quarta-feira, novembro 23, 2005

A ECONOMIA POLÍTICA ENQUANTO CIÊNCIA SOCIAL

A sociedade responde a um esquema orgânico no qual a cabeça (o político) e o esqueleto (o direito) não podem ser racionais e sólidos se a circulação do sangue social que constitui as riquezas não é coerente. (14) O papel da ciência social será portanto, num primeiro tempo, o pôr em evidência quais são as “leis reais” de permuta que, corrompidas pela propriedade, não se revelam a não ser ocasionalmente ou de maneira latente no sistema capitalista.
A ciência social deve portanto mostrar que colocadas as práticas como leis participa dum procedimento de legitimação do real, da “ideologia dominante”. Convém portanto provar a não possibilidade de demonstrar a “legalidade científica” da economia capitalista, e portanto a sua “impossibilidade” sem o recurso ao Estado enquanto força coerciva e à Igreja enquanto aparelho ideológico. É por esta diligência crítica que podemos esperar pôr em evidência o que são as “leis reais” da economia em função das quais será possível determinar as formas políticas, jurídicas e sociais da sociedade socialista (sociedade de acordo com as leis da razão como da moral, e portanto, sem Estado nem Igreja (15) (16).
Em resposta a esta concepção da Justiça no que respeita a “ponto de transacção entre o subjectivo e o objectivo, o ideal e o real, o indivíduo e o universal”(17), Proudhon desenvolve ao longo da sua obra (18) uma metodologia que qualificará “Ideio-realismo”, aliando o bem e o ser, o real e o valor, o descritivo e o prescritivo. Este método, por sua vez ideal e formal, revela a vontade de Proudhon de afastar-se dos economistas e dos socialistas do seu tempo. Com efeito:
“A economia política inclina-se à confirmação do egoísmo; o socialismo pende para a exaltação da comunidade.
Os economistas, salvo algumas infracções aos seus princípios, dos quais crêem dever acusar os governos, são optimistas quanto aos factos realizados; os socialistas quanto aos factos a realizar.
Os primeiros afirmam que o que deve ser é, os segundos o que deve ser não é. Consequentemente, ao passo que os primeiros se portam como defensores da religião, da autoridade e dos outros princípios contemporâneos e conservadores da propriedade; bem que a sua crítica, saindo da razão, traz frequentes golpes aos seus preconceitos: os segundos rejeitam a autoridade e a fé, e apelam exclusivamente à ciência; “do mesmo modo que uma certa religiosidade, de facto despótica, e um desdém pouco científico dos factos, sejam sempre o carácter mais aparente das suas doutrinas” (19).
Vemo-lo, este método permite a Proudhon opor dialectica-mente Ciência e Moral, Ideia e Matéria..., mas também, duma maneira um pouco caricatural é verdade, os dois movimentos de pensamento aos quais se refere e do qual se quer a síntese, quer dizer, numa óptica proudhoniana, um equilíbrio destes contrários no qual cada antinomia conservando-se criaria uma dinâmica, um estado de tensão ( uma ultrapassagem no sentido hegeliano de aufhebung) (20). É também numa confrontação dos “lados positivos” dos pensamentos socialista e económico que Proudhon conta extrair os fundamentos da ciência social.
A problemática proudhoniana do “Sistema das Contradições Económicas” encontra-se assim colocada: “A crítica moderna demonstrou que num conflito desta espécie, a verdade encontra-se, não na exclusão dos contrários, mas bem somente na conciliação dos dois; é, digo eu, adquirido para a ciência que todo o antagonismo, seja nas ideias, se resume a um facto mais geral, ou a uma fórmula complexa, que põe os oponentes de acordo absorvendo-os, por assim dizer, um no outro. Não poderíamos por conseguinte, homens de senso comum esperando a solução que sem dúvida o futuro realizará, preparar-mo-nos para esta grande transição pela análise dos poderes em luta, assim como das suas qualidades positivas ou negativas? Um semelhante trabalho, feito com exactidão e consciência, mesmo que não nos conduzisse de improviso à solução, teria pelo menos a inestimável vantagem de nos revelar as condições do problema, e por aí pormo-nos em guarda contra toda a utopia.
O que há então de necessário e de verdadeiro na economia política? Onde vai ela? Que pode ela? Que nos quer ela? Eis o que me proponho determinar nesta obra. O que vale o socialismo? A mesma investigação nos ensinará”(21).


