Preâmbulo
Quisemos levar a efeito uma reflexão sobre o conceito de adolescência e o que ele representa ou o que se quer que ele representa e mais tarde o que ele tem representado. De modo que a questão inicial surgiu e foi sendo desenvolvida à medida que a investigação se ia desenvolvendo…
Até que ponto não serão os “adolescentes”, os jovens, forçados a representar um papel que vai variando de acordo com as orientações que recebem da família, das escolas, do Estado, da religião, da economia de mercado, da publicidade, etc. E se o conceito de adolescente fosse entendido como um conceito operativo mas mais ao nível ideológico?
Desenvolvimento
Vivemos rodeados de afirmações que se tornaram dogmas; de símbolos transformados em verdades. Nada há de mais difícil e, ao mesmo tempo, de mais importante do que pôr em causa esses dogmas, essas verdades, ou mais exactamente essa afirmações, esses símbolos. A infância, a idade adulta, a velhice existem seguramente. Mas a adolescência? O que está em causa neste texto é uma contestação. A contestação do conceito de adolescência. À primeira vista, parece um empreendimento ousado, diríamos mesmo temerário. A posição da adolescência parece forte. Os escritores exaltaram a adolescência inquieta ou o adolescente. Os médicos afirmaram a originalidade da fisiologia, da patologia do adolescente. Em muitos países, existem inclusive numerosos serviços hospitalares especializados, reservados aos adolescentes.
Na realidade, o conceito de adolescência, enquanto período particular, distinto, da vida, situado entre a infância e a idade adulta, é um conceito recente. Recente na história dos seres vivos. As sociedades ignoram a adolescência. Pode obviamente objectar-se que, definindo-se o homem – na expressão de muitos – pela sua capacidade de aprendizagem, e a adolescência sendo, antes de mais, a idade em que se aprende, não é de admirar que as sociedades animais ignorem a fase da adolescência.
Mas o conceito de adolescente é igualmente recente na história dos homens. Não é só desconhecido das sociedades primitivas, é-o também de sociedades muito evoluídas, como a Grécia, Roma, as sociedades francesas da Idade Média e dos tempos modernos.
Em termos simbólicos falar da “adolescência” é forçosamente falar do alfa e do ómega, das relações entre crescimento e declínio, isto é, do nascimento, da reprodução e da morte. Sabemos bem como são todos esses movimentos – melhor dizendo, pulsões – que intervêm, no decurso de processos mais ou menos conscientes, na concepção e na feitura do que se considera uma “idade”, ou fase da vida. E tanto assim é que podemos imaginar que, num futuro próximo ou longínquo, poderão surgir, à imagem, aliás, do bébé que vemos tornar-se uma pessoa, e dos seus avós que vemos entrar na terceira e, depois, na quarta idade, outras tentativas, filhas de idênticas tentações, de criar novas idades intermédias, quais novas barreiras defensivas levantadas por uma sociedade fragilizada.
Parece-nos, no entanto, que a única maneira de nos prevenirmos contra tais excessos é aceitar o profundo incómodo, quantas vezes, doloroso questionamento, que qualquer idade pode trazer quer aos que se aprestam a vivê-la quer, sobretudo, aos que por ela já passaram...
Ora, relativamente a essa idade onde os indivíduos, ao transformar-se de crianças em púberes, põem globalmente em causa a sociedade em que vivem, não seria doravante mais sensato, tendo em conta que a puberdade é já peso bastante, dadas as profundas alterações que lhes causa., libertá-los do fardo de uma adolescência socialmente fabricada e gerida por outros, quando não por conta de outros, que não eles?
Aceitar ser “incomodada” por eles não será o único meio ao alcance de uma sociedade que se pretenda capaz de dominar os seus medos originais e de ultrapassar as suas frustrações.
O que era, para os latinos, um “adulescens”? O substantivo, feminino ou masculino, designa um indivíduo que vive uma dada fase da sua vida, que no mínimo, dura treze anos, podendo, portanto, durar mais, e que vai dos 17 aos 30 anos. Esse termo, no entanto, não se aplica às romanas.
Para os latinos, com efeito, o que determina, no caso dos rapazes, as fases da vida são as suas obrigações civis e militares, enquanto, no caso das raparigas, as fases da vida são determinadas pela obrigação de se casar e de ter filhos.
A diferenciação vocabular na designação das idades sucessivas revela bem as disparidades existentes entre os dois sexos. Assim é que quando um indivíduo do sexo masculino, se torna “adulescens”, um indivíduo do sexo feminino com a mesma idade não se torna “jovem, rapariga”, mas “uxor”, “esposa”. O seu estatuto na sociedade depende exclusivamente dos laços de dependência que a ligam ao seu marido e à maternidade. Assim se compreende que, enquanto o “jovem” passa a “homem novo”, a jovem ou “esposa” passe a “mãe de família”, o que acentua a função da mulher, enquanto reprodutora de futuros cidadãos.
O momento determinante de toda esta “formação” linguística é certamente o ano de 1850. É nessa data que o género masculino de “adolescente” perde a sua conotação satírica, o género feminino passa a ser corrente, ao mesmo tempo que os dicionários atribuem à “adolescência” uma fase específica da vida que, abarca globalmente as idades compreendidas entre os 14 e os 20 anos.
Quando comparamos a evolução da família de palavras a que pertence “adolescência” com a família a que pertence “puberdade”, deparamos com as incessantes flutuações a que aquela foi submetida, enquanto o que sempre caracterizou a segunda foi a sua notável estabilidade. A puberdade, quando analisada do ponto de vista da semântica histórica, apresenta-se sempre, de facto, como um período de transformação do organismo humano.
Tendo como pano de fundo este fenómeno, em si mesmo simples, as sociedades e as épocas construíram um outro período, de duração bastante variável, a adolescência, em que convergiram, em torno das manifestações biológicas, toda uma série de receios, de ambiguidades psicológicas e sociais, desencadeadas pelo aparecimento dos caracteres sexuais secundários...
Algumas teses defendem que a idade média do aparecimento das primeiras regras tem vindo a diminuir. Falam mesmo de uma precocidade secular. Com efeito, apoiando-se num certo número de inquéritos realizados em determinadas populações europeias, afirmam que, de há um século e meio a esta parte, a idade média do aparecimento das primeiras regras se tem vindo a reduzir, por década, entre dois a três meses. Não deixam, no entanto, de referir que, desde 1950, o movimento se teria estabilizado, situando-se, agora, a idade das primeiras regras entre os 12 anos e meio e os 13 anos e meio. É óbvio que estas teses se prestam às mais diversas amálgamas e não tem faltado quem queira confundir puberdade com a idade do aparecimento das primeiras regras. Convém, com efeito, estar atento às formulações propostas, sobretudo quando se trata de referências antigas. A puberdade é um processo de maturação e não pode ser reduzido a um marco, aliás, sem valor, para apreciar a possibilidade de procriação.
