quarta-feira, novembro 23, 2005

A EXPERIÊNCIA HERMENÊUTICA, A CRÍTICA LITERÁRIA E O SENTIDO DO PROCESSO INTERPRETATIVO

"História do pensamento: História da linguagem?"V.I.Lenine"
Só as palavras contam o resto é tagarelice."
Ionesco

"A literatura é categoricamente realista, por não desejar senão o real; e direi agora, sem me contradizer, uma vez que emprego aqui a palavra na sua acepção familiar, que é também obstinadamente irrealista; julga sensato o desejo do impossível."

Barthes, Roland - Lição, trad. de Ana Mafalda Leite, ed. 70, col. Signo, nº 21, Lisboa, 1979, pág. 23.

"A grande revolução da modernidade começa no momento em que se opera a substituição de uma linguagem da expressão por uma linguagem da criação no momento em que a linguagem deve produzir o mundo mais do que exprimi-lo."

Gaëtan, Picon - L'Écrivain et son Ombre, Gallimard, Paris, 1967, pág. 159. (Tradução e sublinhados meus)

"A linguagem é, ao mesmo tempo, o facto cultural por excelência (distinguindo o homem do animal) e aquele através do qual todas as formas da vida social se estabelecem e perpectuam."

Lévi-Strauss - Anthropologie Structurale, Paris, Plon, 1971, pág. 392. (Tradução e sublinhados meus)

"Exprimir, para o sujeito falante, é tomar consciência; ele não se exprime para os outros, exprime para saber aquilo que ele próprio visa. Se a palavra quer encarnar uma intenção significativa que é apenas um certo vazio; não é somente para no outro a mesma ausência, a mesma privação, mas também para saber aquilo de que há ausência e privação."

Merleau-Ponty, Maurice - Signes, Paris, Gallimard, 1969, pág. 113. (Tradução e sublinhados meus)

"Baudelaire não se contenta com fabricar poemas e com pô-los à venda com objectos de arte; não é somente poeta, é crítico, e grande crítico de si próprio; não lhe basta começar a compreender os outros, procura dar aos outros o modo de utilização da sua poesia, ajudar os outros a obter dela uma leitura correcta e inteiramente fecunda."

Michel Butor - Essais sur les Modernez. Paris, 1964, pág. 9. Gallimard col. Idées (Tradução e sublinhados meus)

"Mas, longe de aparecer como o esquema depurado e perfeito de um mundo de imagens, o universo linguístico da ciência é o produto e o instrumento de um trabalho efectuado sobre o mundo percepcionado. Nem se deve dizer que ele imita cada vez melhor a estrutura das coisas, porque, sem ele, não há, rigorosamente falando, qualquer estrutura. A ideia de estrutura articulada é rigorosamente linguística, o que se não deve entender no sentido nominalista; uma estrutura objectiva é ainda o mundo, mais a linguagem."

Grouger, Gilles-Gaston - Pensée Formelle et Sciences de l'Homme, Paris, 1960, pp. 37-38. (Tradução e sublinhados meus)

"Há, portanto, em toda a escrita um duplo postulado. Há o movimento duma ruptura e de uma realização, há o esboço duma situação revolucionária cuja ambiguidade fundamental é esta: é preciso que a revolução procure no que ela quer destruir a imagem do que pretende possuir. Como toda a arte moderna, a escrita literária suporta ao mesmo tempo a dilaceração da História e o sonho da História: como Necessidade, ela documenta a cisão das classes; como Liberdade, ela é a consciência desta cisão e o próprio esforço para a superar. Sentindo-se a cada passo culpada da sua própria solidão, não deixa de ser uma imaginação ávida de uma felicidade das palavras e precipitar-se em direcção a uma linguagem sonhada, cuja frescura, numa espécie de antecipação ideal, figuraria a perfeição dum novo mundo adâmico em que a linguagem deixaria de ser alienada. A multiplicação das escritas institui uma literatura nova na medida em que esta investe a sua linguagem somente para ser um projecto: a literatura torna-se a utopia da linguagem."

Roland Barthes - Le degré zero de l'écriture, Gonthier, Paris, pp. 75-76. (Tradução e sublinhados meus)

"... enquanto o mundo não é inteiramente mundo, a arte pode sem dúvida aí encontrar a sua reserva. Mas esta reserva é o próprio artista que a condena, se, tendo reconhecido na obra a essência da arte, ele reconhece assim o primado da obra humana em geral. A reserva permite-lhe agir na sua obra. Mas a obra então mais não é do que a acção desta reserva, a acção puramente reservada, inactuante, pura e simples reticência em relação à tarefa histórica que não quer a reserva, mas a participação imediata, activa e regulada, na acção geral. Assim, sendo fiel àlei do dia, o artista expõe-se não apenas a subordinar a obra artística, mas a renunciar a ela, e, por fidelidade, a renunciar a si mesmo."

Maurice Blanchot - L'espace littéraire, Gallimard, col. Idées, 1967, Paris, pág. 285. (Tradução e sublinhados meus)

1 - A leitura e a escrita. Breve introdução à problemática.

A leitura é antes de mais uma decifração de códigos de linguagem que permitem a comunicação; como tal, pressupõe o conhecimento das cifras utilizadas, o contacto possível com os códigos que a condicionam e o entendimento das situações humanas que a linguagem reveste e subverte - porque na materialidade da cifra, na marca cultural do código, se encontram logo os dados iniciais de formulação da descoberta que a utilização individual, personalizando, concretiza estatutariamente em conceptualização humana. Por isso a leitura ultrapassa imediatamente, fazendo-se, uma pressentida mas inexistente fase de apreensão maquinal de significação e converte-se, na sua progressiva efectivação, em escrita potencial, isto é, em actuação dinâmica (mental ou pragmática) que por sua vez criará novas necessidades de leitura. Esta, a importância do sujeito na prática de ler. Mas tal prática é fundamentalmente social. É a vida em comum que nos cria a necessidade de ler: ler os outros, ler a nossa disposição para os outros, ler o texto comum que nós e os outros escrevemos de todos para todos. Se escrever é viver, ou vice-versa, isto é, produzir materialmente um sentido literal da existência em processo original, ler será seguramente a objectivação, em ordem, de tal processo confuso, a sua dilucidação, a iluminação da significação sobre a comunicação. Daí o carácter ambíguo da leitura, simultaneamente convertora dos valores da escrita e demonstradora do seu plural; mais responsável, numa certa medida, (a dos acatamentos e a dos imperativos) que a escrita; menos dada que esta ao romantismo e à difusão mas difundindo até a possível sobriedade da escrita. A leitura tenta, na sua qualidade de operação conciliatória, repetir os erros da escrita para os irradiar ou subdesenvolver gradualmente; até à lisura total do objecto projectada no infinito. Ler como compreender. Ler como saber.(1)
Essa vocação enciclopédica da leitura (pode-se ler tudo, não se pode escrever tudo) resume bem o carácter social, não já da sua produção, mas da sua inserção e, portanto, reprodução -fenómeno perigoso e sedutor.(2) Donde, o papel importante da apreensão dos códigos pelo sujeito ledor. Mas que antes de mais se defronta com a cifra, a letra, o desenho material da barreira que impossibilita o acesso ao não iniciado. Por isso é que é preciso iniciar. Para que a leitura seja uma transposição total dos sinais dados, baseada entretanto na sua visão directa, rigorosa, insubstituível. A consideração dos elementos do processo da comunicação e a mais perfeita fidelidade à sua orgânica é condição essencial de toda a inteligibilidade.
A leitura assenta no signo, como a escrita mas enquanto esta se revela como actividade explosiva que o fende ou "des-significa", para na sua abertura espantada nos ofertar o poder de uma milagrosa ereção, pertence à leitura o exercício do reajustamento das quelnas, da concatenação das folhas pulverizadas que permita o regresso ao estado de repouso e de junção, à posse tranquila dos sentidos, à satisfação concreta da preensão. Entretanto, aconteceu o prazer do texto.(3) A leitura é, assim, uma actividade dinâmica (uma fidelidade) a unidades mínimas de comunicação para se transcender na plural sensação colhida, caminho de revolta ou de traição, de fuga, de criação nova, traçado da desordem que se faz ordenadamente. O que é já escrita. Mas onde uma leitura que nunca se tenha escrito?

