"Uma das mais poderosas causas que ajudaram a parar o progresso das ciências e da filosofia, é a temeridade daqueles em que uma excessiva confiança nos seus espíritos, ou a ambição e o desejo de se distinguir, dispuseram a dogmatizar acerca da natureza como sobre um sujeito suficientemente aprofundado. O vigor de espírito e a força de eloquência que os fazia acreditar nas suas opiniões, não os tornava mais capazes de acalmar nos seus discípulos todo o ardor para novas pesquisas; e se foram úteis pelas produções do seu próprio génio, foram cem vezes mais nocivos desanimando os outros génios ou desviando-os da direcção certa."
BACON, Francis - Novum Organum, prefácio, Traduction par M.F. RIAUX, Vol. 2, Charpentier, Libraire - Éditeur, Paris, 1845, pág. 1. (sublinhados meus).
"I. O homem, intérprete e ministro da natureza, estende os seus conhecimentos e a sua acção à medida que descobre a ordem natural das coisas, seja pela observação, seja pela reflexão; não sabe e não pode saber mais nada."
BACON, Francis - Novum Organum, liv. I, 1, pág. 7. (sublinhados meus)
"Assim, o fim da verdadeira ciência estando bem determinado, é preciso passar aos preceitos, e isso sem enevoar nem derrubar a ordem natural. Ora, as indicações que nos devem dirigir na interpretação da natureza compreendem duas partes. O fim da primeira é deduzir ou extrair da experiência os axiomas, e o da segunda deduzir e fazer derivar desses axiomas novas experiências. A primeira parte subdividindo-se noutras três, que podemos ver como três espécies, a saber: serviço para os sentidos, serviço para a memória, e serviço para a razão."
"Assim, em terceiro lugar, é preciso fazer uso do verdadeiro método indutivo, que é a chave da interpretação."
BACON, Francis - Novun Organum, liv. II, 10, págs. 91-92. (sublinhados meus).
"Para KOYRÉ, para BRUNSCHVICG, para a história das ciências e da epistemologia, a sentença é dura. Profeta se queremos, mas do passado.
BACON não compreendeu nada das matemáticas, desdenha a física da medida e da precisão, pensa que ela é qualitativa no momento que ela deixa de o ser. Faz uma amálgama confusa de considerações audaciosas. Nenhuma lei, nenhuma experiência, nenhum teorema, nenhuma demonstração trazem o seu nome.
Teórico da experiência, não faz a experiência da sua teoria."
ESCAT, Gérard - Bacon, PUF., Paris, 1968, págs. 21-22.
1. Pequena Introdução ao Problema - O Carácter da Filosofia de Bacon.
Não há nada mais vasto como o campo onde se meteu o pensamento de Bacon. A sua obra tem qualquer coisa de enciclopédico, e parece-nos desde o primeiro momento que a sua filosofia tem como limites o do saber humano. Assim, quando a queremos definir, experimentamos algumas dificuldades e não sabemos qual nome lhe havemos de dar. Somos mesmo conduzidos a perguntar se é mesmo uma filosofia, e se a devemos chamar como tal. O seu olhar estendeu-se sobre as ciências em geral; o seu desenvolvimento e o seu propósito fixaram incessantemente a sua atenção; apesar disso não doutrinou sobre nenhuma e não se instruiu sobre todas. O que é que ele fez? É a esta pergunta que pretendemos responder. Poderíamos começar por dizer que Bacon se apresenta como um mensageiro em que o seu clarão pacífico chamou os homens a unirem-se para caminharem juntos à descoberta da natureza. Por um lado é uma proposta científica que Bacon faz mas é também uma proposta ética. Na época de Bacon a filosofia escolástica já no seu declínio compreendia ainda uma ciência de Deus, do homem e da natureza. Tal era o império onde se começava a fazer ouvir desde o princípio do século as palavras da mudança. Bacon pode percorrer as diversas partes dum tão grande domínio sem se apropriar de nenhuma. Sobre a divindade, sobre a alma humana, diz algumas palavras, mas não pensa que a ciência esteja reduzida a calar-se. Quanto à lógica propriamente dita, não acrescenta nada àquela que ensinavam antes dele mas não deixa de falar duma filosofia natural expressão esta que deveria tornar-se clássica no seu país. "Concebo, diz ele, uma filosofia natural que em lugar de se perder na fumarada das subtis e sublimes especulações, trabalhe eficazmente a aliviar os males da vida humana".