Dizer que um processo de maturação se acha terminado é uma afirmação que, enquanto tal, pertence incontestavelmente ao domínio opinativo, ao universo das apreciações flutuantes, tantas e diferentes são as variáveis a considerar. Não apenas morfológicas, mas igualmente neurológicas, fisiológicas, psicológicas, etc. Regra geral, considera-se que a puberdade finda quando está constituído o adulto fisiológico, ou seja, o indivíduo dotado de capacidades reprodutoras, cujo crescimento atingiu, pois, o seu termo. Mesmo a esse nível, a utilização de números médios é redutora. Basta pensar que no termo de um período pubertário que, regra geral, se prolonga por três a quatro anos, a rapariga atinge a sua estatura de adulto por volta dos 14-15 anos, e o rapaz por volta dos 17 anos... Nessas condições, é óbvio que a avaliação caso a caso do poder de procriação é particularmente delicada. E isto sem falarmos da maturação cerebral, maturação que não podemos deixar de considerar como um indicador particularmente significativo. O sistema nervoso dito central não é considerado, e com razão, o lugar superior de todos os comandos? Acontece, todavia que o electroencefalograma, cujos traçados registam a actividade eléctrica cerebral, raramente revela um padrão adulto antes dos 19 anos e não raro surgem, até aos 25 anos, traços imaturos nesse padrão adulto. Aliás, os dados que nos fornecem a anatomia, a biologia, a fisiologia... e a psicologia não nos permitem fixar com exactidão o momento em que se acha formado o cérebro adulto.
A puberdade, nesta perspectiva fica reduzida a um puro sintoma. Sintoma doloroso, é certo, porque feito de lutas, de batalhas inscritas no que alguns designam por crise da adolescência, ou seja, a luta contra a investida das pulsões e dos fantasmas infantis; ou, ainda, a luta de cada indivíduo para se identificar com os ideais do seu sexo.
Se a psicologia e a psicologia clínica procuraram definir uma puberdade psicológica, Jean Piaget, por seu lado, procurou definir uma puberdade intelectual. Piaget esforçou-se por descrever o funcionamento cognitivo da criança e a sua evolução, quer por observação directa quer criando situações experimentais.
Há, no entanto, outros psicólogos que defendem que, mesmo depois da fase do raciocínio formal, o conhecimento continua a evoluir, sendo provável que essa evolução acompanhe todo o ciclo da vida humana.
Se assim for, onde situar a maturidade? E porquê querer à viva força fazê-la coincidir com a puberdade?
Em 1905, em Viena, Freud publica o seu célebre livro “Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade”, primeiro escrito da literatura psicanalítica a debruçar-se sobre as mutações psicológicas que acompanham a puberdade.
Nesse seu livro, no capítulo que dedica às “transformações da puberdade”, Freud não escreve uma só vez a palavra adolescência. No momento em que os seus contemporâneos se deixam cair na armadilha de uma “adolescência” criada de fresco, Freud, também ele interessado nas profundezas do comportamento humano, entende não ter razões para dar qualquer crédito a esse conceito artificial. Refere, sim, “período da puberdade”, fala em “idade da puberdade”, e é tudo.”Com o começo da puberdade, aparecem as transformações que vão dar à vida sexual infantil a sua forma definitiva e normal”, assim rezam as primeiras linhas do seu texto. Na sua concepção, não existe a adolescência como classe de idade, nem como período particular do desenvolvimento humano. Para Freud, a criança existe. Existe igualmente o adulto, trazendo em si, na sua história, a criança que foi. Entre a criança e o adulto, existe a puberdade. Esta é apenas uma continuação da pequena infância e, de modo muito particular, da sua problemática sexual e relacional, uma e outra intimamente relacionadas. Para Freud, a sexualidade infantil sendo a sexualidade de base, as formas que a sexualidade reveste na puberdade, período terminal das transformações corporais e psíquicas, têm a seus olhos um interesse manifestamente reduzido. Em seu entender, essas transformações são no essencial uma reactualização dos desejos e de precoces impossibilidades.
Dora, a célebre paciente de Freud que, se fosse hoje, seria considerada uma adolescente, não só pelos seus 18 anos como pelo tipo de crises de que sofria, nunca é tratada desse modo pelo mestre vienense.
Só mais tarde a partir dos anos 20 psicanalistas abrem caminho à aceitação como válida de uma noção algo precária criada pelos seus contemporâneos transformando em pressuposto o que poderia ter sido apenas um artifício cómodo. Pouco interessados em desenvolver o pensamento de Freud, que se limitara a falar de puberdade, não hesitam, em resposta a uma pressão social, em sintonizar-se com um certo ar do tempo…A psicanálise passa, então, a interessar-se por tudo o que inquieta e incomoda, nomeadamente o problema dos jovens delinquentes.
Na segunda metade do século XIX, assistimos a um crescendo inegável dos receios relativos à juventude. O adolescente, pois tal é doravante o nome que se lhe dá, torna-se objecto de um número crescente de estudos. A esse título, igualmente, é apontado a dedo como a causa de muitos males de que sofre a sociedade de então.
Durkheim, sociólogo da integração, estigmatiza-o enquanto factor de desintegração da sociedade. Chega a afirmar, na sua obra intitulada O Suicídio, que “se os jovens se suicidam mais facilmente, é porque justamente estão mal integrados na sociedade. Por outro lado (…) os seus apetites sexuais arrastam-no para a prática da violência, da brutalidade, quando não do sadismo. Gosta de sangue; adora violar”.
Em 1909, é publicada pela Alcan La Criminalité dans l`Adolescence. Causes, Remèdes d`Un Mal Social Actuel. Nesta sua obra, Duprat prolonga e aprofunda a perspectiva de Durkheim. Afirma ele: “ O adolescente é um vagabundo nato”. Apaixonado por viagens, por mudanças de toda a ordem, é um ser profundamente instável. “Foge como fogem os histéricos e os epilépticos.” “O adolescente é potencialmente um doente”…
É evidente que, enquanto alguns se mostram interessados em julgar e em condenar, outros houve, nomeadamente Freud, que vão procurar compreender as motivações que presidem às aparentes desordens que se observam.
O primeiro motivo de preocupação é, sem dúvida alguma, a emergência da sexualidade na adolescência. Não motiva apenas o interesse, causa igualmente receios em pais, médicos e educadores. “O sexo dos estudantes liceais preocupa efectivamente, nomeadamente as amizades particulares, a prática da masturbação e a homossexualidade nos colégios internos. Com a preocupação, surge o controlo: vai ser necessário gerir, controlar e vigiar. Por exemplo, Lombroso, criminologista dos finais do século XIX, afirma explicitamente: “ Quando dois jovens estão juntos, é preciso desconfiar. É bem provável que estejam a fazer algo de mal.” Num seu romance póstumo, Le Lieutenant-Colonel de Maumort, Roger Martin du Gard evoca a homossexualidade nos grandes colégios internos dos anos 80 do século XIX.