2 - A Sociologia da Leitura Literária. A Leitura como Criação e como Construção.

2.1 - Modos de Ler

Os modos como se lê a obra literária (ou como tal considerada) são diversos e difíceis de classificar. Dependem de factores de vária natureza: desde a psicologia individual ao nível cultural, ao saber do literário, à ideologia de classe, ao estado de espírito ocasional do leitor. Lê-se de acordo com os interesses, os objectivos de momento, a experiência da vida, a experiência da língua em que a obra está escrita. A leitura é condicionada, orientada, por aquilo que se espera da obra, do género a que pertence (ou se julga pertencer), do autor (já conhecido por outra ou outras obras) - o chamado "horizonte de expectativa", a que adiante voltarei a referir-me. Talvez se pudessem classificar os modos de ler como se classificam as preferências, isto é, em função de variáveis como o sexo, a idade, o estrato sócio-económico, o meio socioprofissional, o nível de "habilitações literárias". Para além disto, o tempo a que o leitor pertence (tempo histórico-cultural); na mesma data há quem viva anacronicamente em tempos culturais diferentes) conta muito, como é evidente, para a configuração da leitura, as reacções do leitor.
Há leituras empenhadas, tensas, quer de tipo intelectual quer de tipo sentimental e estético, e leituras não-empenhadas, soltas, negligentes, leituras de simples divertimento. Há leitores que lêem em atitude crítica deliberada, lentamente, para tudo pensar, interpretar, jugar. O mesmo leitor pode (e até em relação à mesma obra) alternar estes diferentes modos de ler. As leituras de cariz intelectual, afectivo, estético, só se distinguem pela predominância dum destes elementos: as fronteiras entre eles são, por isso, muito esbatidas. A uni-las está um denominador comum, marca da leitura literária - o prazer -, embora com vários matizes: conhecer, por exemplo, é uma fonte de prazer, independentemente de vantagens práticas que se possam tirar do conhecimento. Em princípio, a leitura afectiva será mais projectiva que a intelectual. A leitura estética é a mais complexa, a que engloba maior número de operações, mobilizando maior número de virtualidades pois a leitura estética deve adaptar-se simultaneamente ao mágico, ao místico, ao racional, ao musical, ao inefável. Doutra perspectiva poderá falar-se em leitura-adesão (leitura com) e leitura-confrontação (leitura versus), a primeira caracterizada por uma atitude de simpatia, de identificação, leitura que é prolongamento, colaboração, entrega, devaneio, prazer de se reencontrar, de reencontrar aquilo que se ama, a segunda, ao invés, retraída, desconfiada, marcada por uma tensão, leitura de suspeita ou duelo ou recusa. Com esta distinção se articula outra repartição possível entre a leitura cuja tónica é a busca do já conhecido, interessando por isso o acontecer mais que o acontecimento, a acção, a peripécia, e a leitura que busca o imprevisto, logo a acção acidentada (ou, se nos reportarmos ao plano da expressão, a linguagem nova, cheia de infracções à norma). A releitura facultará o prazer dum novo reencontro, nunca exactamente o mesmo, ou dum novo, estimulante conflito com o texto, ou com o autor nele implícito.
De qualquer modo, a leitura (literária) é acima de tudo um modo de ler, a adopção dum ângulo de percepção constante (numa leitura verdadeiramente pessoal), uma hipótese contemplativa consequente que se segue fielmente até ao fim. Como tal, uma abordagem sempre mais ou menos precária, parcial, transitória, inacabada. O texto, esquivo por natureza, afasta-se quando dele nos aproximamos. Daí que possamos dizer que toda e qualquer nova leitura é ao mesmo tempo completa e incompleta, definitiva e provisória, absoluta e relativa.

2.2 - Ambiguidade das obras e das leituras

Hoje em dia a teoria da literatura postula a linguagem literária como essencialmente plurissignificativa, donde a ambiguidade das leituras. Ninguém, nem o próprio autor, detém o previlégio do sentido exacto, único. Assim, paradoxalmente, a interpretação literária, ao querer clarificar, anular a ambiguidade da obra, acaba por ser, ela também, uma voz ambígua. Quando tentamos penetrar no mistério dum texto, este começa a levantar toda a espécie de perguntas novas e inesperadas, a sugerir incessantemente outras acepções inéditas, a desvendar sentidos surpreendentes, por uma autêntica explosão semântica de todo em todo imprevisível.(4)

2.3 - A ambição de uma leitura "Total"

Os críticos são tentados a superar a relatividade das leituras sucessivas por uma leitura total, que os integre e coordene, onde estejam subsumidos todos os pontos de vista possíveis; mas sempre, numa leitura pessoal, um dos traços específicos do texto prevalece sobre os restantes. A miragem da objectividade, apanágio duma "Ciência da Literatura", traduz-se, por exemplo, no conceito de "arquileitor" ou "leitor plural" proposto por Michael Riffaterre(5). A soma ponderada dum número x de leitores ("arquileitor") permitiria estabelecer o "mapa do texto", fase heurística, a que se seguiria a fase hermenêutica, ou seja, de interpretação. Mas o arquileitor não substitui o crítico, cuja leitura pessoal coerente continua a ser uma leitura privilegiada. Por outra via, a da semiótica, ambiciona o brasileiro Edward Lopes chegar a uma leitura total:"Sabe-se, hoje, que, se um discurso admite N sentidos, eles podem ser reduzidos todos, em nível superior a um meta-sentido que os reabsorva conjuntamente, estando eles, portanto, hierarquizados por relações de dominação intradiscursiva".(6) Programaticamente, poderá parecer um objectivo louvável, e aceitável o esforço para o atingir. Então conseguiríamos possuir o conteúdo significativo da obra, duma vez para sempre, inteiro. Entretanto, o dilema subsiste: a história da leitura "científica" anulará alguma vez a leitura como arte, como recriação original? Linguística e semiótica podem interessar à crítica, mas ainda não são crítica, situam-se num espaço diferente.