NOTAS


14- Proudhon - “Organisation du crédit et de la circulation et solution du problème social sans impôt, sans emprunt”,Paris, Ed. Lacroix, t.I, p.140:
“Vivemos dum facto maior que a propriedade, dum princípio superior à propriedade: vivemos da circulação. Como a circulação do sangue é a função mãe e motriz do corpo humano, assim a circulação dos produtos é a função mãe e motriz do corpo social”.
“Nous vivons d`un fait plus grand que la propriété, d`un principe supérieur à la propriété: nous vivons de la circulation. Comme la circulation du sang est la fonction mère et motrice du corps humain, ainsi la circulation des produits est la fonction mère et motrice du corps social”.
Proudhon- “De la création de l`Ordre dans l`Humanité”, Ed. Rivière, 1927, p.368:
“A sociedade, dizia J.B.Say, é um ser organizado e vivo; A economia política é a fisiologia”.
“La société, disait J.B.Say, est un être organisé et vivant; l`Économie politique en est la physiologie”.
Proudhon - “Système des contradictions économiques”, Paris, Ed.Lacroix, p.100:
“Para o verdadeiro economista, a sociedade é um ser vivo, dotado duma inteligência e duma actividade próprias, regida por leis especiais que só a observação descobre...”
“Pour le véritable économiste, la société est un être vivant, doué d`une intelligence et d`une activité propres, régie par des lois spéciales que l`observation seule découvre...”
J.Bancal “Proudhon, pluralisme et autogestion”, t.I, “les fondements”, Paris, Aubier Montaigne, 1970, p.152:
“Assim, este corpo económico e esse corpo político poderão conjugar-se numa “nação” que, como escreveu Proudhon a Michelet, é também “um ser colectivo, uma pessoa viva” (carta de 11 de Abril de 1851), que representa uma sociedade viva de um território e duma história comuns (carta a X, de 27 de Setembro de 1853).”
“Ainsi ce corps économique et ce corps politique pourront-ils se conjuguer en une “nation” qui, comme l`écrit Proudhon à Michelet, est aussi “un être collectif, une personne vivante” qui représente une société vivant d`un territoire et d`une histoire communs”.
15- Proudhon - “Carnets de P.J.Proudhon”, Paris, Ed.Riviere, t.I, 1960, p.363, (caderno nº4, p.25)
“Simbolismo religioso. - Fazer sobressair esta exegese da teoria de associação e mostrar como a religião periga pela economia social.”
“Symbolisme religieux. - Faire ressortir cette exégèse de la théorie d`association et montrer comment la réligion périt par l`économie sociale.”
16- Proudhon - “De la capacité politique des classes ouvrières”, Paris, Ed.Riviere, 1924, p.215:
“Antes de legislar, de administrar, de edificar palácios, templos, e de fazer a guerra, a sociedade trabalha, labora, navega, troca, explora as terras e os mares. Antes de sagrar os reis e de instituir dinastias, o povo institui a família, consagra os casamentos, edifica as cidades, estabelece a propriedade e a hereditariedade. No princípio, são as funções políticas que ficam confundidas com as económicas: nada, com efeito, do que constitui a especificidade do governo e do Estado, é estranho à economia política. Que mais tarde a razão em geral, libertando o organismo governamental, parece conferir-lhe uma espécie de progenitura, é o efeito duma ilusão histórica que não saberia enganar-nos, agora que estabelecemos a genealogia social da sua integridade, e posto cada coisa no seu lugar. Entre as funções económicas e as funções políticas, existe uma relação análoga, àquela que a fisiologia indica nos animais, entre as funções da vida orgânica e as funções da vida em relação: é por estas que o animal se manifesta exteriormente e completa a sua missão entre as criaturas; mas é pelas outras que existe, e tudo o que faz na sua liberdade não é, verdadeiramente, que um conclusum mais ou menos ponderado destes poderes primordiais.”