(1) É aliás sob este nome que incluiu o conjunto das ciências físicas. Foram elas de quem Bacon celebrizou particularmente a dignidade original e a grandeza futura, dinitas et augmenta; é a elas que dizem respeito numerosos ensaios que provam pelo menos uma sábia curiosidade. Mas não são os verdadeiros monumentos do seu elogio. Considerando a filosofia na sua história, ou para melhor dizer nos seus resultados, Bacon observou que a título de ciência universal ou de ciência das ciências, a filosofia tinha levado o espírito humano a medíocres resultados e nos últimos séculos não tinha conseguido realizar nenhuma grande descoberta, Julgando a árvore pelos frutos, como vulgarmente se costuma dizer, Bacon empreendeu a crítica da própria arte de saber, quer dizer da arte de descobrir; cedo viu manifestar-se a causa duma longa impotência e condenando a arte ensinada até ele e que não era outra senão a lógica do silogismo, concluiu da necessidade dum novo método que julgou encontrar numa lógica de indução. Assim as ciências são uma filosofia da natureza, e a filosofia de Bacon é uma filosofia das ciências. Mas quais são os limites da filosofia das ciências? Poderemos prolongá-los para lá da linha onde Bacon parou e fazer parecer desta maneira, a sua doutrina insuficiente. Mas o próprio Bacon declara que não produz uma teoria completa, universal.(2)
Não nos é permitido reclamar de Bacon o que ele não prometeu, nem opor-lhe exigências que não eram as do seu tempo. Necessário é para julgar bem a sua filosofia, circunscrevê-la no círculo das suas intenções. Poderíamos dizer que o objectivo de Bacon é sobretudo descobrir as origens escondidas dos nossos erros; o que ele melhor conheceu do espírito humano foram as suas fraquezas. Não podemos atribuir-lhe a honra de ter pensado como Aobbes, Locke ou Descartes ou ainda como os grandes homens de ciência do século XVI e XVII mas Bacon precedeu-os e fê-los pensar e por isso não deixa de ter o seu lugar na história do pensamento ocidental. Um último aditamento: é certo que pela predominância dos métodos experimentais Bacon empurrou o espírito humano para as ciências de observação externa em prejuízo das que tratam das coisas invisíveis. Previu a importância da psicologia, mas não a aprofundou e privou a sua doutrina de sólidos fundamentos filosóficos. Mas ela não resta menos verdadeira no seu conjunto, providenciando-se que a encaremos unicamente como um método geral das ciências que é aliás o objectivo do nosso trabalho.
2. O Conceito de Ciência e a Teoria dos Ídola
O novo método de interpretação da natureza está exposto como sabemos no Novum Organum que é uma tentativa de Bacon de superar os estudos de Aristóteles reunidos com o título de Organon.
Nas ciências, há duas coisas, o testemunho dos sentidos e o trabalho da inteligência. Mas estas duas coisas não estão unidas. O trabalho da inteligência é justaposto a não combinado às percepções dos sentidos. Estas são recolhidas sem ordem nem claridade, e aquela não tem qualquer base. Os dialécticos aperceberam-se desta solução de continuidade, e pensaram encontrar na sua arte um meio da remediar. Mas a dialéctica, tal como prevaleceu durante tanto tempo, parecia mais própria a consagrar o erro que a descobrir a verdade. Toda a obra teria que ser feita de novo, Uma única ideia restava de pé, é que o espírito do homem, mais que toda outra força, não podia passar de instrumento. É preciso representar a ciência como um obelisco que não poderia ser levantado por um só homem nem por um conjunto de homens se não se armassem de cordas e se não coordenassem os seus esforços e não seguissem a mesma direcção.(3)
Trata-se de encontrar ou de restabelecer a união das percepções à inteligência. O homem é o ministro e o intérprete da natureza, e não opera a nada compreende enquanto não observar em acto ou em ideia a ordem da natureza. Doutra maneira ele não sabe nem nada pode. Só a mão ou só o espírito não têm poder; é preciso instrumentos e suportes. A ciência e o poder do homem coincidem num ponto, pois se ele ignora a causa, o efeito escapa ao seu poderio.