2.4 - Leitura como "traição"

Robert Escarpit, o mestre da escola de Bordéus, baseia as virtualidades da leitura literária no "mal entendido", ou seja no "conflito entre o desígnio do autor e o desígnio do leitor, expresso na sua reacção projectiva". Deste conflito nasceria a "traição criadora", considerada por Escarpit "a chave da literatura". Só arriscarei duas reservas à margem: a primeira é que também pode existir criatividade na leitura-adesão, tipo de leitura a que já aludi; a segunda diz respeito à propriedade do vocábulo traição ao falar de leitura literária; este vocábulo parece em contradição com a ideia da polissemia essencial do texto literário; aqui, porém, o próprio Escarpit antecipou-se ao reparo quando escreveu: "De facto, só se trataria verdadeiramente de traição na medida em que se admitisse que o propósito do autor prevalece sobre o do leitor e que ler um texto é procurar saber que quis dizer o autor [...] É assim com efeito que se lê objectivamente um texto em função documental. Mas ler literariamente, para o leitor, é antes de mais nada exprimir-se". E logo Robert Escarpit aponta para a dialéctica das relações de interdependência entre autor e leitor, texto e leitura: "Nem por isso o autor deixa de ser o que "atira a bola" o que dá o estímulo."(7)
2.5 - A "obra aberta"

Também Umberto Eco num ensaio de larga repercussão Obra aberta, veio ensinar que uma obra literária nunca se esgota, nunca está acabada, pois se vai alterando, desdobrando, na vida que lhe conferem as sucessivas, jamais definitivas, leituras. A ambiguidade tornou-se mesmo um fim explícito da obra, um valor a realizar de preferência a qualquer outro. Mas Umberto Eco não menos claramente que Escarpit reconhece que a obra literária até certo ponto condiciona, orienta, as leituras que a vão perfazendo. Verifica-se um equilíbrio dinâmico entre forma e abertura, a obra é um objecto dotado de propriedades estruturais que permitem, mas também coordenam, a sucessão de interpretações, a evolução de perspectivas. Michael Charles diz-nos o seguinte: "No grande jogo das interpretações, as forças do desejo e as tensões da ideologia têm um papel decisivo. Resta dizer que este jogo só é possível na medida em que os textos o permitem".(8) Outros autores igualmente insistem nesta ideia de interinfluência: Wolfgang Iser, da escola de Teoria da Percepção de Constança: a leitura é projecção do leitor na obra, mas também modelação do leitor pela obra (e a experiência da leitura falha quando o sujeito é incapaz de se deixar trabalhar pelo que no texto contraria ou excede o seu horizonte de expectativa e exclui o que no texto não vem confirmá-lo)(9) O que, em meu entender, repõe o importante problema das fronteiras entre leitura válida e leitura arbitrária. Não terão alguns representantes da "nova crítica" exagerado a "abertura" da obra? Será ainda crítica uma criação livre que toma como estímulo outro texto de criação? Bastará uma coerência interna para lhe dar validade enquanto crítica?

2.6 - A estética da recepção

Encarado assim o texto como algo que muda indefenidamente com os leitores, talvez melhor, com as leituras, e concebida a leitura como realidade dinâmica, versátil, série aqui ou ali interrompida, de "diálogos" entre obras e leitores, sucessão de incontáveis metamorfoses -, a História Literária deverá, por seu turno, assumir como finalidade específica o estudo do processo de recepção e produção estéticas que se realiza pela actualização de textos literários no leitor que os recebe, no próprio autor que o produz e na crítica que sobre eles reflecte.(10) Hans Robert Janos, professor da Universidade de Constança e principal iniciador dos estudos chamados "de Estética da Recepção." Para Hans Robert Janos, o leitor lê um texto em função de modelos resultantes da sua experiência da literatura, e aceita ou não o romance que infrinja o seu paradigma de romance, a peça de teatro que infinja o seu padrão de peça de teatro. Através das infracções aceites por um certo número de leituras é que um texto pode, mais rapidamente ou mais lentamente, impor inovações, alterar modelos vigentes, contribuindo para a evolução da literatura. Não há no âmbito específico da História da Literatura focos objectivos, independentes das leituras. O próprio historiador não passa dum leitor que tenta reconstruir as várias experiências de públicos do passado confrontando-os com a sua própria experiência como leitor. A dificuldade está em delimitar os públicos e em descrever com precisão os sistemas inter-subjectivos que determinam os "horizontes de expectativa" e as reacções durante a leitura. Na mesma época vivem leitores que esperam da obra literária a singularidade da infracção, outros que, pelo contrário, lhe pedem a confirmação de modelos consagrados; os autores ora tendem a satisfazer os primeiros ora vão ao encontro dos segundos.


2.7 - Ruptura e confirmação

O outro representante da "estética da Recepção" de que já falamos, Wolfgang Iser, introduziu uma correcção pertinente na doutrina exposta por Janos, notando que o distanciamento estético não deve ser o único critério para uma apreciação qualitativa: a literatura, por exemplo, do Século de Ouro espanhol é muito mais confirmativa que de ruptura, e nem por isso esteticamente inferior. Perante este reparo, Janos passou a aceitar toda uma gama de valores entre os dois pólos da emancipação e da confirmação. É ainda W. Iser que põe em foco o "leitor imanente" e que, considerando impossível estudar multidões de leituras, prefere enveredar pela análise semiótica de textos enquanto neles está incluso o leitor, uma certa imagem do leitor ideal, uma certa previsão ou projecto do seu comportamento em relação ao texto. Designadamente na ficção, a presença do narratório torna transparentes as tácticas utilizadas pelo narrador para orientar a leitura.

