Gonçalo Portocarrero de Almada defende que os caracóis não têm direitos. Nisso, estamos de acordo. Mas, quando tenta justificar porquê, lá se vai a nossa breve convergência. Escreve Almada que: «A polémica questão dos direitos dos animais baseia-se num preconceito: o de que eles são como nós [...]. É verdade que algumas pessoas, de tão brutas, parecem meros animais e alguns animais, ditos irracionais, parecem espertos e afectuosos. Mas são aparências que iludem, porque a distância que vai do mais apto dos símios para o mais estúpido dos homens é infinitamente superior à que dista entre o mais evoluído dos primatas e o mais básico ser vivo.»(1) Objectivamente, Almada está enganado. A diferença entre um chimpanzé e um humano é minúscula quando comparada à que separa o símio de uma aranha, por exemplo. Mais ainda, nós e os restantes primatas estamos todos equidistantes das aranhas. Mas o problema principal não são os factos. É o raciocínio acerca dos valores.
Eu não defendo que os animais têm direitos por serem “como nós”. Seria arrogante, e arbitrário, usar-me como bitola para decidir onde há ou não há direitos. Além disso, os direitos não são o fundamento da ética. São mera consequência dos deveres. A ética não começa na pergunta “que direitos tenho?” Começa na pergunta “como devo agir?” Eu defendo que a ética assenta na compreensão de que os meus actos afectam terceiros e de que isso importa para decidir o que faço. Os resto deriva tudo daí, incluindo os direitos de cada um, que não são mais que deveres que outros têm para consigo. Numa ilha deserta ninguém tem direitos.
É por isto que eu acho que um gato tem o direito de não ser queimado vivo. Não é algo inerente ao gato em si. Se um raio causa um incêndio na floresta e o gato morre queimado não há qualquer violação de direitos. Nem se for um gato nem se for eu. Mas qualquer ser consciente dos seus actos, que compreenda o sofrimento do gato e que tenha a noção ética do dever tem o dever de não queimar o gato. O direito do gato é consequência dos deveres éticos de qualquer agente moral que pondere agir sobre o gato. Ou seja, o gato não tem direitos por ser “como nós” mas por nós sermos agentes morais conscientes dos nossos deveres.
É também por isto que o caracol não tem direitos. Sendo desprovido de subjectividade, é-lhe indiferente o que lhe possam fazer e, por isso, as consequências para o caracol não suscitam deveres. Pode haver deveres relacionados com o caracol. Por exemplo, o dever de não extinguir as espécies de caracol pelo efeito que isso terá em gerações futuras de apreciadores de caracóis. Mas a esse dever corresponde um direito dessas gerações futuras e não propriamente um direito dos caracóis. Sim, é verdade. Por termos deveres para com as gerações futuras, essas pessoas têm direitos mesmo antes de existirem. Será um ponto importante num próximo post mas, neste, deixo o assunto por aqui e passo a outro.
A ideia de que os direitos devem ser concedidos na medida em que o visado é “como nós” é um erro moral que inquina muitas opiniões religiosas. Por exemplo, a igualdade de direitos entre homens e mulheres ou o direito ao casamento homossexual. Católicos como Almada defendem que as mulheres não têm o mesmo direito ao sacerdócio que têm os homens porque as mulheres não são como os homens, ou que duas pessoas do mesmo sexo não têm o direito de se casarem porque não são como uma parelha de pessoas de sexo diferente. Mas esta ética assente na métrica de diferenças e semelhanças é um disparate. A igualdade de direitos não assenta em qualquer igualdade entre as pessoas, até porque não há ninguém que seja “como nós”. Cada um de nós é um indivíduo único e diferente dos demais. A igualdade nesses direitos é consequência de cada um de nós ter certos deveres para com qualquer um dos outros, seja macho, fêmea, alto, baixo, homo, hetero, católico ou ateu.
Proibir o casamento entre pessoas do mesmo sexo restringe a liberdade dessas pessoas sem nenhum benefício que o compense. Proibir as mulheres de celebrar missa ou de aceder aos cargos de chefia numa hierarquia religiosa também lhes limita as opções sem que nada de eticamente fundamentado justifique essa restrição. É certo que há pessoas que ficam muito incomodadas com a possibilidade de, algures, dois homens casarem um com o outro ou uma mulher celebrar uma missa. Mas esse desconforto é claramente o mal menor. Comparando as alternativas, proibir ou não proibir, é fácil perceber que temos um dever ético de deixar essas escolhas a essas pessoas. Não por serem iguais “a nós” mas pelo nosso dever de respeitar as diferenças dos outros.
Este é um dos maiores pecados da (i)moralidade religiosa e uma das razões pelas quais é falsa a pretensão religiosa de ser fundamento para a moral. Cada religião assenta as suas normas numa ideia de “como nós”, arbitrária e artificial, que depois quer impor a todos os outros. Cada religião quer ser pastora de um rebanho de ovelhas que sejam todas umas como as outras. Mas as tretas da lei natural, do que os deuses querem ou deixam de querer e demais idiossincrasias que tenham ficado nos livros só porque algum fanático as lá pôs não são um fundamento razoável para a ética. A ética não tem nada que ver com conformidade ou ser “como nós”. A ética vem da compreensão de que os outros não são eu e de que ninguém é bitola pela qual medir o que faz aos outros. O propósito da ética é ensinar-nos a conviver com as nossas diferenças e não o de nos levar todos pelo mesmo caminho. A ética não é um pastor. É uma professora e, infelizmente para os pastores como Almada, é uma chatice quando as ovelhas aprendem a pensar por si.
1- Voz da Verdade, Os direitos dos caracóis
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