Os anos subsequentes do pós guerra (1945) vão revelar uma juventude que, decididamente, gosta de gozar a vida, de se exprimir, de levantar problemas novos, exactamente como faria, não um ser em expectativa de vir a ser, mas alguém que assume plenamente a sua personalidade. A aquisição, por parte da adolescência, de uma maturidade nunca antes alcançada coloca toda uma série de problemas que, por sua vez, vão exigir a intervenção teórica e prática dos diversos tipos de profissionais do funcionamento humano.
No âmbito de uma sociedade que não pára de descobrir a juventude que vive no seu seio, na sequência aliás, de uma série de “pioneiros” que contribuíram para a invenção dos contornos psicanalíticos desse novo jovem, o pós guerra vai revelar-se fértil em contribuições nomeadamente de além Atlântico.
À força de estudar e de falar sobre a dita adolescência, essas teorias acabarão por pensar que o objecto dos seus estudos existe realmente. Como se isso não bastasse, farão com que a própria sociedade acredite que existe algo de evidente, de natural e de atemporal que dá pelo nome de adolescência.
Assiste-se, então, ao aparecimento de uma profusão de conceitos, os recentes indo mais longe do que os precedentes na busca de um “verdadeiro” objecto imaginário. Ouve-se, então, falar em adolescência como fase de transição, de pós-adolescência, etc. Anna Freud é uma figura de proa desse movimento. Diz ela:” Nunca estávamos satisfeitos com os conhecimentos que íamos adquirindo sobre a questão. Os pais (como, aliás, nós próprios) não tinham a menor confiança nos nossos talentos de psicanalistas no tratamento da adolescência. Apareceu, por essa altura, uma série de publicações para demonstrar o contrário. O facto é que a adolescência continuava a ser o que sempre fora, um parente pobre e afastado da teoria psicanalítica”. Logicamente, Anna Freud deveria ter baixado os braços…Continuou, no entanto, a insistir na inadequação dos métodos de diagnóstico e de análise ao fenómeno da adolescência.
Paradoxalmente, ou talvez não, é bem possível que o fracasso verificado tenha sido providencial. O facto de os modelos teóricos psicanalíticos (e subsequente prática) destinados à elucidação dos mecanismos humanos mais íntimos, ou seja, os mecanismos mais subjacentes e mais específicos de cada pessoa, não se adequarem a essa idade da vida, mostra que são capazes de abarcar o conjunto dos factores sociais, culturais, económicos, demográficos, que não só pesam sobre os púberes como contribuem para modelar o seu tipo humano, provisório e não analisável. No entanto, esse fracasso relativo, em vez de levar a uma reavaliação do fenómeno “adolescência”, do carácter volátil da sua formação e, por conseguinte, da sua natureza eminentemente artificial, incitou, pelo contrário, um certo número de terapeutas a criar centros e instituições para o seu respectivo tratamento. Ou seja, em vez de tentar compreender a natureza de um movimento complexo que fluía, fugia das terapêuticas e pretendia alcançar patamares estáveis de autonomia, essas respostas tinham por único objectivo controlá-lo.
“Nessas condições, não será de admirar que, além da terapia analítica, se recorra a toda uma panóplia de meios de tratamento, alterações provocadas no meio ambiente, tratamento institucional, criação de comunidades terapêuticas, etc.” São palavras de Anna Freud que, a seguir, acrescenta:”De um ponto de vista prático, e seja qual for o seu valor, não se pode esperar dessas tentativas experimentais um qualquer enriquecimento directo do nosso insight teórico quanto ao conteúdo inconsciente do espírito adolescente.”
Cansada de esperar hipotéticos resultados teóricos e terapêuticos, a sociedade, logo a seguir à guerra, vai procurar resolver por sua conta e risco os problemas criados pela parte menos disciplinada da juventude. Aliás, os jovens, pelo seu lado, actuam exactamente do mesmo modo. Com efeito, o crescimento das grandes metrópoles e das suas periferias satélites, o desenvolvimento de uma economia de grande consumo, o êxodo rural e o seu cortejo de rupturas familiares e culturais levam, de certo modo, os jovens a agrupar-se em bandos. Ou seja, em cada geração, cada grupo de idade vai, pouco a pouco, aprender a organizar-se por si próprio e a defender os seus próprios interesses. A delinquência juvenil que, no período anterior à guerra, era “tratada” em casas de correcção deixa de ser um problema exclusivamente penal, ou de polícia, para se transformar numa questão sociojurídica. Em 1945, na base de noções como reeducação e educação vigiada, são definidas várias medidas de tipo educacional, geridas por um juiz de menores. A partir desse momento, a ideia de que o jovem “com problemas” deve ser tratado num meio social aberto vai-se aos poucos difundindo, vindo posteriormente a evoluir no sentido de prevenir os comportamentos delinquentes, em particular as recaídas. Essa evolução encontrou num decreto de 1958 em França a sua tradução legal. Concomitantemente, desenvolve-se uma reflexão sistemática sobre os danos e perturbações causados pela juventude, na perspectiva de definir medidas jurídicas e socioeducativas tanto quanto possível adaptadas aos comportamentos verificados no terreno. Todo esse processo culminará com a Declaração dos Direitos da Criança proclamada pela ONU, em 1959.
Na prática, pretende-se que as crianças e os jovens que eventualmente se encontrem em certas situações ou revelem comportamentos anómalos, passem a depender de instâncias ou de circuitos institucionais especificamente concebidos para a protecção, o apoio ou a reeducação integrativa de que, conforme os casos, precisem.
Todos esses esforços e todas essas medidas não impedirão, contudo, que a marginalização da juventude se amplifique, ou mais exactamente, que os problemas que levanta deixem de pertencer ao domínio socioeducativo e passem a pertencer ao do médico-psicológico. Sempre que tal acontece, e tais ocorrências tendem, de facto, a aumentar, a crise pubertária passa a ser encarada como um fenómeno patológico.
O facto é que o ponto de vista se altera. Se, numa primeira fase, é uma paciência contida que impera face às perturbações induzidas pela puberdade, numa segunda fase, assiste-se à emergência de uma vontade decidida a eliminar totalmente essa perturbação induzida. Dir-se-ia que a juventude se transformou, de repente, numa nova doença misteriosa, cujo tratamento reclamasse cuidados de natureza sociomédico-psicológica. Esse novo olhar, que via na puberdade uma doença, olhará, mais tarde, e do mesmo modo, a gravidez e a velhice. Será necessário esperar por Winnicott, pediatra e psicanalista inglês, para que toda essa gente fosse chamada à pedra, a crise pubertária não tem nada de patológico, é um fenómeno absolutamente salutar; pelo contrário, o que é patológico é a ausência de crise.
