Numa sociedade ideal, cujas leis fossem a delicadeza, a cortesia
e a afabilidade, num mundo sem constrangimentos nem fricções que fosse a
combinação de todas as possibilidades compatíveis, de tal modo que o resultado
fosse a bondade máxima, nesse mundo descrito por Leibniz, na sua Monadologia,
como o melhor dos mundos possíveis, Daniel Oliveira reuniria as suas crónicas
num volume intitulado A Década dos Psicopatas e teria Marcelo
Rebelo de Sousa a fazer a apresentação do livro.
Nos convites e nos comunicados à imprensa haveria de
ler-se: “Deus calcula e o mundo faz-se”. Mas essa luz fina que emana do sistema
leibniziano, onde tudo concorre para uma ordem hierarquizada e harmoniosa, não
penetra onde há política, nem sequer ilumina os doces costumes da democracia.
Ainda assim, sem ser preciso supor a existência desse mundo
— onde tudo se faz e se desfaz por correspondências, harmonias e concordâncias
— vamos ter na mesma Marcelo Rebelo de Sousa a apresentar os Psicopatasde
Daniel Oliveira. Sob tais condições, o acontecimento não é propriamente uma
mónada, um mundo fechado sem portas nem janelas, mas uma escancarada fábula
política do nosso tempo.
Ou melhor, uma parábola, como é — por exemplo e para
regozijo de quem gosta de fábulas para metafísicos — O Silêncio das
Sereias, de Kafka. Não é que a convocatória feita a Marcelo Rebelo de
Sousa, para o lançamento do livro, seja obrigatoriamente um sinal de partilha,
com o autor, de opiniões e escolhas políticas. Devemos, aliás, presumir o
contrário.
Mas há, logo à partida, um dado com base no qual se institui
um consenso fundamental: ambos aceitam entrar no jogo de encenações e papéis
completamente estereotipados que empesta todo o debate político e desencoraja a
simples ideia de entrar nele. A questão é esta: Marcelo Rebelo de Sousa
representa, ao mais alto nível, um discurso que quer passar por análise ou
comentário políticos, mas de onde a política foi evacuada.
Ele assimilou completamente a política quer à luta pelo
poder, quer ao exercício e ao objecto desse poder. Para ele, toda a política é
uma questão de tácticas e estratégias, de fintas e simulações. E ganha o que
for mais cretino. É desta matéria que são feitas as suas prelecções, enquanto
animador do crochet televisivo.
E, nesse posto, ele é “ o professor”, isto é, aquele que
ocupa o lugar da verdade e detém o saber do expert. Esta ideia de
uma inteligência que sabe da coisa política e se dirige às pessoas que não
sabem, e que por isso lhe fazem perguntas para obter a resposta oracular, é uma
negação da política.
Na melhor das hipóteses, aquilo de que Marcelo Rebelo de
Sousa fala pertence à ordem da polícia (ele próprio transformou-se num cartoon de
polícia sinaleiro) e não à ordem da política, para nos referirmos a uma
oposição já clássica. Esta noção de polícia deve ser entendida não no sentido
da repressão, mas da lógica puramente gestionária que ordena a sociedade por
funções, lugares e títulos a ocupar.
Ora, um cartoon pode chegar até a
Presidente da República (não seria, aliás, o primeiro), mas não serve para
iniciar qualquer conversa ou diálogo que tenha como tarefa repolitizar o espaço
político. Em relação ao que Marcelo Rebelo de Sousa diz e opina não importa
discordar, estar mais à direita ou mais à esquerda, ou convidá-lo para o
espectáculo pluralista do conflito das opiniões. É outra coisa que se exige, se
a tarefa é também a de impedir a cretinização comunicativa e opinativa. Essa
coisa chama-se “diferendo” e significa um desentendimento de base.