terça-feira, junho 16, 2015

Treta da semana: paroquial

O “desafio do Charlie Charlie” consiste em equilibrar um lápis em cima de outro, em cruz, e depois invocar o espírito do tal Charlie que, se alinhar na brincadeira, fará mexer o lápis de cima. Este alegado desafio tem se tornado popular, compreensivelmente mais popular do que usar só um lápis e esperar que o Charlie escreva qualquer coisa. Apesar do sistema dos lápis cruzados ser menos informativo, como o lápis de cima se mexe ao mais leve sopro dá ideia de resultar melhor do que se fosse preciso que espíritos e demónios existissem mesmo (1). Como escreve Gonçalo Portocarrero de Almada, «Que o demónio existe, não é pacífico. Muitas pessoas o negam, remetendo a sua existência para o imaginário de antigas fábulas ou de inverosímeis mitos religiosos.» No entanto, Almada defende que «demónios [...] existem e actuam, mesmo que neles não se acredite» e adverte que, «Seja ele um Charlie mexicano, ou francês, o melhor é não lhe dar troco»(2). 

Há vários aspectos merecedores de crítica nesta posição defendida por Almada e muitos sacerdotes e fiéis católicos. Estas tretas dos demónios são mesmo fábulas antigas e mitos inverosímeis, pelo que é disparatado defender que tais coisas existem com base apenas em textos escritos por quem vivia no tempo dessas fábulas e mitos. É também ridículo que adultos com formação, numa sociedade moderna, receiem que equilibrar um lápis no outro leve a possessão demoníaca. Mas hoje vou deixar esses aspectos de parte e focar um terceiro que também me faz espécie. A tese dos demónios que a Igreja Católica defende é de um paroquialismo tal que é evidente ter sido inventada para, e por, pessoas que não conheciam mais do mundo do que a aldeia onde viviam e o campo onde pastavam as cabras. 

Reza esta história que um deus omnipotente criou todo este universo e também seres espirituais«dotados de inteligência e vontade [...] criaturas pessoais e imortais» que «Excedem em perfeição todas as criaturas visíveis»(3). São os anjos, os mensageiro desse deus. Mas um anjo decidiu ser mau. É estranho que uma criatura espiritual, criada por um deus perfeito e excedendo em perfeição tudo o que é visível, acabe por dar para o torto como qualquer desgraçado que tenha sido maltratado pelos pais ou nascido com tendências psicopatas. Mas admitamos que sim. Siga a história. Temos então uma criatura espiritual, mais perfeita que tudo o que é visível, mas que é má. O que é que faz então essa criatura, com tal poder e perfeição, para alcançar os seus desígnios maléficos? Segundo Almada, cria em nós tentações e faz com «que uma pessoa, que não sabe latim, se expresse nessa língua, ou que revele dados da consciência de alguém que só o próprio, Deus e, pelos vistos, o demónio conhecem». E é isso. 

Este aspecto das religiões é mais uma boa razão para ser ateu. O universo tem treze mil milhões de anos, milhões de galáxias, cada uma com centenas de milhões de estrelas e, alegadamente, os seres mais poderosos nisto tudo comportam-se como se fossem pastores da idade do bronze com poderes mágicos. O deus que cria galáxias com um pensamento anda terrivelmente preocupado com a possibilidade do Zézinho se masturbar no duche ou da Maria casar com a Isabel. E o príncipe do mal, criatura eterna e perfeita, viu as primeiras estrelas nascerem, a Terra formar-se e os dinossauros extinguirem-se enquanto esperava por esta espécie de mamífero para agora pôr umas freiras a dizer palavrões, a vizinha do quinto a falar Latim ou o Sr. Sousa a ter um caso com a secretária. Isto ultrapassa até os sérios problemas da falta de evidências, das conclusões precipitadas e das más explicações que assolam a generalidade dos relatos religiosos. Isto já é gozar com as pessoas. 

1- Livescience, Charlie Charlie Challenge: Can You Really Summon a Demon?
2- Gonçalo Portocarrero de Almada, Coisas do diabo
3- Vaticano, Catecismo


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