Em 1900 em França há cento e trinta mil alunos no secundário; Em 1950 – um milhão; actualmente – mais de cinco milhões. Para se ocupar desta juventude, um exército de um milhão e duzentas mil pessoas, entre as quais seiscentos mil professores e professoras. Como já alguém se lembrou trata-se da maior empresa do mundo, sem contar com o Exército Vermelho. Mais de 10 por cento das despesas do Estado. Um Estado professor que pouco faz falar de si. Aos pais foram sendo progressivamente retiradas a maior parte das suas funções tradicionais, em termos educativos. Desejariam eles, aliás, que as coisas se tivessem passado diferentemente? Seja como for, é um facto, a família foi desresponsabilizada. A experiência deixou de ser uma matéria pessoalmente transmissível. Apenas o saber é transmissível, porque essa transmissão é funcional. Num mundo que vive em permanência da novidade, a palavra de ordem é “tornai-vos independentes”… dependendo cada vez mais de nós.
Entretanto, a multiplicação dos actos de violência perpetrados pelos jovens não se verifica apenas nas cidades e suas periferias, atinge directamente os estabelecimentos escolares.
Paradoxalmente, a escola, lugar de saber, é um fracasso devido à sua ignorância em psicologia da educação. A violência na escola é também um reflexo da violência da escola, porque ignorar as necessidades escolares específicas da criança é uma violência que lhe está a ser feita em permanência. Em nome da igualdade de oportunidades, procedeu-se a uma uniformização dos ritmos escolares e das idades norma de aprendizagem, criaram-se pontos obrigatórios de passagem, institui-se um sistema de orientação e introduziram-se critérios de avaliação que são, de facto uma selecção que não diz o nome que tem.
Como escreveu E. Todd em 1983: “ A estrutura antropológica, ao contrário do sistema ideológico, perpetua-se automaticamente. A família é, por definição, um mecanismo reprodutor dos homens e dos valores.” Nessa célula elementar que é a família de procriação, prossegue E. Todd, “cada geração, cujos valores de base são forjados no cadinho familiar, tem a possibilidade de reinventar, a partir da adolescência, a ideologia dominante do seu universo social”.
Podemos interrogar-nos se esse povo adolescente, que há muito se transformou numa pós-adolescência interminável de múltiplas dependências, é um fenómeno integralmente negativo, ou seja, se comporta apenas inconvenientes. Os profissionais da saúde, especializados nos problemas da juventude, não terão qualquer dificuldade em responder pela afirmativa. Constata-se, no entanto, que não é essa a resposta que dão os financeiros e os fabricantes de bens de consumo. Basta passar os olhos pelos desdobráveis publicitários que editam para vermos que assim é. Ao lê-los, uma conclusão se impõe – a função económica da adolescência é inversamente proporcional ao lugar que lhe reserva a sociedade. Os adolescentes, esse povo extraordinário!” eis o que eles proclamam. E não admira que lhes saiam da boca exclamações dessas! Basta atentar nos seguintes factos; Os 15 – 24 anos em França representam um poder de compra avaliado em duzentos e dezoito biliões de francos; os 18 – 24 anos gastam em média, e por mês, dois mil setecentos e doze francos em divertimentos e outros prazeres diversos; 84 por cento daqueles com 15 – 24 têm conta bancária própria…Este último indicador é apenas a ponta do icebergue do processo de bancarização em curso da juventude.
Pelo seu lado, a publicidade e os meios de comunicação exploram não só a influência que as crianças exercem sobre o consumo dos seus pais, influência tanto maior quanto é verdade que tendem a viver juntos mais tempo sob o mesmo tecto, como a auto sugestão que os pais exercem sobre si próprios e que os leva a imaginar que um dado produto é mais conforme do que aqueloutro às aspirações dos filhos.
Na realidade, a publicidade explora a fundo um paradoxo comportamental entre desejos e necessidades que se tomam por originais quando, de facto, e porque correspondem a necessidades naturais, são próprias de uma dada idade e a sua satisfação, sinal de um evidente conformismo. Assim, para serem originais, os jovens escolhem e compram artigos pensando obviamente que estão a fazer prova de um gosto pessoal, quando, na realidade, esses artigos foram lançados por agentes comerciais que se servem do seu conformismo natural para aumentar as suas próprias vendas. O mesmo se passa com a promoção das vedetas da canção, de modas ao nível da roupa, etc…
Em suma, numa visão a médio prazo, parece estar a formar-se uma enorme estirpe de consumidores submissos. A pergunta que podemos fazer sobre os efeitos que teria sobre os jovens a sua situação de espera prolongada às portas da idade adulta tem aqui a sua resposta. Não é bom para os jovens, é certo, mas é muito útil para os agentes económicos.
Tal não deve conduzir a sociedade a renunciar aos seus códigos e valores, mas não a dispensa do dever de prestar atenção às aspirações daqueles que ainda não têm responsabilidades, e de aceitar ser abalada por essas aspirações emergentes.
Abalos esses que recentes acontecimentos, geograficamente próximos ou longínquos, nos vieram lembrar, independentemente das formas que tomaram, o seus carácter universal.
Não só na China, em Maio e Junho de 1989, onde os estudantes da praça Tien Na Men pediram mais democracia e liberdade a gerontocratas, mas igualmente em França, onde, em Novembro e Dezembro de 1986, no Outono de 1990, em Março de 1994, estudantes liceais e universitários reclamaram que lhes fosse dado um lugar na sociedade adulta.
Uns e outro puderam verificar o preço do que pediam. Na China, passada a surpresa inicial, os gerontocratas responderam com carros de assalto e armas automáticas à intolerável ousadia da juventude. O que um sistema político ditatorial não conseguira, durante décadas, com o controlo dos nascimentos e com casamentos o mais tardios possível, as armas iam, desta vez, conseguir?
Em França, os estudantes, filhos dos homens e mulheres de Maio de 68, não reivindicavam, como haviam feito os seus pais, uma juventude diferente, autónoma, triunfante, pediam apenas um lugar. Foi-lhes respondido com um folheto, tirado a oito milhões de exemplares, onde lhes era sugerido: “Metam em prática as vossas ideias”…Nessa base, voltaram à rua, no Outono de 1995. De nada lhes valera pôr as ideias em prática. Isso fora apenas um pretexto. Exigiam, agora, pura e simplesmente não ser tratados como uma geração sacrificada.
Breve Conclusão
Na sociedade adulta contemporânea, o principal papel da adolescência é funcionar como sintoma, como doença, como reflexo insuportável e como perigo uniforme, visível e designável. Reflexo de uma sociedade cada vez mais velha e fechada que, para se proteger, a designa como o seu diferente, o seu outro fundamental, é esse o papel estrutural da adolescência.
O facto mais saliente destes últimos anos é, sem dúvida, o fosso crescente entre o que preocupa os adultos e aquilo que realmente interessa os jovens. Quando os primeiros pensam adolescência, as palavras que lhes vêm ao espírito são bem diferentes - toxicomania, sida, violência, suicídio. Quando os segundos pensam em si próprios, pensam-se em termos de integração e de qualidade das relações afectivas.
