quinta-feira, abril 09, 2015

O atraso da noiva

Estava aqui a pensar num texto sobre Justiça quando a construção de uma metáfora me levou para um tema muito mais interessante, que é aquela patética tradição do atraso da noiva. Concretamente em que momento da história da Humanidade é que se pensou que era simpático a mulher dar início à sua vida de casada maçando o esposo, a família do esposo, a sua própria família e duzentos convidados?
Sim, as pessoas compreendem. É a noiva, claro. É o dia dela. Pois, está bem. A verdade é que toda aquela gente acaba por desenvolver um certo rancor em relação à noiva. Mesmo os mais pequenos, que brincam no jardim enquanto esperam, parecem felizes mas até preferiam ter ido para a escola, mesmo que houvesse matemática.
A revolta é transversal e até o padre – que devia ser santo – às tantas começa a passar-se. Isto quando há padre, porque às vezes há conservadores, mas estes são os únicos que ainda conseguem atrasar-se mais do que a noiva. Mesmo assim são rápidos, pois uma cerimónia presidida pelo Estado podia bem arrastar-se durante uma década e lá chegados não se casava ninguém porque o b.i. do noivo havia entretanto caducado.
Certo é que quando o casamento é civil, a noiva em princípio também espera. Neste caso, portanto, a família e os amigos esperam duas vezes. Com sorte e para ajudar a passar o tempo, as tias mais velhas, na primeira fila, vítimas de enormes cataratas, confundem a sobrinha com a Conservadora e sussurram “boa sorte, filha, ele é muito janota” à passagem da funcionária do Estado.
Bom, mas é claro que depois da cerimónia todos sorriem para a noiva – embora alguns já arremessem o arroz, outra tradição belíssima, com alguma força e direcção – mas isso não significa que a perdoem, significa apenas que são os pais dela que estão a pagar o banquete que se segue e que pode eventualmente compensar a espera.
O próprio noivo parece feliz e na verdade está, mas não porque se casa, apenas porque a sua senhora já acabou de se arranjar e vão finalmente comer. É mais ou menos aquela sensação que terá mais tarde quando, depois de uma hora no carro à espera, pressentir uma mão a agarrar no puxador da porta do passageiro, depois o som do trinco da mesma a abrir, em seguida uma deslocação de ar que corresponde à entrada de uma pessoa no automóvel e finalmente uma voz: «Pronto, já estou, podemos ir.»
É claro que depois deste pedaço no automóvel à espera, a alegria não é a mesma com que se sai da Igreja ou da Conservatória ou do hotel ou do jardim ou da casa de família ou da área de serviço ou da copa de uma árvore, o que for. Embora o alívio seja semelhante, porque tal como no dia em que se casaram, ela lá acabou por aparecer, a verdade é que desta vez só se vai ali jantar, o que não se compara a um enorme banquete, seguido de uma noite de sexo já absolutamente legítimo e consentido por todas as entidades – a Igreja, o Estado e as tias – e que antecede uma enorme viagem pela Ásia, pelas Américas ou pelo Pacífico. Nestas condições, o rapaz até podia estar 48 horas em pé à espera da rapariga que continuaria a sair dali sorridente.
Regressando à questão central, a espera não deixou de gerar o estigma nos convidados, não obstante a alegria reinante. E é muito difícil não olhar para a noiva como se olha para aqueles automobilistas que formam filas de 10 quilómetros por desastres tão grandes que nem um risco têm nos seus imaculados pára-choques.
Não, o atraso da noiva não se justifica e abre uma brecha numa comunidade. É uma tradição que deve, por isso, ser abandonada, como já vai acontecendo em alguns casos. Não se deixem enganar pelos sorrisos de familiares e amigos, como se eles estivessem felizes por tudo, até por terem estado horas a segurar o xixi. A verdade é que só ninguém se foi embora porque o banquete é no fim. Experimentem casar-se depois do copo de água e a noiva fazer a brincadeira de deixar as pessoas horas à espera. Casam-se só os dois, sem uma única testemunha.