2.8 - O estudo dos modelos de ler: a leitura como construção

Mas será possível estudar dum ponto de vista sociológico, sistematicamente, com um mínimo de rigor, os vários modos de ler? Reduzir o individual ao geral ou, quando menos, ao sectorial, a grandes grupos?
Podemos apontar aqui dois caminhos a explorar: o estudo de aspectos comuns nos mecanismos da leitura e a determinação de nexos constantes entre modos de ler e extratos socio-culturais.
Ao primeiro desses caminhos nos convida Tzvetan Todorov no seu artigo La lecture comme construction(11), seguindo nesta direcção, prescindimos das incertezas da introspecção e das fadigas do inquérito psico-sociológico, "fastidioso", no entender do autor. Com efeito, ao lerem um texto de ficção, todos os leitores procedem a operações idênticas para construir o universo imaginário que o texto lhes propõe.(12)
Só as frases de natureza referencial permitem a construção. Um juízo ou asserção duma personagem não constitui um elemento referencial (talvez melhor: puramente factual, pois há alusões a aspectos diegéticos - caracteres, sentimentos, ideias - não isentas de subjectividade e ambiguidade).
O discurso directo é o único meio de eliminar uma diferença entre o discurso narrativo e o universo evocado; mas, claro está, o valor da fala da personagem como testemunho merece reservas, como todo e qualquer testemunho. A subjectividade do narrador, mesmo no romance realista, invade o discurso indirecto livre e até, o discurso indirecto. Ao leitor, em qualquer caso, caberá distinguir entre o acontecimento e a visão que dele lhe é dada em cada momento. Situa-se aqui uma das funções da repetição na narrativa: o mesmo evento pode ser aludido, como novos dados novos matizes, ou de novos ângulos, duas ou mais vezes; o evento vai sendo des/reconstruído no decurso da leitura.
Porque nunca são idênticas duas "leituras" (dois relatos de leitura) do mesmo texto? Porque os relatos descrevem, não o universo do próprio texto (que existe como pressuposto), mas esse universo já transportado para o espírito do leitor:

1 4
relato do autor relato do leitor
2 3
universo imaginário universo imaginário
evocado pelo autor construído pelo leitor

Este esquema vem em Todorov. A distinção entre 1 e 2 parece todavia artificial: o universo imaginário está no relato (nasce no relato, que já é ficção, imaginação) do autor. A ordem poderia inverter-se: 2 _ 1.

2.9 - Significação e Simbolização

O texto evoca os acontecimentos segundo dois modos: a significação e a simbolização. Ora, enquanto os factos significados são compreendidos, os factos simbolizados são interpretados, donde a margem de subjectividade que diferencia as leituras. Mas convém acentuar que os signos referenciais podem ao mesmo tempo, assumir, de modo evidente ou problemático, função simbólica. Só para dar um exemplo clássico, o incesto de Os Maias, de Eça de Queirós, já foi interpretado como alegoria da decadência da classe burguesa, fechada em si mesma; trata-se duma leitura possível, todavia discutível. Por outro lado, o escritor pode introduzir num passo narrativo, de concisão dramática, uma imagem poética. Para alguns leitores, não porventura todos, será perceptível um sentido simbólico. E esta apreensão dos valores poético-simbólicos tem a ver, como é óbvio, com a fruição e apreciação estéticas.
3 - Nova Crítica Literária