Como ele não supera a natureza a não ser cedendo-lhe, o que é a causa para ele na especulação torna-se na obra princípio de acção. A sua acção sobre a natureza transforma-se em movimento; tudo o resto passa-se no interior dos corpos. O que faz o mecânico, o médico, o alquimista, quando opera? Faz a aliança com a natureza. Mas fraco foi o esforço e escasso o sucesso, acaba por concluir Bacon. Do que nada foi conseguido, é necessário concluir, não que nada seja possível, mas que nada é possível pelas vias que se seguiram. Nem as ciências parecem úteis para descobrir os procedimentos da arte nem a lógica para descobrir as ciências. O silogismo compõe-se de proposições, e as proposições de palavras. As palavras não são mais que as etiquetas das noções. Mas se as noções são formadas ao acaso a base desmorona-se. A única esperança está na indução verdadeira.(4) O pouco que se inventou salientava-se das noções mais vulgares. Para penetrar profundamente nos segredos da natureza, é preciso que as noções e as leis sejam tiradas das coisas, sejam abstraídas das coisas por uma via segura e regular. Duas vias se apresentam; Por uma, partimos das sensações e dos factos particulares aos axiomas mais gerais. Em seguida destes princípios e da sua verdade tomada como imutável, o juízo chega à invenção das proposições médias. Pela outra via, provoca-se os axiomas do seio da sensação e dos factos particulares, subindo gradualmente e sem interrupção, para atingir assim do ponto menos elevado a altura das proposições mais gerais. Esta última via é a verdadeira, que nunca nimguém tentou. Os dois métodos têm este ponto em comum; partem dos sentidos e do particular para pararem no mais geral; mas diferem imenso porque o primeiro não faz mais que aflorar o sensível e o particular, enquanto que o segundo ao sensível e ao particular se une observando com ordem e seguindo regras precisas. Também, enquanto que desde o início o primeiro põe inúteis generalidades, as quais o segundo método se eleva por degraus constituindo os mais efectivos conhecimentos da natureza. Há entre os ídolos do espírito humano e as ideias do espírito divino(5) a distância que separa fantasias vazias de verdadeiros caracteres ou das marcas reais que se descobrem na criação.
A subtilidade da natureza ultrapassa bem a atenção quer dos sentidos quer do entendimento. Do mesmo modo, os axiomas construídos pela argumentação puramente argumentativa são sem valor, enquanto que os que foram regularmente formados indicam e definem de algum modo novos factos particulares. Levando a descobertas ulteriores, tornam as ciências activas.
A verdade dos axiomas medem-se pela extensão das suas bases empíricas. Se uma fraca e curta experiência os produziu, não rendem nada de descobertas novas. O primeiro caso imprevisto abala-as. Tenta-se para as salvar algumas fúteis distinções, quando faríamos melhor em recomeçar; pois a própria experiência não deve ser deixada ao acaso. A errada experiência nas regras, levou o homem atento unicamente aos fenómenos mais familiares, a ter a imaginação bloqueada, e o seu entendimento pronto a concluir e em tirar certas visões gerais que excedem a natureza em vez da seguir. Estas antecipações, tiveram o seu lugar de interpretação, e não tiveram facilidade em encontrar crédito. A antecipação pode ser de bom uso nas ciências fundadas em opiniões. Pode, ajudando a dialéctica, submeter os espíritos; mas que pode ela sobre as coisas? Quando tentamos com algum golpe completar uma ciência assim formada, quando se ensaia rectificar os axiomas por uma super-indução, quando procedemos por adições tardias, não saímos do mesmo círculo. É melhor tomarmos tudo de novo do que ficar numa via semeada de obstáculos e deixar a inteligência obstruída de antigos erros.
Estas falsas noções que se apoderaram do espírito humano e que reaparecem na regeneração das ciências, se elas não são extripadas nas suas raízes, são o que Bacon chamou de ídolos ou idola. Estabelece quatro cujos nomes são célebres.(6) Os ídolos são para a ciência da interpretação da natureza o que os sofismas são para a dialéctica vulgar.
