sexta-feira, abril 10, 2015

A estupidez como vocação

Surgiu há alguns anos uma nova figura nos jornais que é a do cronista desenvolto e com a presunção de ser inconveniente, mas que em vez de suscitar polémica consegue ganhar a ampla reputação pública – sem que ninguém assome em sua defesa – de estúpido e cretino. Esta categoria – e é dela que aqui falarei e não de qualquer das suas manifestações específicas – é um achado, um verdadeiro ovo de colombo: avançando de rosto descoberto ou mascarada de ousadia intelectual, a estupidez atrai, exerce um fascínio a que é difícil resistir. Por isso, tem uma vasto público garantido, faz subir o rating das audiências. Além disso, deixa-nos completamente desarmados porque é difícil e sempre pretensioso denunciá-la, como nos ensinou Musil, numa conferência que pronunciou em Viena, em 1937, sobre essa magna e universal questão que se tornou um tópico da modernidade, desde o Bouvard et Pécuchet, de Flaubert. A dificuldade em nomeá-la reside na armadilha inevitável que nos lança: não podemos falar dela e analisá-la sem uma presunção de inteligência. E a presunção de inteligência é, como sabemos, uma prova de estupidez inelutável. Ainda assim, conscientes de que ainda só vamos no primeiro parágrafo e já caímos na armadilha fatal, avancemos. Mas não sem antes formular uma outra fatal contradição a que este texto sucumbe, mesmo sem nomear ninguém e procurar deter-se numa categoria: a contestação e a risota de que é alvo o cronista estúpido e cretino são a garantia do seu sucesso e asseguram-lhe longa sobrevivência. Ele assumiu a missão de restaurar com grande aparato a função-autor, até ao ponto de lhe dar a feição demagógica de um estilo, já que a exibição de um estilo é sempre o triunfo de traços demagógicos e de um sujeito insolente, vazio e muito vaidoso. Como é sabido, a estupidez tem uma relação estreita com a vaidade. E o idiota, como evidencia claramente a etimologia do termo, polariza-se de maneira obsessiva sobre o seu Eu e confere um privilégio desmesurado ao seu ponto de vista. Estes “autores” não dizem nada sem que se intrometa o Eu, indiferentes à regra que diz: quanto mais o sujeito da enunciação atribui a si próprio uma enorme importância, mais os seus enunciados são vazios. Muitas vezes pretendem ter a coragem do desafio intelectual, mas o que são de facto é alarves, sem filtro e sem distância crítica. Chegam a reivindicar a condição de resistentes, de nadarem contra a maré, mas tudo neles é adesão mimética e acrítica a uma ideologia espontânea, colagem à estupidez ambiental, incapacidade de saírem de si mesmos. A linguagem da idiotia sustenta-se na ilusão de que equivale a um pensamento autónomo e suficiente. E serve o empreendimento domarketing intelectual. Quando acha conveniente defender-se, o idiota entra no jogo da martirologia. Esse é um dos papéis que ele, clown de serviço, gosta de representar. Nessa função, ele repete com frequência uma tirada que é o exemplo mais estúpido de contradição performativa : “Vou ser politicamente incorrecto”. E o que se segue é geralmente a mais correcta alarvidade. Traduzida numa categoria estética, a estupidez destes cronistas é um grandioso empreendimento do Kitsch, triunfo da imanência que nos dispensa a experiência da distância e suprime todo o obstáculo à adequação imanentista. Esta forma de estupidez, que só quem se subtraiu a este mundo não reconhece facilmente, é a manifestação estética e moral de uma presença que nos é familiar e assume mesmo a missão de estabelecer com os leitores uma relação de familiaridade, à maneira de uma conversa de tagarelas. 

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