Aquilo que poderíamos designar como hermenêutica ontológica representa uma séria impugnação das formas da crítica literária eivadas de excessivo historicismo e de sociologismo ingénuo muito em voga quer no lado de lá como no lado de cá do Atlântico. A contestação da Crítica como "história" ou "sociologia" literárias (entre elas a marxista ou marxizante) é apenas um dos aspectos polémicos desta hermenêutica. A sua característica original é a da reabilitação da Retórica, quer dizer, a análise aprofundada dos meios que instituem uma dada forma literária como obra eficaz e plenamente estruturada. Pode pois acreditar-se esta hermenêutica de uma Nova Retórica mais complexa e mais bem armada tecnicamente que a disciplina tradicional a que Aristóteles havia conferido carácter "científico". Nova Retórica que é, simultaneamente, e mesmo por essência, uma Nova Poética.
Uma tal tentativa deve inserir-se no movimento de contestação literária e crítica do Romantismo, hóstil por definição à ideia de uma possível codificação dos processos e instrumentos do génio "criador". Mas não cabe neste espaço empreendermos uma análise histórica mas sim dos supostos desta hermenêutica. A essência do texto encontrar-se-ia, ou antes, resultaria da capacidade de uma certa forma verbal para despertar nos leitores uma reacção harmoniosa, o que, bem vistas as coisas, torna impossível toda a crítica. É no próprio texto (e não no seu "leitor" ou nas sensações e reacções mentais dele, difíceis de analisar) que deve centrar-se a análise crítica. É esta autonomia de uma forma verbal que distingue esta hermenêutica da atitude crítica.
Não é difícil ver como se encontra próxima de uma crítica de orientação fenomenológica. A diferença consiste apenas no relevo atribuído à particularidade concreta do texto, ao material, à imprevista disposição da forma verbal, o que na análise do texto impede que nos atenhamos à sua estrutura, ao seu sentido global. Reinvindicando a autonomia do texto esta hermenêutica continua a preocupar-se com o seu significado ontológico, mas em vez de o enviar para o domínio da reacção harmoniosa que pode provocar vê nele o conhecimento directo, imediato da natureza no seu detalhe concreto. Esta teoria deixa subsistir um dualismo e um equívoco crítico, postulando o texto como conhecimento de outra coisa e não puro objecto, com sua interna e total coerência, em relação ao qual a ideia mesmo de paráfrase é impossível. O texto não consente verdadeira explicação, mas tão só explicitação. À crítica compete, descobrir as estratégias do texto, os seus meios de organização e persuasão.(13) A hermenêutica ontológica que estamos a caracterizar opõe-se a toda a Crítica que recorre a valores pragmáticos e recusam todos os "a priori" ideológicos, sociológicos, assim como o psicologismo e a sua eterna tentativa de assimilar o texto à "psique" do seu autor.(14) A obra é antes de tudo um texto e uma textura, que em sentido rigoroso não tem exterior ao qual reenvia. O Texto é, literalmente falando, "um mundo", ou antes um outro mundo de que é necessário, sem sair dele, narrar o esplendor e a glória(15). Todavia, esta totalização da palavra sobre si mesma comporta uma abertura, ou melhor, é o resultado do combate do autor com as obras do seu tempo enquanto Retórica. É o profundo conhecimento desta, quer dizer, o estado e o estádio histórico da imaginação poética de uma época que mais do que tudo permite a penetração e a interna apropriação cognitiva da obra(16). Esta inscrição do acto textual no já estruturado campo que é o dos "lugares comuns" poéticos de uma época salva esta concepção do puro solipsismo hermenêutico, mas não responde à dificuldade maior da referência "ao mundo" que no texto fatalmente se encontra inclusa(17). Mesmo se essa função é assumida pela "ironia", o movimento interno que ela determina, a oscilação permanente entre a palavra do texto tomada como relação imediata ao real e a mesma palavra "ironicamente" transfigurada, testemunham sempre do desenraizável vaivém entre a consciência e a realidade(18). A hipóstase (união do Verbo com o Divino, substância única) do texto, responde à profunda necessidade de apreender e compreender essa específica "realidade" que o texto é, recusando as tentações sedutoras da crítica tradicional. Mas em seu lugar instaura temíveis dificuldades de outra ordem e escapa dificilmente à tentação do formalismo. A questão do "conhecimento literário", e por conseguinte de toda a Crítica -antiga e moderna -- inseparável da questão "crucial" de todo o conhecimento, a das relações entre o Sujeito e o Objecto, devolve-nos sem embargo para as paragens da "filosofia primeira". Mas o que há de específico no texto literário é que ele obriga a reconsiderar a clássica dicotomia dessas relações, como se o texto e o núcleo metafórico que o constitui fossem, de incompreensível maneira, a solução da aporia. Assim aparece, sem surpresa, uma espécie de mistificação do texto literário, lugar da conciliação ou reconciliação da realidade humana dividida e indirectamente uma mitificação do exercício crítico através do qual se oficia esse poder tetânico do acto literário. A tentação formalista que parecia inerente à defesa e autonomia do texto, revela-se afinal como decidida atitude idealista e, finalmente, mau grado a tradição de impessoalidade, um avatar - porventura o último - do Humanismo enquanto Crítica.
As afinidades desta hermenêutica com a mais recente Crítica Literária francesa são imensas. O ano de 1957 é habitualmente considerado pelos historiadores da Literatura como um ano decisivo de uma nova era literária ao mesmo tempo criadora e crítica que entretanto, em 1956, havia encontrado o seu epíteto justo: a era da suspeita. Este período designa com propriedade a essência do nono acto literário como desconfiança incurável de si mesmo e assinala a mudança do estatuto multissecular da própria Literatura. É capital compreender que a "suspeita" não nasceu nos arraiais da Crítica, mas no santo dos santos da criação, no espírito dos autores. A bem dizer uma "suspeita" implícita ou latente esteve sempre instalada no coração dos autênticos criadores. Mas nascia sobretudo do "exterior" e marcava como que em sombra a consciência dos limites da nomeação glorificante ou denunciante da realidade. A novidade da "suspeita" moderna é que ela visa a possibilidade dessa nomeação através da qual recriávamos o mundo. Sombra da literatura, a Crítica não podia ficar ao abrigo dessa "suspeita" inserta no acto literário em geral. Só podia ser o lugar da tematização orgânica e organizada dessa universal suspeição. Toda a crítica tradicional - em suma, a crítica humanística - repousava sobre a ideia de que a Literatura era. Conhecer e detalhar esse "ser" era o seu natural ofício. De uma maneira mais ou menos explícita, a crítica humanística implicava também a questão: "O que é a Literatura?". Mas tudo se passa como se o acento se tivesse deslocado: "Literatura é o quê?". É a esta perplexidade que responde uma Nova Crítica.
Decerto, a própria existência da Crítica, sob a sua forma tradicional, era já a prova da fiabilidade extrema da estranha realidade que é a obra literária. Todavia, essa mesma crítica não fazia mais que elevar à segunda potência a crença da divindade da Literatura. Mesmo o marxismo, tão pouco disposto a admitir ídolos (excepto os que ele mesmo fabrica ...) só salvou de um mundo condenado à ilusão a consciência da ilusão desse mundo tal como a arte em geral, e em particular a Literatura, a configuram. Não-humanistica em tudo, coveiro da Religião e da Filosofia, o fino conhecedor de Homero e Shakespeare que era Marx teve piedade de Helena e de Hamlet e, como Eneias, salvou do fogo da Tróia burguesa o sorriso que desencadeou guerras, a Beleza. Sob uma forma comovente pela ingenuidade - é ainda esta Beleza que a actual sociedade soviética continua a encarar com fervor, enquanto que o Ocidente, paradoxalmente, dilacera com energia este último paradigma. Assim a arte se converteu em Anti-arte e não arte e toda a literatura que se respeita em não-literatura. É nesta luz última que a reflexão sempre inquieta que designamos de Crítica encontrou os seus conceitos - se é lícito exprimir-me assim - e, em todo o caso, os seus meios. De algum modo também ela se volveu anti-Crítica, renunciando às tentações, mas igualmente às facilidades, que eram as suas quando o estatuto literário era incontestável.