A humanidade é desta feita mais impressionada com o afirmativo que o negativo, e procura em toda a coisa de constante e de permanente, negligenciar a excepção e tudo o que possa perturbar a sua certeza. A alma, substância igual e uniforme, pretende a igualdade e a uniformidade, e supõe que na natureza não há mais nada. A sua tendência puxa para as abstracções, coisas fugitivas que ergeu em coisas estáveis. Daí estas regras gerais que ela com prontidão constroi, e às quais pretende submeter os fenómenos. Crê-se falsamente que o sentido é a verdadeira medida das coisas; não se vê que as percepções tanto dos sentidos como do espírito são mais relativas ao homem que ao universo. O entendimento emiscui a sua própria natureza na natureza das coisas; é um espelho que desvia e contorna os raios que esta lhe envia. Esta confiança irreflectida em si próprio, esta idolatria do seu próprio juízo é o primeiro erro da natureza humana. Daí os erros da nossa espécie, os ídolos da tribo, idola tribus. Cada um acrescenta os seus erros individuais. Cada um tem a sua constituição particular, e seguindo a ordem e a natureza das suas impressões, seguindo a sua educação, as suas relações, os seus estudos, o homem está como fechado numa certa cerca donde ele olha tudo o resto. Se os homens vivem como o quer Platão, numa caverna em que eles só apercebem as imagens das coisas, cada um tem a sua caverna; e os erros próprios a cada indivíduo podem ser chamados ídolos da caverna, idola specus.(7)
Nas nossas opiniões entram muitas convenções. É o vulgar que rege a significação das palavras. Os homens introduziram no comércio uma certa massa de ideias que estão longe de serem exactas e correctas. A linguagem recebida semeia o erro nas sociedades humanas. Estes erros do lugar público são idola fori.
As palavras servem para forjar erros, mas o vulgar não está só a fabricar palavras e erros. Os filósofos põem princípios, ajustam teorias, consagram expressões, às quais o espírito se agarra e se sujeita, verdadeiros papeis que o discípulo recita depois de os ter aprendido. Como as fábulas que acabam por ter mais lugar no espírito que os relatos históricos, estas ficções acabam por tornar-se erros poderosos. São os ídolos do teatro, idola theatri.
Tal é a classificação singular mais justa, onde Bacon precedeu todas as críticas do espírito humano nas quais os modernos foram os melhores; e talvez julguemos que ele enfraqueceu o papel da matéria, assinalando numa linguagem mais simples as sete causas de erro. Aqui estão elas;
- O espírito humano está enclinado a supor nas coisas a ordem e a simetria.
- O espírito humano está enclinado a investir duma autoridade inviolável as opiniões que lhe agradam.
- O espírito humano é tocado sobretudo pelas coisas que o impressionam pelo acaso e simultaniedade.(8)
- O espírito humano vai por ele próprio; não pára e procura o infinito.(9)
- O espírito humano não é uma vista pura e simples das coisas; as afeições e as vontades turvam-no.
- O espírito humano é enganado pela rudeza e as ilusões dos sentidos.
- O espírito humano é levado pela sua natureza às abstrações, e imagina permanente o que é passageiro.(10)
Todas estas causas de erro, não tiveram mais lugar que na filosofia. Bacon retrata a grandes traços a sua história, e sob as suas três formas, sofística, empírica ou supersticiosa, a ciência parece-lhe ter feito um falso caminho. É só há pouco tempo que o espírito humano se mostrou mais indulgente para com o seu passado. Tudo o que se disse de verdadeiro, de especial e de exagerado contra esse passado, se encontra em Bacon que disse antes de todos, particularmente nas últimas dezenas de páginas do primeiro livro do Novum Organum.
O quadro que traça entritece-o até ao desânimo. "Mas, diz ele, permite-nos exprimir as nossas conjecturas que nos rendem a esperança. Assim Cristovão Colombo, antes da sua maravilhosa viagem através do mar Atlântico, produziu as razões da sua confiança na descoberta de novas terras e de outros continentes desconhecidos antes dele. E essas razões antes rejeitadas, depois confirmadas pela experiência, tornaram-se a fonte e os começos de grandes coisas. Que em Deus esteja a primeira esperança. Ele épor sua vez o autor do Bem e dos homens. Ele é o arquétipo das ciências. A profecia de Daniel: Multipertransibunt et multiplex crit scientia, anuncia que o mesmo século verá aumentar o mundo pela navegação, e as ciências pelos seus progressos.(11)
3. O Novo Instrumento da Interpretação da Natureza
Só há esperança numa regeneração das ciências. Os erros cometidos são eles próprios ensinamentos. Todos os que cultivaram as ciências foram ou empíricos ou dogmáticos. É preciso unir por laços mais fortes e estreitos a experiência e a razão.(12)
Aristoteles, tão rico em recursos, colecionador dos factos, quando escreve a história dos animais, não é mais o mesmo, quando se propõe fabricar uma filosofia. É preciso seguir o seu exemplo como naturalista, fazer suceder à experiência vaga que as artes mecânicas se contentam, a arte de recolher os factos e de formas como que vastos viveiros. Os factos bem ordenados, bem dirigidos, tornar-se-ão o ponto de apoio duma lenta e sucessiva generalização.
