio por onde andamos, o que consultamos na Internet ou a quem telefonamos.


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