sexta-feira, abril 10, 2015

Celeuma do comer

Antes de mais, quero dizer que este artigo tem muito pouco açúcar e o que tem é natural, pelo que podem consumir sem restrições.
Vem isto a propósito de uma reportagem da SIC sobre alimentação que está a virar ao contrário os hábitos de muitas famílias e ainda bem. Grande trabalho o da SIC. Isto sim, é serviço público e daquele bem saudável, sem gorduras, pelo menos do Estado.
A alimentação é porventura das coisas mais importantes para nos mantermos de pé e estamos longe de estar a fazer as coisas bem feitas. Sobre a importância da alimentação, recordo-me de ter defendido em tempos, aqui neste blogue, que a gastronomia devia ser uma disciplina na escola. É que as crianças aprendem em profundidade, por exemplo, a composição e a morfologia de rochas e calhaus mas depois saem do secundário sem saber o que é uma alface. E se lhes perguntarem o que é um nabo, dirão que é o órgão genital masculino.
É por isso – ou era por isso fundamental a denúncia da porcaria que se anda a comer e que quanto mais bonita é a embalagem, mais pobre é o conteúdo. Hoje uma maçã é tão linda que uma pessoa não sabe se deve comê-la ou expô-la numa estante da sala. E são tão grandes que é preciso confirmar se são maçãs ou melancias. Foi a natureza? Então não foi a natureza. Claro que foi a natureza, mas foi a natureza do Homem, que vai sempre à procura do maior e mais bonito, o que levou o produtor a comprar esteróides anabolizantes para árvores.
Lá chegará o dia em que a fruta já vem com o nosso nome, estilo latas de Coca-Cola. Não deve ser difícil arranjar-se mais uma cena para borrifar as árvores, que desta feita faça os nomes próprios aparecerem na casca da fruta.
Temos depois os pacotes e os pacotinhos, disto e daquilo. É tudo tão lindo. Ai aquelas imagens. Dá vontade de comer o próprio pacote. Para quê abrir e estragar? Devíamos emborcar logo tudo. Em alguns casos, creio que o plástico da embalagem não será pior do que lá vai dentro.
Mas as pessoas, graças a este belíssimo estilo de vida, já compram tudo feito e embalado. É mais prático, pois é. Mas ainda mais prático era jogarem-se logo de um desfiladeiro. É que às vezes parece ser essa a intenção. Aqui há uns tempos, estava na fila do supermercado e olhando para as compras do cavalheiro que estava à minha frente, fiquei na dúvida sobre se ele tencionava alimentar-se ou liquidar-se.
Talvez tenham comprado antes o antídoto, que devem ser aquelas coisas para baixar o colestrol ou, crème de la crème, a margarina boa para o coração. Quando chegamos ao ponto de vender pacotes de margarina com uma indicação no rótulo de que aquilo é bom para o coração, sabemos que já fomos.
Também no supermercado, na zona das águas, ouvi certo dia um cavalheiro dizer para a sua madame “isso é uma porcaria”, referindo-se às águas de Monchique, que a madame sugerira adquirir. Porcaria, uma das melhores águas do mundo. “Porcaria”, ousou dizer o estafermo, que sabe lá o que é bom. Ainda tentei sussurrar à madame “deixa-o, diz que vais à casa de banho e pira-te”, mas pareceu-me que ela gostava dele o suficiente para o deixar continuar a fazer as compras.
Enfim, há muita ignorância. Uns mais do que outros, mas em geral somos muito ignorantes em matérias que deviam ser do nosso maior interesse. Como se não bastasse, multiplicam-se hoje estudos que dizem que isto faz muito bem e aquilo faz muito mal. São estudos que se difundem pelas redes sociais muito bem, pois anda tudo doido à procura do elixir. A grande moda agora é estudos sobre o café. O café previne tudo. Também lá chegará o dia em que sai um estudo que conclui que faz maravilhosamente bem beber 40 cafés só da parte da manhã e nessa mesma tarde somos obrigados a alvejar com dardos tranquilizantes milhares de histéricos aos saltos pela rua.
Sobre os estudos, pedi várias vezes um que dissesse que o sal fazia bem. Aí está ele. Já saiu. Não se pode cortar muito no sal porque é antibacteriano. Portanto, andava tudo a cortar no sal, sai o estudo a dizer que ficamos à mercê das bactérias, começa logo tudo a pôr sal. É como os açúcares, está tudo a cortar mas só até sair um estudo a dizer que os açúcares transformados também previnem o Alzheimer e então toca tudo de chamar outra vez as crianças para lhes dar donuts outra vez – “E agora, vai uma bola de Berlim, vai? Ou ‘ficastes’ bem co donut?”
Andamos um bocadinho assim, essa é que é a verdade. Atrás dos estudos e das notícias. Num dia é para cortar, no outro é para tomar quatro logo de seguida. Talvez bastasse comer-se bem, variadamente, com confiança na origem e quanto menos embalagens melhor. Parece-me uma boa dieta. Não será nenhum elixir e até se pode vir a ter Alzheimer, mas pelo menos não se dá entretanto em maluco.