Num certo sentido iludir-nos-iamos imaginando que tudo isto é radicalmente novo e que este apocalipse humanista é, ao mesmo tempo, o fim da Literatura e da sombra que lhe nasce aos pés, a Crítica. O que é realmente novo é o facto de que a Literatura sabe, enfim, que é mortal e na aceitação ou na revolta contra esta auto-revelação busca as forças da sua transfiguração. O que é realmente novo é que a Crítica se sabe exercício no interior desse saber mortal e a esse título, se conhece como duplamente mortal. Mas como sempre, a Crítica procede de maneira que a sua doença mortal se converta numa espécie de eternidade. Essa saída, essa eternidade precária, mas tranquilizante, é a da Linguagem mesma, cuja estruturação e complexidade detêm daqui em diante o segredo que a Crítica literária clássica procurava ao lado, a começar no próprio autor, para sempre desaparecido. Que a Literatura seja ou não ilusória, sublimação ou reflexo, importa menos à Nova Crítica que o facto de ser indubitavelmente Linguagem. Que o mundo se prenda nas suas malhas ou que essas malhas constituam um desenho cujas relações com o mundo são aleatórias ou "imaginárias", importa menos para o estatuto da Crítica não-humanistica do que "o ser linguagem" e, por consequência, realidade susceptível de tratamento científico. A Nova Crítica é serva, radiante e submissa, da Linguística. O texto não apela tanto para uma Retórica, mesmo renovada, como é o caso da hermenêutica ontológica, como para a simples destruturação segundo o código linguístico de que revela. Nascida de uma intensa má consciência - relativa ao acto da escrita e ao acto de compreensão - a Nova Crítica, abandonando as antigas questões de "metafísica" literária, acabou por encontrar o sossego insólito e imprevisto que a "velha" julgou achar na tradição, na psicologia, na sociologia, na antropologia.
Esta inscrição da realidade literária na realidade linguística assegura à Crítica um estatuto científico, operatório, que a compreensão tradicional, mormente a de tradição romântica, não facilitava. A questão é a de saber se essa nova espécie de "redução", sumamente esclarecedora, da realidade literária à textualidade, e desta à estruturalidade, torna, enfim, a Literatura transparente a si mesma ou se a não dissolve tomando como substancial (o texto) o que só o é pelo investimento de algo não-textual. É bem possível que os Jakobson, os Todorov, os Barthes esqueçam simplesmente uma pequena coisa, sob o pretexto de que antes deles ninguém a havia visto correctamente... Com efeito, os novos ateus do facto literário parecem esquecer que a reversão da realidade literária na Linguística, sob o pretexto óbvio de que a Literatura é, antes de tudo, fenómeno linguístico, falha por princípio essa realidade que não tem sentido algum fora desse investimento valorativo de difícil ou impossível justificação através do qual subtraímos uma certa realidade linguística (e não toda a realidade linguística) à sua função puramente comunicante. Ora o que constitui essa irrupção do valor não parece defender de maneira formalmente inteligível de uma particular estruturação verbal de que seja fácil desarticular os elementos e fornecer a chave, mas da apreensão de uma palavra ao mesmo tempo finita e total cuja presença destrói a "insignificância", a monotonia da cadeia verbal "não-literária". A "essência" desta última é, por assim dizer, a sua abertura total, o facto de que não tem começo nem fim, o que noutro sentido a define como "chata", plana, perfeitamente adequada à sua função de dizer só o que realmente diz. É esta cadeia que pode "talvez" sem resíduo traduzir-se e compreender-se em termos de pura Linguística. Mas tudo parece indicar que a Literatura começa exactamente onde ela acaba. Será necessário um dia e em oposição à omnipotência da moda actual que faz do Homem uma espécie de teofania (ou antes atheofonia) da Linguagem, inverter a fórmula e regressar a concepções mais clássicas e sem dúvida mais verdadeiras: a Linguagem e o Homem esforçando-se por se falar e não uma Palavra fatalmente hipostasiada de que o Homem seria menos o mediador que o eco sempre atrasado e fracassado.
Sejam quais forem as objecções ou inquietudes suscitadas pela Crítica não-humanista, a verdade é que sob o efeito combinado da autocontestação ao nível da "criação" e do radical questionamento da antiga prática crítica, a clássica boa consciência do estatuto da Literatura não é mais possível.
A Literatura e em particular a "moderna" que como tal se concebeu - sempre se representou com excessiva facilidade como o lugar em que a intrínseca mortalidade do homem se concedia um prazo, e, até, uma eternidade. Era inevitável desde o momento em que os altares haviam sido desertados. Esta "divina" certeza tinha que subsistir com dificuldade num mundo que vive suspenso, noite e dia, a uma luz de morte que é igualmente a da indiferença.
Neste contexto a Literatura tornou-se menos um alimento perecível e em vias de agonizar que um alimento de indiferença universal, obrigada para se sentir viva a contorções e poses inauditas. Não é, pois, por acaso que a Crítica - árvore cinzenta - cresce à sombra da antiga rainha ferida de morte. Se a crítica actual vive um momento de euforia isso significa que estamos trabalhando sobre o cadáver da criação. A mais sublime crítica não pode ser já mais que a glosa do apodrecimento estonteante da sua antiga senhora. Esta situação é (e em parte o foi sempre) natural. O essencial é não se enganar de porta e consumir tanta subtileza hermenêutica e linguística como se ela fosse um duplo da criação e esta última, por seu turno, uma realidade ao abrigo do tempo e da morte. Se a Crítica pretende outra coisa que a existência de chacal (nobre), que é a sua quando devora a criação imaginando dissolvê-la sem resíduo, só a alcançará sabendo-se eco, vida em segundo grau da "verdadeira" vida, a que existe na obra ou não existe, mas em nenhuma outra parte. Se a "antiga" Crítica tinha o defeito de ser cega e de tomar por um deus o que era apenas finitude humana sublimada, uma parte da crítica actual é vazia pois toma como objecto a ausência de Literatura ou uma textualidade mais ou menos indiferente a ela. É mesmo possível que um dia se prefira de novo a "ilusão humanística" que garantia um "sentido" à Literatura, ao crepúsculo em que agora entrámos, levando na mão a antorcha de uma Crítica capaz de devorar o que toca mas não de nos conceder aquela luz, inquieta, e mortal que só a obra irradia.
É possível que o que nós chamamos ainda "Literatura" e o suporte material dela, o Livro, se tornem uma expressão esgotada dos homens. Isso significará então, ou que regressamos a uma nova barbárie ou que nos convertemos em criação permanente de nós mesmos não sentindo por isso a necessidade de dar forma à distância que hoje e desde tempos imemoriais nos separa do mundo e de nós próprios. Por enquanto, as realidades que chamamos ainda Homero, Cervantes, Lao-tsé, Flaubert ou Proust (só para citar alguns nomes) existem no espaço ambíguo e ameaçado que se tornou o nosso espaço cultural. A sua realidade mortal ou imortal converte-se na nossa própria realidade quando os lemos, ou melhor, é a leitura mesma que instaura a troca da nossa palavra e da palavra inscrita neles convertendo-nos assim, queiramo-lo ou não, nesse crítico que pior ou melhor nenhum leitor pode deixar de ser.
4 - A Crítica Literária e a experiência hermenêutica da obra como abertura.