Quisemos levar a efeito uma reflexão sobre o conceito de adolescência e o que ele representa ou o que se quer que ele representa e mais tarde o que ele tem representado. De modo que a questão inicial surgiu e foi sendo desenvolvida à medida que a investigação se ia desenvolvendo…
Até que ponto não serão os “adolescentes”, os jovens, forçados a representar um papel que vai variando de acordo com as orientações que recebem da família, das escolas, do Estado, da religião, da economia de mercado, da publicidade, etc. E se o conceito de adolescente fosse entendido como um conceito operativo mas mais ao nível ideológico?
Desenvolvimento
Vivemos rodeados de afirmações que se tornaram dogmas; de símbolos transformados em verdades. Nada há de mais difícil e, ao mesmo tempo, de mais importante do que pôr em causa esses dogmas, essas verdades, ou mais exactamente essa afirmações, esses símbolos. A infância, a idade adulta, a velhice existem seguramente. Mas a adolescência? O que está em causa neste texto é uma contestação. A contestação do conceito de adolescência. À primeira vista, parece um empreendimento ousado, diríamos mesmo temerário. A posição da adolescência parece forte. Os escritores exaltaram a adolescência inquieta ou o adolescente. Os médicos afirmaram a originalidade da fisiologia, da patologia do adolescente. Em muitos países, existem inclusive numerosos serviços hospitalares especializados, reservados aos adolescentes.
Na realidade, o conceito de adolescência, enquanto período particular, distinto, da vida, situado entre a infância e a idade adulta, é um conceito recente. Recente na história dos seres vivos. As sociedades ignoram a adolescência. Pode obviamente objectar-se que, definindo-se o homem – na expressão de muitos – pela sua capacidade de aprendizagem, e a adolescência sendo, antes de mais, a idade em que se aprende, não é de admirar que as sociedades animais ignorem a fase da adolescência.
Mas o conceito de adolescente é igualmente recente na história dos homens. Não é só desconhecido das sociedades primitivas, é-o também de sociedades muito evoluídas, como a Grécia, Roma, as sociedades francesas da Idade Média e dos tempos modernos.
Em termos simbólicos falar da “adolescência” é forçosamente falar do alfa e do ómega, das relações entre crescimento e declínio, isto é, do nascimento, da reprodução e da morte. Sabemos bem como são todos esses movimentos – melhor dizendo, pulsões – que intervêm, no decurso de processos mais ou menos conscientes, na concepção e na feitura do que se considera uma “idade”, ou fase da vida. E tanto assim é que podemos imaginar que, num futuro próximo ou longínquo, poderão surgir, à imagem, aliás, do bébé que vemos tornar-se uma pessoa, e dos seus avós que vemos entrar na terceira e, depois, na quarta idade, outras tentativas, filhas de idênticas tentações, de criar novas idades intermédias, quais novas barreiras defensivas levantadas por uma sociedade fragilizada.
Parece-nos, no entanto, que a única maneira de nos prevenirmos contra tais excessos é aceitar o profundo incómodo, quantas vezes, doloroso questionamento, que qualquer idade pode trazer quer aos que se aprestam a vivê-la quer, sobretudo, aos que por ela já passaram...
Ora, relativamente a essa idade onde os indivíduos, ao transformar-se de crianças em púberes, põem globalmente em causa a sociedade em que vivem, não seria doravante mais sensato, tendo em conta que a puberdade é já peso bastante, dadas as profundas alterações que lhes causa., libertá-los do fardo de uma adolescência socialmente fabricada e gerida por outros, quando não por conta de outros, que não eles?
Aceitar ser “incomodada” por eles não será o único meio ao alcance de uma sociedade que se pretenda capaz de dominar os seus medos originais e de ultrapassar as suas frustrações.
O que era, para os latinos, um “adulescens”? O substantivo, feminino ou masculino, designa um indivíduo que vive uma dada fase da sua vida, que no mínimo, dura treze anos, podendo, portanto, durar mais, e que vai dos 17 aos 30 anos. Esse termo, no entanto, não se aplica às romanas.
Para os latinos, com efeito, o que determina, no caso dos rapazes, as fases da vida são as suas obrigações civis e militares, enquanto, no caso das raparigas, as fases da vida são determinadas pela obrigação de se casar e de ter filhos.
A diferenciação vocabular na designação das idades sucessivas revela bem as disparidades existentes entre os dois sexos. Assim é que quando um indivíduo do sexo masculino, se torna “adulescens”, um indivíduo do sexo feminino com a mesma idade não se torna “jovem, rapariga”, mas “uxor”, “esposa”. O seu estatuto na sociedade depende exclusivamente dos laços de dependência que a ligam ao seu marido e à maternidade. Assim se compreende que, enquanto o “jovem” passa a “homem novo”, a jovem ou “esposa” passe a “mãe de família”, o que acentua a função da mulher, enquanto reprodutora de futuros cidadãos.
O momento determinante de toda esta “formação” linguística é certamente o ano de 1850. É nessa data que o género masculino de “adolescente” perde a sua conotação satírica, o género feminino passa a ser corrente, ao mesmo tempo que os dicionários atribuem à “adolescência” uma fase específica da vida que, abarca globalmente as idades compreendidas entre os 14 e os 20 anos.
Quando comparamos a evolução da família de palavras a que pertence “adolescência” com a família a que pertence “puberdade”, deparamos com as incessantes flutuações a que aquela foi submetida, enquanto o que sempre caracterizou a segunda foi a sua notável estabilidade. A puberdade, quando analisada do ponto de vista da semântica histórica, apresenta-se sempre, de facto, como um período de transformação do organismo humano.
Tendo como pano de fundo este fenómeno, em si mesmo simples, as sociedades e as épocas construíram um outro período, de duração bastante variável, a adolescência, em que convergiram, em torno das manifestações biológicas, toda uma série de receios, de ambiguidades psicológicas e sociais, desencadeadas pelo aparecimento dos caracteres sexuais secundários...
Algumas teses defendem que a idade média do aparecimento das primeiras regras tem vindo a diminuir. Falam mesmo de uma precocidade secular. Com efeito, apoiando-se num certo número de inquéritos realizados em determinadas populações europeias, afirmam que, de há um século e meio a esta parte, a idade média do aparecimento das primeiras regras se tem vindo a reduzir, por década, entre dois a três meses. Não deixam, no entanto, de referir que, desde 1950, o movimento se teria estabilizado, situando-se, agora, a idade das primeiras regras entre os 12 anos e meio e os 13 anos e meio. É óbvio que estas teses se prestam às mais diversas amálgamas e não tem faltado quem queira confundir puberdade com a idade do aparecimento das primeiras regras. Convém, com efeito, estar atento às formulações propostas, sobretudo quando se trata de referências antigas. A puberdade é um processo de maturação e não pode ser reduzido a um marco, aliás, sem valor, para apreciar a possibilidade de procriação.
