segunda-feira, abril 06, 2015

A minha cara metade

Há uma pandemia mundial em curso de narcisismo. Narcisismo não é vaidade. Um narcísico pode até ser discreto, calado e vestido de cinzento. Mas é uma pandemia insuportável. É o tipo que chega a uma reunião com mais 30 e pede para a próxima reunião ser mudada porque “ele tem uma consulta médica” – o que era o mundo sem ele!; é a mãe que diz com orgulho “o meu filho não faz nada sem mim” – um anormal portanto!; é o filho que quando a mãe lhe coloca a comida na mesa diz com esgar “não gosto nada disto” – tempos houve, os quais saúdo conservadoramente, que o tipo dizia “obrigada por teres feito o jantar querida mãe (mesmo que não gostasse)”; é o tipo que entra num sindicato e na primeira discordância, sem ter mexido uma palha, sai, e é o sindicalista que acha que é dono das decisões da organização; é o que entra numa associação e “esquece-se” mensalmente e sempre de pagar a quota – o financiamento colectivo que se lixe!; é o que estaciona em cima do passeio, o que atravessa um bairro a 50 km hora porque ele está atrasado para o trabalho e  a criança que está a jogar à bola está a “atrapalhá-lo” – não é o seu filho porque ia ele preocupar-se!?; é a professora que despacha o trabalho dela para os alunos e os pais destes fazerem em casa; e são os pais que entram numa escola a gritar com a professora, sem sequer lhe perguntar  o que se passou. Todos estes comportamentos têm em comum o desenvolvimento incipiente do superego, do não saber estar na pele do outro, do não querer estar na pele do outro – o outro, diria um humorista, “nunca ouvi falar desse”. É um comportamento para-sociopata, de gente que não consegue sair de si e acha que os outros são instrumentais ao seu bem-estar.  É uma esmagadora ausência de resistência à frustração, um imediatismo de prazer quase animal (não socializado, portanto).
Não sei, com sinceridade, a origem destes comportamentos. Não é a era da selfie porque isto é sério e não é vaidade ou gala – não falamos do vestido bonito da menina mas de um comportamento social profundo que ignora a existência colectiva. Família protectora, Estado social dominante que desmobilizou politicamente as pessoas, que as fez precisar menos umas das outras, filhos únicos em sociedades urbanizadas. Não sei… Mas sei que é impressionante.
Todos os dias recebo cartas com assuntos importantes. Muitos dos quais agradeço que o façam, reencaminho para onde sei, incluindo para resolução de conflitos laborais ou questões científicas, de trabalho. Mas todos os dias me escrevem também pessoas que me dizem o seguinte: «concordo com tudo o que escreveu até hoje (tudo…desconfio logo…) menos com o que escreveu hoje. Estou muito desiludido». Muito? É quase uma carta de fim de relação amorosa. Está tudo acabado entre nós! Não ocorreu a estas pessoas perguntar se eu, que passo metade do meu tempo em regime de voluntariado público, preciso de ajuda…Mas ocorreu-lhes escrever-me uma longa carta em que me explicam porque eu deixei de ser a sua cara-metade. O fim do namoro, da inaceitável traição, não é uma exclusividade minha. De vez em quando vejo na Internet uma pessoa pública querida que comentou que não gosta de gatos e milhares de pessoas escrevem-lhe, não raras vezes com ofensas, dizendo que estão “profundamente decepcionadas”. Outro escritor adorado que escreve uma piada de humor negro e é bombardeado com um “nunca mais compro os seus livros”. Imagino que namorar estes seres é pior do entrar para as SS. Começa-se o dia a marchar de manhã ao som das ideias inquebrantáveis destes bebés grandes. Afinal, ou estamos com eles ou contra eles!
Fica aqui a minha opinião de leiga. Não existe a cara-metade de ninguém. Nem no amor, nem política, nem na ciência, na culinária, no estado do tempo. Eu, por exemplo, amo algumas pessoas que votam no PS e acham que isto com o Costa vai lá…Vou continuar a amá-los e até lhes vou dar um abraço apertado quando o Costa for para lá fazer o mesmo que o Passos Coelho e eles ficarem deprimidos. Vou convidá-los para jantar e vamos rir-nos, como sempre nos rimos quando estamos juntos.
Piadas sérias à parte, o tema é grave. Os outros não são o preenchimento do nosso vazio, as relações são relações, de discordância, de debate, de diferença. O mundo está difícil. É aliás um barco a caminho do precipício, onde há uns tipos no convés e a maioria no porão. Mas desengane-se quem acha que vai ficar à tona – olhem para 1939-1945! Todos nos vamos afundar se não reagirmos organizadamente. Mas para reagir organizadamente temos que ser livres, e só há liberdade na diferença, na discordância, temos que re-aprender a viver com os outros na sua complexidade, na sua surpresa, e sobretudo com aquilo que é distinto de nós. Não precisamos de caras metades. Precisamos de gente inteira.