“Avant de légiférer, d`administrer, de bâtir des palais, des temples, et de faire la guerre, la société travaille, laboure, navigue, échange, exploite les terres et les mers. Avant de sacrer des rois et d`instituer des dynasties, le peuple fonde la famille, consacre les mariages, bâtit les villes, établit la propriété et l`hérédité. Dans le principe, ce sont les fonctions politiques qui restent confondues avec les économies: rien, en effet, de ce qui constitue la spécialité du gouvernement et l`État, n`est étranger à l´économie publique. Que si plus tard la raison générale, en dégageant l`organisme gouvernemental, semble lui conférer une sorte de primogéniture, c`est l`effet d`une illusion historique qui ne saurait nous tromper, maintenant que nous avons établi la généalogie sociale de son intégrité, et mis chaque chose à sa place. Entre les fonctions économiques et les fonctions politiques, il existe un rapport analogue à celui que la physiologie indique, chez les animaux, entre les fonctions de la vie organique, et les fonctions de la vie en relation: c`est par celles-ci que l`animal se manifeste au dehors et remplit sa mission entre les créatures; mais c`est par les autres qu`il existe, et tout ce quil fait dans sa liberté n`est, à vrai dire, qu`un conclusum plus ou moins raisonné de ces puissances primordiales.”
17- G.Gurvitch - “L`idée du droit social”, Paris, Sirey, 1932, p.371.
18- P.Ansart - “Sociologie de Proudhon”, Paris, P.U.F., 1967, p.3.
19- “L`économie politique incline à la consécration de l`égoisme; le socialisme penche vers l`exaltation de la communauté.
Les économistes, sauf quelques infractions à leurs principes, dont ils croient devoir accuser les gouvernements, sont optimistes quant aux faits accomplis; les socialistes quant aux faits à accomplir.
Les premiers affirment que ce qui doit être est, les seconds que ce qui doit être n‘est pas. - Conséquemment, tandis que les premiers se portent comme défenseurs de la religion, de l‘autorité et des autres principes contemporains et conservateurs de la propriété, bien que leur critique, ne relevant que de la raison, porte de fréquentes atteintes à leurs préjugés: les seconds rejettent l‘autorité et la foi, et en appellent exclusivement à la science; bien qu‘une certaine religiosité, tout à fait illibérale, et un dédain très peu scientifique des faits, soient toujours le caractère le plus apparent de leurs doctrines.”
Proudhon - “Système des contradictions économiques”, Paris, Ed.Riviere, 1923, t.I, pp.68-69.
20- Proudhon - “De la création de l`Ordre dans l`Humanité”, Paris, Ed.Riviere, 1927, p.214:
“A síntese não destói realmente, mas formalmente a tese e a antítese”.
“La syntèse ne détruit pas réellement, mais formellement la thèse et L`antithèse”.
“Théorie de la propriété”, Bruxelles, Editions Lacroix & Verboeckhoven et Cie, 1866, p.52:
“Os termos antinómicos não se resolvem como os pólos opostos duma pilha eléctrica não se destroem. O problema não está em encontrara fusão desles que seria a sua morte, mas o seu equilíbrio sempre instável, variável segundo o próprio desenvolvimento da sociedade”.
“Les termes antinomiques ne se résolvent pas plus que les pôles opposés d`une pile électrique ne se détruisent. Le problème consiste à trouver non leur fusion, qui serait leur mort, mais leur équilibre sans cesse instable, variable selon le dévelop-pement de la société”.
Esta concepção tendendo a substituir a síntese por uma construção positiva das relações antinómicas afirmar-se-à essencialmente nas obras posteriores a 1851 (P.Ansart - “Marx et l`anarchisme”, p.181) e só alcançará a sua forma acabada em 1854 em “De la Justice...” (B.Voyenne - “Le fédéralisme de P.J.Proudhon, t.II, p.64)
21- “L`économie politique incline à la consécration de l`égoisme; le socialisme penche vers l`exaltation de la communauté. La critique moderne a démontré que dans un conflit de cette espèce, la vérité se trouve, non dans l`exclusion des contraires, mais bien seulement dans la conciliation des deux; il est, dis-je, acquis à la science que tout antagonisme, soit dans les idées, se résout en un fait plus général, ou en une formule complexe, qui met les opposants d`accord en les absorbant, pour ainsi dire, l`un l`autre. Ne pourrions-nous donc, hommes de sens commun en attendant la solution que sans doute l`avenir réalisera, nous préparer à cette grande transition par l`analyse des puissances en lutte, ainsi que de leurs qualités positives ou négatives? Un semblable travail, fait avec exactitude et conscience, si même il ne nous conduisait d`emblée à la solution, aurait du moins l`inappréciable avantage de nous révéler les conditions du problème, et par là de nous tenir en garde contre toute utopie.
Qu‘est-ce donc quìl y a de nécessaire et de vrai dans l‘économie politique? Où va-t-elle? Que peut-elle? Que nous veut-elle? Voilà ce que je me propose de déterminer dans cet ouvrage. Que vaut le socialisme? La même investigation nous l‘apprendra” .
Proudhon - “Système des contradictions économiques”, Paris, Ed.Riviere, 1923,t.I, p.72.

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