Há um denominador comum naqueles homicídios de rua cada vez mais frequentes ou pelo menos em voga. É a caçadeira.
Num dia, um senhorio matou o seu inquilino com tiros de caçadeira. Ontem, foi a vez – mais uma vez – de um homem, perdão, de uma merda de um homem assassinar a mulher que dele se queria divorciar. O que é que estas histórias tinham em comum, para além dos filhos da puta que lhe deram azo? A caçadeira.
Quantas caçadeiras, então, é que existem por aí? É que talvez tenhamos um problema com caçadeiras. Quem diz caçadeiras, diz armas, mas as caçadeiras parecem mais frequentes.
No caso do senhorio que matou o inquilino, dizem os vizinhos que ele já não era flor que se cheirasse, mas como se não bastasse ainda andava com problemas, nomeadamente com as Finanças, que até já lhe tinha penhorado vários bens. É pena as Finanças não lhe terem penhorado a caçadeira.
Mas isto até me leva a outra questão. As Finanças vão penhorar bens de pessoas com caçadeiras em casa? Jamais me passaria pela cabeça ficar preocupado com pessoas das Finanças, mas confesso que agora estou um bocadinho. É que eu por acaso recusava-me a visitar um contribuinte antes da polícia ir ver se havia armas e, em existindo, eram logo os primeiros bens a ser penhorados.
Não me cabe a mim, porém, cuidar dos funcionários públicos. Fica só um alerta para este pequeno pormenor de andarem a penhorar pessoas avariadas do sistema na posse de caçadeiras. É que com um bocadinho mais de segurança a envolver estas situações, acaba por se proteger os funcionários públicos mas também a sociedade.
Neste caso do senhorio, é evidente que o Estado – porque acaba por ser o Estado – limpou-lhe os bens para pagar dívidas e deixou uma pessoa desequilibrada na posse de uma arma. A vítima? Era um jovem que aparentemente foi buscar correspondência que lhe pertencia.
Já escrevi sobre este assunto, mas volto à carga. O Estado perde autoridade de dia para dia. É evidente que há homicídios em todo o mundo. Talvez na Coreia do Norte o homicida se liquide antes de cometer o homicídio, com medo do que lhe possa acontecer. Mas, regra geral, há homicídios em todo o mundo. Onde há animais, eles matam-se.
Mas em Portugal a situação parece um bocado descontrolada, pelo menos tendo em conta registos anteriores. Por outro lado, assiste-se a crimes que podiam ser evitados, que são sempre mais dramáticos. É difícil um país ou uma cidade controlar um assassino em série, por exemplo. Mas uma besta, com sérios desequilíbrios, na posse de uma caçadeira, isto já é mais trabalhável. Porque é um crime estúpido. Aliás, estúpidos são todos. Este é um crime especialmente estúpido.
Já nem se pede ao Estado para não pensar apenas em cobrar, pede-se apenas que, enquanto cobra, vá fazendo outras coisas que também lhe competem por lei. Embora, verdade seja dita, também tem de se pedir para não pensar apenas em cobrar, nomeadamente taxas de justiça, porque isso também está a provocar, não tenho dúvidas, um aumento da criminalidade.
Por exemplo, este jovem assassinado pelo seu senhorio já devia ter sido ameaçado ou ofendido. Se ele quisesse queixar-se à polícia e levar o monstro à Justiça, tinha de pagar 300 euros ou dizer à Segurança Social que não tinha como pagar, para ter patrocínio judiciário. Não é um processo fácil para quem tem uma caçadeira apontada, mesmo que seja em sentido figurado. Até porque todo o Estado parece afastar as pessoas da Justiça. Como quem diz “eu não posso tratar disso, resolvam vocês, a sério”, num estilo “não perguntes o que é que a Justiça do teu país pode fazer por ti mas o que é que tu podes fazer pela Justiça do teu país”.
É um bocado este o ambiente. De faroeste. Ainda ontem assisti a uma cena no trânsito, com uma cavalgadura a perseguir uma mulher sozinha. A cavalgadura fazia tudo, travava, ia para cima dela, gesticulava. Por duas vezes, a mulher passou sinais vermelhos. Numa das situações porque o homem saiu do carro, noutra porque já contava que o fizesse. Apercebi-me da situação quando a vi a arrancar no primeiro sinal e consegui filmar uma boa parte. Fui atrás dela, feito herói, porque se ele fizesse mais alguma coisa, ficaria espetado na minha grelha, tal qual um mosquito. Pouco depois – a cena toda durou entre 5 e 10 minutos e entre 2 e 3 quilómetros – ele virou para um lado, mas ainda saiu do carro porque o nosso sinal estava fechado. A mulher, claro, não parou. Mais à frente voltei a apanhá-la e já estava tudo em paz. A cavalgadura já não parecia andar por ali.
Em muitos países, bastava o vídeo que fiz para a polícia ir visitar o imbecil, revistá-lo e andar em cima dele. Este é do tipo que de certeza bate na mulher e eventualmente a mata. Basta ver que por causa de qualquer coisa no trânsito, aterrorizou uma mulher sozinha. Creio que não é preciso dizer mais sobre o calibre do menino.
Acontece que, em Portugal, se levasse o vídeo à polícia, seria logo objecto de uma longa e exaustiva explicação sobre a impossibilidade de se fazer alguma coisa “porquanto a captura de imagens não consentida bla, bla, bla” e ainda me habilitava a uma multa por ter pegado no telefone. Porque, lá está, o Estado é acima de tudo um grande cobrador. Já é assim que o vemos. Aquilo que devia ser um dever nosso – denunciar um homem objectivamente violento e perigoso – não passaria de uma chatice para um conjunto de pessoas e ainda por cima o Estado não podia sacar dali mais do que uma coima por uso de telemóvel. Pronto, talvez a besta não tivesse inspecção nem seguro e tivesse uma “óptica fundida”.
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