terça-feira, novembro 22, 2005

A IDEIA Nº 50 REVISTA DE CULTURA E PENSAMENTO ANARQUISTA

Amizade e companheirismo são os ingredientes fundamentais da relação que desde há uns anos a esta parte desenvolvi com os principais elementos d' A Ideia. Daí que fazer esta resenha crítica envolve inevitalmente elementos subjectivos (e qual é a critica que não os envolve?) de inegável valor humano. Tudo isto permite-nos afirmar que estou em boa posição para tecer alguns comentários à teoria e à prática desta "Revista de Cultura e Pensamento Anarquista". Em primeiro lugar editar trimestralmente uma revista anarquista que já vai no nº.50 e tendo em conta as dificuldades por que passa a escassa imprensa libertária não deixa de ser obra. No entanto, e esse o objectivo da minha resenha, nem tudo vai bem do ponto de vista doutrinário.
O primeiro aspecto a não ir bem é logo o editorial. Da primeira à última linha tudo aquilo sabe a telejornal das 9. Um editorial acerca do que se passa na frente oriental mas que não nos traz uma perspectiva libertária da questão, nomeadamente da famigerada Perestroika gorbatchoviana. Tudo o que aí é dito pode ser igualmente encontrado num Expresso, no O Jornal, no Sábado e no Diário de Lisboa.
O eterno problema da estatização não é problematizado numa via libertária mas numa dimensão pouco mais que pequeno-burguesa corrente.
Segue-se um artigo de Fernando Medeiros O Lugar do Outro: A imigração com classificador social. Uma única pergunta: Será que o lugar do outro não será ainda o lugar do mesmo? O leitor que tente encontrar uma resposta. O artigo de Rui Eduardo Paes, O Partido Radical e a Equação Liberal Libertária é uma autêntica mixórdia, onde se confunde/mistura anarquismo e liberalismo. Sou sincero. Na minha qualidade de anarquista nenhum partido, se pode contrapor às "igrejas totalizantes" que são os partidos políticos tradicionais, como nos diz o autor, mas Sr. Rui Eduardo Paes, o partido Radical não é excepção.
Segue-se o artigo de João Freire Anarquistas e Operários fundamentalmente informativo da sua tese de Doutoramento que foi defendida no final do ano transacto, e à qual com muita pena minha não assisti. O artigo vale por isso: pela informação. Fundamental é ler a tese com o título Ideologia, Ofício e Práticas Sociais: O Anarquismo e o Operariado em Portugal.1900 - 1940 que existe no Centro de Estudos Libertários gentilmente oferecido pelo seu autor e ao qual tivemos acesso, recomendando a leitura, a reflexão e o debate. O artigo do companheiro Moisés Ramos sobre a vida e a obra de Aurélio Quintanilha é de longe o mais interessante e o mais profundo de todo este número. Do ponto de vista histórico, biográfico, informativo, reflexivo.
Do que se segue prefiro não tecer grandes comentários. José Manuel Leandro pretende escrever um artigo sobre muito e sobre nada: Província, Rádios e Ideias: ainda e sempre o desafio das incertezas. Um conselho ao seu autor: o próximo artigo poderia ser Fátima, A Cultura da Batata no Alentejo e o Verão. É apesar de tudo e ainda sempre, o desafio das incertezas... O artigo de Edgar Rodrigues O Brasil a mil por cento apesar do respeito que nos merece o seu autor não é mais do que um conjunto de dados estatísticos sobre a realidade política, social, económica, cultural da sociedade brasileira. É importante, mas não chega. Nem sequer podemos considerar como o fundamental. O Artigo de Nelson Tangerini Humanismo em Preto e Branco, fala-nos sobre música especificamente sobre acontecimentos musicais onde se descortina momentos de Humanismo (talvez melhor dizendo humanidade). Boa tentativa só que falhada, pois os exemplos são pobres e nada significativos. A música de George Harrinson, Paul McCartney, Stevie Wonder, Bob Geldorf, Michael Jackson, Lionel Ritchie e outros pedantes subprodutos do sistema consumista tecnocapitalista, é perfeitamente irrelevante do ponto de vista poético-musicológico. Boa tentativa Nelsinho, mas não chega. O desenho de José Maria Saldanha da Gama intitulado Um poema a Emídio Santana é visualmente batido e onde encontramos influência da poetisa Ana Haterly e de alguns pintores contemporâneos nomeadamente portugueses. Fica a homenagem ao homem. E que dizer da poesia? Não. isso não! A Fénix de Carlos Barros e Não estou vestido para Chegar à Porta de Fernando Grade são alguma vez exemplos daquilo a que se poderia chamar poesia libertária? Responda o leitor interessado.
Esta Ideia comporta ainda na secção Debate As Tecnologias da Informação e o Poder Deslocalizado de José Manuel Rebordão na secção Arquivo a segunda parte de Revolução e Propaganda do anarquista português Emílio Costa sobre a qual o meu colega Torcato Sepúlveda já teceu comentários ao número anterior e termina com a Leitura de duas obras de autores portugueses, o Manuel Rodrigues e o Carlos da Fonseca. Registo com dados de interesse e uma Crónica de Beldiabo concluem este número 50 d' A Ideia.
Decididamente A Ideia assim não vai lá. Muita coisa tem que ser alterada, grandes mudanças têm que se operar, um pouco como está a acontecer, ou como se quer que aconteça n' A Batalha.
Esperemos só que esta mudança não se efectue quando se der o desaparecimento do seu director, ou em parte por causa disso, como aconteceu cá em casa.

P.S.
A revista A Ideia poderá ser um descodificador da realidade libertária que se quer construir e para que isso possa acontecer precisa do apoio de todos os anarquistas, inclusive do meu.
Publicado n' A Batalha, nr.124-125, Maio, 1989

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