Dizer que um processo de maturação se acha terminado é uma afirmação que, enquanto tal, pertence incontestavelmente ao domínio opinativo, ao universo das apreciações flutuantes, tantas e diferentes são as variáveis a considerar. Não apenas morfológicas, mas igualmente neurológicas, fisiológicas, psicológicas, etc. Regra geral, considera-se que a puberdade finda quando está constituído o adulto fisiológico, ou seja, o indivíduo dotado de capacidades reprodutoras, cujo crescimento atingiu, pois, o seu termo. Mesmo a esse nível, a utilização de números médios é redutora. Basta pensar que no termo de um período pubertário que, regra geral, se prolonga por três a quatro anos, a rapariga atinge a sua estatura de adulto por volta dos 14-15 anos, e o rapaz por volta dos 17 anos... Nessas condições, é óbvio que a avaliação caso a caso do poder de procriação é particularmente delicada. E isto sem falarmos da maturação cerebral, maturação que não podemos deixar de considerar como um indicador particularmente significativo. O sistema nervoso dito central não é considerado, e com razão, o lugar superior de todos os comandos? Acontece, todavia que o electroencefalograma, cujos traçados registam a actividade eléctrica cerebral, raramente revela um padrão adulto antes dos 19 anos e não raro surgem, até aos 25 anos, traços imaturos nesse padrão adulto. Aliás, os dados que nos fornecem a anatomia, a biologia, a fisiologia... e a psicologia não nos permitem fixar com exactidão o momento em que se acha formado o cérebro adulto.
A puberdade, nesta perspectiva fica reduzida a um puro sintoma. Sintoma doloroso, é certo, porque feito de lutas, de batalhas inscritas no que alguns designam por crise da adolescência, ou seja, a luta contra a investida das pulsões e dos fantasmas infantis; ou, ainda, a luta de cada indivíduo para se identificar com os ideais do seu sexo.
Se a psicologia e a psicologia clínica procuraram definir uma puberdade psicológica, Jean Piaget, por seu lado, procurou definir uma puberdade intelectual. Piaget esforçou-se por descrever o funcionamento cognitivo da criança e a sua evolução, quer por observação directa quer criando situações experimentais.
Há, no entanto, outros psicólogos que defendem que, mesmo depois da fase do raciocínio formal, o conhecimento continua a evoluir, sendo provável que essa evolução acompanhe todo o ciclo da vida humana.
Se assim for, onde situar a maturidade? E porquê querer à viva força fazê-la coincidir com a puberdade?
Em 1905, em Viena, Freud publica o seu célebre livro “Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade”, primeiro escrito da literatura psicanalítica a debruçar-se sobre as mutações psicológicas que acompanham a puberdade.
Nesse seu livro, no capítulo que dedica às “transformações da puberdade”, Freud não escreve uma só vez a palavra adolescência. No momento em que os seus contemporâneos se deixam cair na armadilha de uma “adolescência” criada de fresco, Freud, também ele interessado nas profundezas do comportamento humano, entende não ter razões para dar qualquer crédito a esse conceito artificial. Refere, sim, “período da puberdade”, fala em “idade da puberdade”, e é tudo.”Com o começo da puberdade, aparecem as transformações que vão dar à vida sexual infantil a sua forma definitiva e normal”, assim rezam as primeiras linhas do seu texto. Na sua concepção, não existe a adolescência como classe de idade, nem como período particular do desenvolvimento humano. Para Freud, a criança existe. Existe igualmente o adulto, trazendo em si, na sua história, a criança que foi. Entre a criança e o adulto, existe a puberdade. Esta é apenas uma continuação da pequena infância e, de modo muito particular, da sua problemática sexual e relacional, uma e outra intimamente relacionadas. Para Freud, a sexualidade infantil sendo a sexualidade de base, as formas que a sexualidade reveste na puberdade, período terminal das transformações corporais e psíquicas, têm a seus olhos um interesse manifestamente reduzido. Em seu entender, essas transformações são no essencial uma reactualização dos desejos e de precoces impossibilidades.
Dora, a célebre paciente de Freud que, se fosse hoje, seria considerada uma adolescente, não só pelos seus 18 anos como pelo tipo de crises de que sofria, nunca é tratada desse modo pelo mestre vienense.
Só mais tarde a partir dos anos 20 psicanalistas abrem caminho à aceitação como válida de uma noção algo precária criada pelos seus contemporâneos transformando em pressuposto o que poderia ter sido apenas um artifício cómodo. Pouco interessados em desenvolver o pensamento de Freud, que se limitara a falar de puberdade, não hesitam, em resposta a uma pressão social, em sintonizar-se com um certo ar do tempo…A psicanálise passa, então, a interessar-se por tudo o que inquieta e incomoda, nomeadamente o problema dos jovens delinquentes.
Na segunda metade do século XIX, assistimos a um crescendo inegável dos receios relativos à juventude. O adolescente, pois tal é doravante o nome que se lhe dá, torna-se objecto de um número crescente de estudos. A esse título, igualmente, é apontado a dedo como a causa de muitos males de que sofre a sociedade de então.
Durkheim, sociólogo da integração, estigmatiza-o enquanto factor de desintegração da sociedade. Chega a afirmar, na sua obra intitulada O Suicídio, que “se os jovens se suicidam mais facilmente, é porque justamente estão mal integrados na sociedade. Por outro lado (…) os seus apetites sexuais arrastam-no para a prática da violência, da brutalidade, quando não do sadismo. Gosta de sangue; adora violar”.
Em 1909, é publicada pela Alcan La Criminalité dans l`Adolescence. Causes, Remèdes d`Un Mal Social Actuel. Nesta sua obra, Duprat prolonga e aprofunda a perspectiva de Durkheim. Afirma ele: “ O adolescente é um vagabundo nato”. Apaixonado por viagens, por mudanças de toda a ordem, é um ser profundamente instável. “Foge como fogem os histéricos e os epilépticos.” “O adolescente é potencialmente um doente”…
É evidente que, enquanto alguns se mostram interessados em julgar e em condenar, outros houve, nomeadamente Freud, que vão procurar compreender as motivações que presidem às aparentes desordens que se observam.
O primeiro motivo de preocupação é, sem dúvida alguma, a emergência da sexualidade na adolescência. Não motiva apenas o interesse, causa igualmente receios em pais, médicos e educadores. “O sexo dos estudantes liceais preocupa efectivamente, nomeadamente as amizades particulares, a prática da masturbação e a homossexualidade nos colégios internos. Com a preocupação, surge o controlo: vai ser necessário gerir, controlar e vigiar. Por exemplo, Lombroso, criminologista dos finais do século XIX, afirma explicitamente: “ Quando dois jovens estão juntos, é preciso desconfiar. É bem provável que estejam a fazer algo de mal.” Num seu romance póstumo, Le Lieutenant-Colonel de Maumort, Roger Martin du Gard evoca a homossexualidade nos grandes colégios internos dos anos 80 do século XIX.
