domingo, junho 21, 2015

O FADO DO GRANDE E HÓRRIVEL CRIME

“Receber um prémio da TV é o mesmo que ser beijado por alguém com mau hálito”.
Mason Williams

Em Lourenço Marques, onde vivi até 1976, fui feliz por um vasto leque de razões. Uma das razões, que, por descuido, nunca mencionei, foi o facto de não haver, ali, televisão. Não ver televisão é um dos mais irrevelados segredos relativos à arte de ser feliz. Por outro lado, não ver televisão contribui, de modo incrível, para o aumento do nível da nossa educação e cultura. Groucho Marx, por acaso, até nem estava de acordo comigo, neste ponto, quando escrevia: “Acho a televisão tremendamente educativa. De cada vez que alguém liga a televisão, vou para outra sala e leio um livro.” Não está mal visto, mas obriga-nos a viver em casas com maior número de quartos, o que nos vai à algibeira.
Quando, nos intervalos do trabalho frenético de escrever as minhas memórias, ligo o televisor, para me “relaxar”, tenho a impressão de me afundar num pântano. Em geral, depois de uma manhã de bom e honesto trabalho, à la recherche du temps perdu, ligo para um daqueles programas televisivos, entre o meio dia e as 13.00, em que a Júlia Pinheiro ou o Goucha ou, na RTP1, um casalinho cujos nomes “não guardo na memória” nos dão, aos baldes, crimes góticos, tremendos, com pancada, tortura e sexo maléfico, doutamente comentados por juristas, jornalistas e psicólogos e/ou psiquiatras, os quais nos não poupam os pormenores mais vivos e deprimentes (e coloridos!) daquele pantanal, que tão bem “se vende”. 

O que é curioso é serem os três canais, em simultâneo, a darem-nos aquela papa baudelaireana: se um nos propicia um horrendo estripador (que usa faca  - mal afiada – e vidro rombo, para rasgar, “com dor”, a carne martirizada), o outro oferece-nos um marido que baleou ferozmente a mulher e o terceiro, para não ficar atrás destes, delicia-nos com um negro boçal e infame que praticou um nefando crime de violação sexual.

Isto, todos os dias, sem falhar um. Pelo meio, falam, de raspão, no sexo dos anjos e oferecem, como prenda, prémios vários, mas o tema de fundo é o fado do grande e hòrrível crime. É este que garante audiências lascivas e necessitadas de violência e sexo, como se necessita de droga. E gosto de ver o ar beato e repleto da Júlia, do Goucha, do tal casalinho RTP e do público de senhores e senhoras respeitáveis, que se babam de gozo e virtude, ao ouvirem pormenores “científicos” e ardentes sobre a carne retalhada das vítimas ou o resto de sémen, de que se encontraram restos desleixados, nos lábios macerados da vulva.

É o que se chama educação “a quente”. E aquilo é diário! E aquilo dura há milénios! É aquilo que garante audiências e, portanto, publicidade. Nem vale a pena procurar outro tema: aquele é que “dá”. George Faludy, o lendário escritor húngaro, de extracção judia, mandado pelo terror comunista para os campos de concentração, de que nos deixou um celebrado testemunho – Os Meus dias Felizes no Inferno – gostava de falar da televisão, nestes termos: “A maior parte das estações de televisão americanas reproduzem, ao longo da noite, aquilo que um romano podia ter visto no Coliseu, durante o reinado de Nero.” É também isso que nos proporcionam, com um bonito sorriso de “tudo bem”, as manhãs queridas da Júlia, do Goucha e do casalinho RTP.
Mas o gótico, a respiração do ar molesto dos “moors” do monte dos ventos uivantes não é a única mercadoria fornecida pelas televisões. Vendem também muita patetice simpática e aparentemente inócua, para destinatários não particularmente dotados. O iconoclasta (e, mesmo, desbocado) maestro inglês, Sir Thomas Beecham, não tinha papas na língua: “Três quartos da televisão é para atrasados mentais”, dizia ele, para quem o queria ouvir. Por favor, não me peçam para dar exemplos de programas que satisfazem este caderno de encargos. Chatices já eu tenho que cheguem…
A televisão, por outro lado, comete outro delito: põe-nos, frequentemente, em muito má companhia, isto é, arruína-nos a reputação. O conhecido entrevistador, David Frost, que ficou, para muitos, conhecido como o homem que conseguiu entrevistar Richard Nixon, após a sensacional “queda” deste presidente, sendo um homem da televisão, não hesitou em falar, com candura, do “milieu” que tão bem conhecia: “A televisão”, disse ele, “é uma invenção que nos permite sermos entretidos, na nossa sala de estar, por pessoas que, normalmente, não receberíamos em nossa casa.” Realmente, medite o meu caro leitor em várias caras televisivas, cujo convívio não recomendaria nem à sua família nem aos seus amigos…
Pois, apesar disso tudo, a televisão é, para uma boa parte dos habitantes deste Portugal, o padrão de aferimento de mérito mais universalmente aceite. Aparecer ou não aparecer na televisão, eis a questão. De cada vez que apareço no pequeno écran – e apareço pouco e moderadamente – aumenta exponencialmente o número de pessoas que se me rojam aos pés. O viperino Quentin Crisp, autor de memórias ácidas (e tornadas clássicas), dizia, com verdade verificável: “As pessoas atravessarão a rua, com risco para as suas vidas, só para poderem dizer que te viram na televisão.”
Tudo isto é verdade, tudo isto é cómico e tudo isto é triste. Mas o que verdadeiramente mais surpreende e preocupa é que, com todas estas “vantagens”, para ela, a televisão ainda precise, para sobreviver, de se alimentar, diariamente, e de nos alimentar, a nós, com os detalhes sórdidos e escaldantes do último hòrrível crime acabado de perpetrar.   
Eugénio Lisboa


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