Vários são os sinais da polémica que alastra entre defensores duma crítica tradicional e praticantes de críticas novas: a leitura das páginas literárias é só por si suficiente para nos elucidar. Esta polémica seria inútil se ela não fosse outra coisa: inútil seria não fora o horizonte mais amplo em que se inscreve. Mas aí, enquadrada na luta ideológica que hoje se trava entre formas conservadoras e formas inovadoras de reflexão, comentário e criação, mas aí, inserida nas exigências estratégicas que a ciência impõe para a sua divulgação, aí é ela a polémica justa que traça as fronteiras reais entre aqueles que utilizam a cultura para exaltação "humanista" do homem e aqueles que a utilizam como exploração ilimitada do possível.
Quer se defina em termos de anti-humanismo ou de contra-cultura, quer escolha o desesperado rigor da teoria ou a formulação anarquizante, a modernidade da nossa cultura exige de nós o esforço de algo afinal muito simples. novas formas de sentir, novas formas de pensar. Cumprir o projecto de Nietzsche - apenas. Fazer da cultura (de isto de ler, de escrever, tocar, cantar, pintar desenhar, viver) uma experiência radical. "je tiens pour un porc tout homme qui n'écrit pas pour dire l'essentiel" (Roger Gilbert-Leconte). Assim mesmo: sem hesitações, sem desculpas. Dizem os jornais, que estas coisas dizem, que Foucault, ao investir com a sua palavra a sólida instituição do Colégio de França indicou, na lição inaugural, algumas das formas com que se reprime o fluir do discurso no nosso tempo, e entre elas apontou o terrível dogmatismo da verdade com que muitas vezes se bloqueia o exercício do raciocínio e do sentimento. Em crítica literária, muito mais acentuadamente do que noutros domínios, muitos são os que limitam o exercício crítico com o pretexto de respeitarmos a verdade (inexistente afinal) do texto, assim defendendo a mediocridade tímida das suas interpretações. Exemplo fácil: a miséria da nossa crítica literária actual.
Fala-se de moda. As modas, somos todos modas. Modas imperialistas, imperialismo das modas. Violência que narre. Gosto da superfície, superficialidade. Fácil idade. Mitos da juventude, francesismos, demoníacas intenções. Nisto, e em pouco mais, como isto pobre, se resume a ineficácia da mediocridade instituída. Moda, por exemplo? O fenómeno é complexo e aliciante, e por isso será que nós todos somos solicitados a sobre ela ter opiniões que sejam nossa. E, se de moda falamos, grande é a tentação, e nem sempre esquivada, para dela, moda, falarmos em termos que se aproximam duma metafísica do essencial e do intemporal: face à permanência de (certos) valores certos e eternos agita-se a turbulência de fenómenos circunstanciais. Mas, que acontece? A definição desses eternos valores (a "sinceridade" em literatura, por exemplo) corresponde apenas a modas anteriores, com a data do seu devido tempo, hoje ultrapassado, hoje ultrapassadas, e somente arvoradas sob a máscara da permanência para melhor combaterem, na cena ideológica, as modas do presente. Daí que: inútil a acusação de moda. Inúteis os acusadores. Porque, vejamos, não será que, no campo do ideológico, a moda tem a sua lógica específica, embora não autónoma, antes subordinada à causalidade mais complexa da formação sócio-económica em que se insere? Moda, evidentemente, um certo vocabulário ("estrutural", "ideológico", "científico", "alienatório", "inconsciente"), uma certa retórica (de que este texto pretende ser o exemplo excessivo), a referência a certos autores (Foucault, lembram-se?) o previlégio dado a determinados problemas ... A tudo isso, que é fenómeno de moda, apenas podemos opor a defesa ingénua de modas anteriores. Veja-se, por exemplo, como modelos em circulação, e apenas entre nós, como se cruzam, até num mesmo autor, a moda sergiana, a moda humanista-existencialista, a moda humanista-marxista, a moda estruturalista-anti-humanista, a moda vanguardista, a moda empirista-positivista, cada uma impondo a pertinência (ou impertinência) das suas problemáticas actuais. O critério de validade de uma "moda" não se vai obter, note-se, por um confronto ridículo com qualquer tabela de valores eternos e de interrogações fundamentais. A medida do seu valor revela-se no dinamismo da sua prática, na sua capacidade de afrontar inovações e diferenças, pensando-as sem magicamente as eliminar, integrando, analisando, desmontando, desconstruindo as outras modas, abrindo novos problemas, inaugurando problemáticas, enunciando conceitos, reformulando questões abandonadas. A qualidade duma "moda" prova-se pela sua capacidade de intervir na conjuntura teórica do seu tempo. Participar na conjuntura teórica é, para uma qualquer "moda", forçar todas as outras a definirem-se também em função dela. Decifrar uma conjuntura teórica é enunciar o quadro de pertinências que ela define. Só uma teoria que intervenha numa conjuntura estará em condições de fundamentar a decifração correcta. No que diz respeito à literatura e à crítica, devemos distinguir entre uma Ciência da Literatura ("Poética"), em desenvolvimento, e a prática da crítica literária. Ora, enquanto uma Ciência da Literatura deverá ser tanto quanto possível rigorosa e científica, a crítica, muito embora tomando como ponto de partida (instrumento, linguagem) as aquisições mais firmes da poética, não constitui em si mesma uma prática científica.
Eis um ponto que certos críticos têm dificuldade em entender. Contudo, simples. A constituição duma Poética parece algo de bastante claro. Existindo à nossa volta um dado número de textos que se pretendem estéticos, isto é, que nos aparecem como práticas significantes visando a produção dum efeito estético, será possível estudar objectivamente as condições e leis desse modo de produção. Por conseguinte, uma Ciência da Literatura ocupa-se dum determinado número de questões teóricas (retórica, versificação, estruturas narrativas, teoria dos géneros, relações produtor-obra, etc.) e fundamenta teoricamente uma história da Literatura. A Poética não se ocupa de elementos reais, mas sim de elementos virtuais, conceptualmente definidos pelo seu próprio discurso. Se o objecto da Poética é a Literatura, podemos dizer que o seu interesse essencial consiste fundamentalmente em definir cada vez melhor o seu próprio objecto. A Poética é uma das formas que a literatura tem para falar de si mesma, para assim melhor definir o que, em cada obra concreta, ela visa ser e nunca integralmente é.
Como se torna evidente, a crítica literária, na medida em que procura ler, descrever, analisar e interpretar um texto, utilizará todos os elementos que encontrar, recorrendo para isso às várias "ciências humanas" (uma vez que, segundo Buffon, "o estilo é o homem", isto é, a marca do humano): à Linguística, claro, embora tendo em conta que o texto literário é uma prática significante translinguística, à Poética, à Etnologia, à Sociologia, à Psicanálise, à Psicologia, à Semiótica, etc. Mas a utilização de instrumentos científicos não transforma a crítica literária em ciência. Outra coisa não se pretende dizer quando se fala em "crítica científica". Científica, sim, na medida em que emprega instrumentos de análise científicos. Mas apenas nisso. Supondo sempre que só uma análise rigorosa do mecanismo do texto o poderá abrir na violência da sua irradiação, o poderá concentrar na vertigem da sua multiplicação. Sabendo sempre que utilizar por vezes um discurso de tipo científico é apenas usar metaforicamente uma linguagem que, pela sua novidade, pode fracturar o texto em sentidos inesperados. Em crítica, trata-se de trabalhar o texto até ao esgotamento da sua e da nossa linguagem, tendo sempre em conta que esse limite se poderá adiar na medida em que soubermos inverter a multiplicidade de linguagens que nele, texto, e em nós também, através de nós, obra e leitor, se escrevem e diferenciam.
Se a crítica literária não é uma novidade científica, será ela uma actividade ideológica? Sim, até um certo ponto. Só o deixa de ser na medida em que ela própria se transforma em exercício de escrita, isto é, em texto que produz o seu específico efeito estético.
Tal pretensão costuma ser alvo de ironias nem sempre justas. É evidente que a crítica de uma obra depende da obra que se crítica. Mas, tal como a crítica não existiria sem a obra que ela pretende conhecer, também a obra não existiria sem leitores que, pela leitura, e pela crítica que toda a verdadeira leitura deve ser, a conhecessem. A obra literária não é como um texto legal cujo sentido existe de forma objectiva independentemente do facto de eu o conhecer ou não conhecer. A obra existe como abertura, disponibilidade, sentido suspenso, e, por conseguinte, só existe em plenitude no momento em que, ilusoriamente, pelo acto da leitura, a abertura se limita, a disponibilidade se preenche, o sentido se fixa. Fixação, preenchimento e limitação que a acumulam e sedimentam no corpo do texto para aí gravarem, no limiar de cada nova leitura, o peso que estruturalmente o indetermina e o ilimita.
Nem o crítico deve servir a obra, nem a obra deve servir o crítico. Nada disso. Abandonemos os cerimoniais da humildade, juízes (que não somos) da literatura que (como críticos) nos julga! A obra serve-se do crítico para obter o seu próprio objectivo, que é o de ser conhecida. E o crítico serve-se da obra para atingir o seu alvo específico, que é o de conhecê-la. Mas neste processo de conhecimento, o que está em causa não é a prevalência do texto da obra ou a prevalência do texto do crítico, mas a afirmação do que, neles, entre eles, no espaço que eles abrem, alteram e invocam, se propõe e se joga: a revelação de novas formas de pensar e de sentir. "Et de ce nouveau langage la grammaire est encore à trouver." (Artaud)