Os anos subsequentes do pós guerra (1945) vão revelar uma juventude que, decididamente, gosta de gozar a vida, de se exprimir, de levantar problemas novos, exactamente como faria, não um ser em expectativa de vir a ser, mas alguém que assume plenamente a sua personalidade. A aquisição, por parte da adolescência, de uma maturidade nunca antes alcançada coloca toda uma série de problemas que, por sua vez, vão exigir a intervenção teórica e prática dos diversos tipos de profissionais do funcionamento humano.
No âmbito de uma sociedade que não pára de descobrir a juventude que vive no seu seio, na sequência aliás, de uma série de “pioneiros” que contribuíram para a invenção dos contornos psicanalíticos desse novo jovem, o pós guerra vai revelar-se fértil em contribuições nomeadamente de além Atlântico.
À força de estudar e de falar sobre a dita adolescência, essas teorias acabarão por pensar que o objecto dos seus estudos existe realmente. Como se isso não bastasse, farão com que a própria sociedade acredite que existe algo de evidente, de natural e de atemporal que dá pelo nome de adolescência.
Assiste-se, então, ao aparecimento de uma profusão de conceitos, os recentes indo mais longe do que os precedentes na busca de um “verdadeiro” objecto imaginário. Ouve-se, então, falar em adolescência como fase de transição, de pós-adolescência, etc. Anna Freud é uma figura de proa desse movimento. Diz ela:” Nunca estávamos satisfeitos com os conhecimentos que íamos adquirindo sobre a questão. Os pais (como, aliás, nós próprios) não tinham a menor confiança nos nossos talentos de psicanalistas no tratamento da adolescência. Apareceu, por essa altura, uma série de publicações para demonstrar o contrário. O facto é que a adolescência continuava a ser o que sempre fora, um parente pobre e afastado da teoria psicanalítica”. Logicamente, Anna Freud deveria ter baixado os braços…Continuou, no entanto, a insistir na inadequação dos métodos de diagnóstico e de análise ao fenómeno da adolescência.
Paradoxalmente, ou talvez não, é bem possível que o fracasso verificado tenha sido providencial. O facto de os modelos teóricos psicanalíticos (e subsequente prática) destinados à elucidação dos mecanismos humanos mais íntimos, ou seja, os mecanismos mais subjacentes e mais específicos de cada pessoa, não se adequarem a essa idade da vida, mostra que são capazes de abarcar o conjunto dos factores sociais, culturais, económicos, demográficos, que não só pesam sobre os púberes como contribuem para modelar o seu tipo humano, provisório e não analisável. No entanto, esse fracasso relativo, em vez de levar a uma reavaliação do fenómeno “adolescência”, do carácter volátil da sua formação e, por conseguinte, da sua natureza eminentemente artificial, incitou, pelo contrário, um certo número de terapeutas a criar centros e instituições para o seu respectivo tratamento. Ou seja, em vez de tentar compreender a natureza de um movimento complexo que fluía, fugia das terapêuticas e pretendia alcançar patamares estáveis de autonomia, essas respostas tinham por único objectivo controlá-lo.
“Nessas condições, não será de admirar que, além da terapia analítica, se recorra a toda uma panóplia de meios de tratamento, alterações provocadas no meio ambiente, tratamento institucional, criação de comunidades terapêuticas, etc.” São palavras de Anna Freud que, a seguir, acrescenta:”De um ponto de vista prático, e seja qual for o seu valor, não se pode esperar dessas tentativas experimentais um qualquer enriquecimento directo do nosso insight teórico quanto ao conteúdo inconsciente do espírito adolescente.”
Cansada de esperar hipotéticos resultados teóricos e terapêuticos, a sociedade, logo a seguir à guerra, vai procurar resolver por sua conta e risco os problemas criados pela parte menos disciplinada da juventude. Aliás, os jovens, pelo seu lado, actuam exactamente do mesmo modo. Com efeito, o crescimento das grandes metrópoles e das suas periferias satélites, o desenvolvimento de uma economia de grande consumo, o êxodo rural e o seu cortejo de rupturas familiares e culturais levam, de certo modo, os jovens a agrupar-se em bandos. Ou seja, em cada geração, cada grupo de idade vai, pouco a pouco, aprender a organizar-se por si próprio e a defender os seus próprios interesses. A delinquência juvenil que, no período anterior à guerra, era “tratada” em casas de correcção deixa de ser um problema exclusivamente penal, ou de polícia, para se transformar numa questão sociojurídica. Em 1945, na base de noções como reeducação e educação vigiada, são definidas várias medidas de tipo educacional, geridas por um juiz de menores. A partir desse momento, a ideia de que o jovem “com problemas” deve ser tratado num meio social aberto vai-se aos poucos difundindo, vindo posteriormente a evoluir no sentido de prevenir os comportamentos delinquentes, em particular as recaídas. Essa evolução encontrou num decreto de 1958 em França a sua tradução legal. Concomitantemente, desenvolve-se uma reflexão sistemática sobre os danos e perturbações causados pela juventude, na perspectiva de definir medidas jurídicas e socioeducativas tanto quanto possível adaptadas aos comportamentos verificados no terreno. Todo esse processo culminará com a Declaração dos Direitos da Criança proclamada pela ONU, em 1959.
Na prática, pretende-se que as crianças e os jovens que eventualmente se encontrem em certas situações ou revelem comportamentos anómalos, passem a depender de instâncias ou de circuitos institucionais especificamente concebidos para a protecção, o apoio ou a reeducação integrativa de que, conforme os casos, precisem.
Todos esses esforços e todas essas medidas não impedirão, contudo, que a marginalização da juventude se amplifique, ou mais exactamente, que os problemas que levanta deixem de pertencer ao domínio socioeducativo e passem a pertencer ao do médico-psicológico. Sempre que tal acontece, e tais ocorrências tendem, de facto, a aumentar, a crise pubertária passa a ser encarada como um fenómeno patológico.
O facto é que o ponto de vista se altera. Se, numa primeira fase, é uma paciência contida que impera face às perturbações induzidas pela puberdade, numa segunda fase, assiste-se à emergência de uma vontade decidida a eliminar totalmente essa perturbação induzida. Dir-se-ia que a juventude se transformou, de repente, numa nova doença misteriosa, cujo tratamento reclamasse cuidados de natureza sociomédico-psicológica. Esse novo olhar, que via na puberdade uma doença, olhará, mais tarde, e do mesmo modo, a gravidez e a velhice. Será necessário esperar por Winnicott, pediatra e psicanalista inglês, para que toda essa gente fosse chamada à pedra, a crise pubertária não tem nada de patológico, é um fenómeno absolutamente salutar; pelo contrário, o que é patológico é a ausência de crise.
Em 1900 em França há cento e trinta mil alunos no secundário; Em 1950 – um milhão; actualmente – mais de cinco milhões. Para se ocupar desta juventude, um exército de um milhão e duzentas mil pessoas, entre as quais seiscentos mil professores e professoras. Como já alguém se lembrou trata-se da maior empresa do mundo, sem contar com o Exército Vermelho. Mais de 10 por cento das despesas do Estado. Um Estado professor que pouco faz falar de si. Aos pais foram sendo progressivamente retiradas a maior parte das suas funções tradicionais, em termos educativos. Desejariam eles, aliás, que as coisas se tivessem passado diferentemente? Seja como for, é um facto, a família foi desresponsabilizada. A experiência deixou de ser uma matéria pessoalmente transmissível. Apenas o saber é transmissível, porque essa transmissão é funcional. Num mundo que vive em permanência da novidade, a palavra de ordem é “tornai-vos independentes”… dependendo cada vez mais de nós.
Entretanto, a multiplicação dos actos de violência perpetrados pelos jovens não se verifica apenas nas cidades e suas periferias, atinge directamente os estabelecimentos escolares.
Paradoxalmente, a escola, lugar de saber, é um fracasso devido à sua ignorância em psicologia da educação. A violência na escola é também um reflexo da violência da escola, porque ignorar as necessidades escolares específicas da criança é uma violência que lhe está a ser feita em permanência. Em nome da igualdade de oportunidades, procedeu-se a uma uniformização dos ritmos escolares e das idades norma de aprendizagem, criaram-se pontos obrigatórios de passagem, institui-se um sistema de orientação e introduziram-se critérios de avaliação que são, de facto uma selecção que não diz o nome que tem.
Como escreveu E. Todd em 1983: “ A estrutura antropológica, ao contrário do sistema ideológico, perpetua-se automaticamente. A família é, por definição, um mecanismo reprodutor dos homens e dos valores.” Nessa célula elementar que é a família de procriação, prossegue E. Todd, “cada geração, cujos valores de base são forjados no cadinho familiar, tem a possibilidade de reinventar, a partir da adolescência, a ideologia dominante do seu universo social”.
Podemos interrogar-nos se esse povo adolescente, que há muito se transformou numa pós-adolescência interminável de múltiplas dependências, é um fenómeno integralmente negativo, ou seja, se comporta apenas inconvenientes. Os profissionais da saúde, especializados nos problemas da juventude, não terão qualquer dificuldade em responder pela afirmativa. Constata-se, no entanto, que não é essa a resposta que dão os financeiros e os fabricantes de bens de consumo. Basta passar os olhos pelos desdobráveis publicitários que editam para vermos que assim é. Ao lê-los, uma conclusão se impõe – a função económica da adolescência é inversamente proporcional ao lugar que lhe reserva a sociedade. Os adolescentes, esse povo extraordinário!” eis o que eles proclamam. E não admira que lhes saiam da boca exclamações dessas! Basta atentar nos seguintes factos; Os 15 – 24 anos em França representam um poder de compra avaliado em duzentos e dezoito biliões de francos; os 18 – 24 anos gastam em média, e por mês, dois mil setecentos e doze francos em divertimentos e outros prazeres diversos; 84 por cento daqueles com 15 – 24 têm conta bancária própria…Este último indicador é apenas a ponta do icebergue do processo de bancarização em curso da juventude.
Pelo seu lado, a publicidade e os meios de comunicação exploram não só a influência que as crianças exercem sobre o consumo dos seus pais, influência tanto maior quanto é verdade que tendem a viver juntos mais tempo sob o mesmo tecto, como a auto sugestão que os pais exercem sobre si próprios e que os leva a imaginar que um dado produto é mais conforme do que aqueloutro às aspirações dos filhos.
Na realidade, a publicidade explora a fundo um paradoxo comportamental entre desejos e necessidades que se tomam por originais quando, de facto, e porque correspondem a necessidades naturais, são próprias de uma dada idade e a sua satisfação, sinal de um evidente conformismo. Assim, para serem originais, os jovens escolhem e compram artigos pensando obviamente que estão a fazer prova de um gosto pessoal, quando, na realidade, esses artigos foram lançados por agentes comerciais que se servem do seu conformismo natural para aumentar as suas próprias vendas. O mesmo se passa com a promoção das vedetas da canção, de modas ao nível da roupa, etc…
Em suma, numa visão a médio prazo, parece estar a formar-se uma enorme estirpe de consumidores submissos. A pergunta que podemos fazer sobre os efeitos que teria sobre os jovens a sua situação de espera prolongada às portas da idade adulta tem aqui a sua resposta. Não é bom para os jovens, é certo, mas é muito útil para os agentes económicos.
Tal não deve conduzir a sociedade a renunciar aos seus códigos e valores, mas não a dispensa do dever de prestar atenção às aspirações daqueles que ainda não têm responsabilidades, e de aceitar ser abalada por essas aspirações emergentes.
Abalos esses que recentes acontecimentos, geograficamente próximos ou longínquos, nos vieram lembrar, independentemente das formas que tomaram, o seus carácter universal.
Não só na China, em Maio e Junho de 1989, onde os estudantes da praça Tien Na Men pediram mais democracia e liberdade a gerontocratas, mas igualmente em França, onde, em Novembro e Dezembro de 1986, no Outono de 1990, em Março de 1994, estudantes liceais e universitários reclamaram que lhes fosse dado um lugar na sociedade adulta.
Uns e outro puderam verificar o preço do que pediam. Na China, passada a surpresa inicial, os gerontocratas responderam com carros de assalto e armas automáticas à intolerável ousadia da juventude. O que um sistema político ditatorial não conseguira, durante décadas, com o controlo dos nascimentos e com casamentos o mais tardios possível, as armas iam, desta vez, conseguir?
Em França, os estudantes, filhos dos homens e mulheres de Maio de 68, não reivindicavam, como haviam feito os seus pais, uma juventude diferente, autónoma, triunfante, pediam apenas um lugar. Foi-lhes respondido com um folheto, tirado a oito milhões de exemplares, onde lhes era sugerido: “Metam em prática as vossas ideias”…Nessa base, voltaram à rua, no Outono de 1995. De nada lhes valera pôr as ideias em prática. Isso fora apenas um pretexto. Exigiam, agora, pura e simplesmente não ser tratados como uma geração sacrificada.
Breve Conclusão
Na sociedade adulta contemporânea, o principal papel da adolescência é funcionar como sintoma, como doença, como reflexo insuportável e como perigo uniforme, visível e designável. Reflexo de uma sociedade cada vez mais velha e fechada que, para se proteger, a designa como o seu diferente, o seu outro fundamental, é esse o papel estrutural da adolescência.
O facto mais saliente destes últimos anos é, sem dúvida, o fosso crescente entre o que preocupa os adultos e aquilo que realmente interessa os jovens. Quando os primeiros pensam adolescência, as palavras que lhes vêm ao espírito são bem diferentes - toxicomania, sida, violência, suicídio. Quando os segundos pensam em si próprios, pensam-se em termos de integração e de qualidade das relações afectivas.
Sem comentários:
Enviar um comentário