Notas:

(1) Legere: reunir, percorrer, tomar; escolher.

(2) Cf. a ideologia da didáctica, a cultura de massas, o psitacismo.

(3) A referência implícita a Roland Barthes é propositada.

(4) Marino, Adrian - Lecture, in "Dictionaire International des Termes Littéraires", dir. por Robert Escarpit, letra L, Haia-Paris, 1973, pág. 14 - 22. P.U.F.

(5)Riffaterre, Michael - Essais de Stylistique Structurale, Paris, 1971. Garnier Flammarion.

(6) Lopes, Edward - Discurso, Texto e Significação, ed. Melhoramentos, São Paulo, 1978.

(7) Escarpit, Robert - L'Écrit et la Communication, col. "Que sais-je", Paris, 1973. P.U.F.

(8) Charles, Michel - Rhétorique de la Lecture, Éditions du Seuil, (collection Poétique), pág. 56, Paris, 1977.

(9) Janos, Hans Robert - Pour une esthétique de la réception, Trad. de l'allemand par Claude Maillard, Gallimard, Paris, 1978.

(10)Ibidem, ver. cap. I pág. 21-80, Histoire de la Littérature, Bibliothèque des Idées.

(11)Todorov, Tzvetan - La Lecture comme Construction, in Poétique, ed. du Seuil, nº 24, pág. 11-22, Paris, 1975.

(12)O outro caminho que só agora começa a ser trilhado de modo enfático é o caminho (que nem todos consideram "fastidioso", como Todorov) dos inquéritos para sondagem das motivações socioculturais da diversidade das leituras. Finalidade concreta: determinar objectivamente as eventuais variações de leitura e de apreciação artística e ideológica das obras literárias, segundo os diversos estratos socioculturais que formam uma comunidade urbana. Os resultados alcançados parecem demonstrar que inquéritos deste tipo, cuidadosamente elaborados, podem render um conhecimento mais perfeito das motivações sociais, que não apenas do foro íntimo individual, dos diferentes modos de ler um texto literário.
O estudo das diversas leituras dum texto literário pode ainda fazer-se (embora numa faixa sociocultural reduzida) através das críticas e das traduções que suscitam, ao longo do tempo e em espaços diferentes. A tradução implica uma leitura pessoal condicionada.


(13)Uma obra muito importante e consultada por nós durante a feitura deste trabalho é a obra de: Palmer, Richard E. -Hermeneuties - Interpretation Theory in Schleirmacher, Dilthey, Heidegger and Gadamer, Northwestern University Press, 1969; com trad. Portuguesa de Maria Luisa Ribeiro com o título de Hermenêutica, ed. 70, col. O Saber da Filosofia, nº 15, Ferreira, Lisboa, 1986.
Richard E. Palmer comentando Gadamer diz nas págs. 188-189: "A tarefa da hermenêutica é essencialmente a de compreender o texto, não o autor. Tanto o conceito de distância temporal como o realce dado ao significado na compreensão histórica, deveriam evidenciar esse facto. O texto é compreendido, não porque se estabelece uma relação entre pessoas, mas devido à participação n tema que o texto comunica. Mais uma vez, esta participação infatiza o facto de que não só saímos do nosso próprio mundo como deixamos que o texto nos interpele no nosso mundo actual".

(14)"Pode no entanto dizer-se que quando contemplamos uma obra de arte desaparece o mundo em que vivemos a nossa própria vida. O mundo da obra apossa-se de nós e, por breves momentos, éum "mundo fechado" em si próprio e auto-suficiente. Não precisa de medidas exteriores a ele e não pode ser medido como uma cópia da realidade. Como conciliar isto com a afirmação de que a obra de arte apresenta um mundo que é a continuidade do nosso? A justificação tem que ser ontológica: quando vemos uma grande obra de arte e penetramos no seu mundo, sentimo-nos "em casa" e não de fora. Imediatamente dizemos: é na verdade assim!"
Ibidem, pp. 172-173.

(15)"Uma outra folha da objectividade moderna é a de encarar a obra como um "objecto" mais do que como "obra", o que distancia o leitor relativamente ao texto; contudo, a finalidade da interpretação literária é ultrapassar a distância a que o leitor está do texto. [...] A compreensão não é pois um instrumento para qualquer outra coisa - como a consciência - mas sim o meio no qual e pelo qual existimos. Nunca pode ser objectificada, pois é, no interior da compreensão que ocorre toda a objectificação."
Ibidem, pp. 228-229.

(16)"Uma interrogação genuína, diz Gadamer, significa "colocarmo-nos num espaço aberto" porque a resposta ainda não está determinada. Por consequência, uma questão retórica não éuma verdadeira questão, pois não há um questionamento verdadeiro quando a coisa de que falamos nunca é verdadeiramente "posta em causa". Para estarmos aptos a interrogar temos que querer saber, e isso significa saber que não sabemos. Quando alguém sabe que não sabe e quando não defende, por meio de um método, que precisa de compreender mais profundamente aquilo que já compreende, então adquire essa estrutura de abertura que caracteriza o questionamento autêntico."
Ibidem, pág. 201.

(17)"Por outras palavras, a revelação surge como um tipo de evento cuja estrutura é a estrutura da experiência e a estrutura da pergunta-resposta; é uma questão dialéctica. E qual é o meio no qual e pelo qual esta revelação ontológica ocorre no evento dialéctico da experiência enquanto pergunta e resposta? Qual é o meio, dotado de tal universalidade que os horizontes se fundem? Qual é o meio em que se esconde e armazena a experiência cumulativa de todo inseparável da própria experiência, inseparável do ser? A resposta tem que ser: a linguagem."
Ibidem, pág. 204.

(18)"Dado que oespaço aberto em que o homem existe é o domínio da compreensão partilhada criada pela linguagem como mundo, o homem existe nitidamente na linguagem [...] Isto é dizer que a linguagem e o mundo transcendem toda a possibilidade de se transformarem totalmente em objecto. Não transcendemos a linguagem nem o mundo por determinado tipo de conhecimento ou de reflexão; ("a experiência linguística do mundo é que é um absoluto").
Ibidem, pág. 209.

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