Investigar a natureza duma coisa na coisa mesma tomada isoladamente é um trabalho inútil: é preciso que a procura se estenda e se enriqueça pelo exame das coisas comparáveis.(13) Sensações fortuitas, observações desligadas, uma experimentação sem regra não são e não dão a ciência. As experiências não têm preço enquanto que elas servem de fundamento à filosofia; épreciso que elas sejam mais instrutivas que úteis, que elas dêem luzes em vez de frutos. O fruto que elas trazem é somente um signo da verdade da descoberta. Assim antes de ousar interpretar a natureza, é preciso a experiência, mas a experiência científica, experientia litterata. Um método de experimentação éa primeira parte da arte, arte indicadora, ou que deve tirar as primeiras experiências, seja o índice de novas experiências, seja o índice de verdades gerais, e tornar-se assim o novo instrumento (Novum Organum) da natureza ou a arte de interpretar.
A experiência pode tomar várias formas como Bacon mostra no De Dignitate et Augmentos Scientiarum(14). Mas não iremos abordar essa questão para não fugirmos à linha traçada para o nosso trabalho.
Pela experiência é preciso buscar a luz em vez do sucesso, e saber que a experiência que não tem êxito não é sempre a menos útil.
Quando os factos particulares forem assim recolhidos regularmente, poderíamos descobrir mais que uma coisa útil, sem passar por intermédio de uma generalização sucessiva, para tornar a descer daí às operações da ciência activa.
Mas é melhor caminhar assim, é melhor subir e depois descer. A escada das preposições vai dos axiomas ínfimos aos axiomas supremos. Os primeiros diferem pouco da experiência nua; os segundos são noções abstractas e gerais sem solidez. Entre estes dois extremos são estes axiomas médios, estas verdades sólidas e vivas, donde depende todas as coisas humanas e o sucesso da humanidade. Depois disto os extremos generalizados; agora sim, dotadas que elas não sejam de livres abstrações e que elas sejam retidas na verdade e limitadas pelas preposições médias.
Uma nova espécie de indução é a imaginar(15) não a que procede por enumeração, ela é puéril e as suas conclusões são precárias. Aquela que servirá à invenção e à demonstração das ciências dividirá a natureza por uma exclusão legítima de tudo o que deve ser rejeitado da ordem dos factos que se estuda, pois um número suficiente de factos negativos, concluirá sobre os afirmativos. Este método não foi ainda tentado, se não foi só por Platão que, no exame das definições e das ideias, emprega num certo grau este tipo de indução.
À medida que a indução dá origem a proposições gerais, épreciso metê-las à prova e verificar se elas ultrapassam a esfera dos factos sobre os quais elas se apoiam, e no caso afirmativo, assegurar que elas indicam, com certeza novas verdades.
Eis que chega para dar a ideia da parte destrutiva da nova lógica, (também não temos grande formação lógica para prosseguirmos mais profundamente o nosso exame) mostrando tudo o que ela deve substituir; pois trata-se duma lógica, e não de uma filosofia. Não iremos apresentar tudo o que Bacon responde às possíveis objecções que poderiam turvar a sua confiança mas um único ponto, que é fundamental não será omitido. Uma dúvida pode produzir-se: o método indicado convém unicamente à filosofia natural? Não, aplica-se igualmente às outras ciências, às ciências lógicas, éticas, políticas. A lógica vulgar não regulou todas as coisas pelo silogismo? A nova que procede pela indução abarca tudo. Bacon entendeu dar ao seu método indutivo a novidade e a certeza por isso não ficou por vagas recordações.(16) Os seus intérpretes não mostraram talvez a que condições, por que meios, acreditou confiar neste duplo objecto: o seu sistema, no que tem de técnico, poderia ser mais original em relação ao que eles dele pensaram. Mas não afirmarei o que ele tem de técnico e de original tendo antes de valor e de eficácia que Bacon lhe imaginava.
Neste momento seria necessário introduzir novos dados nomeadamente a definição e o tratamento que Bacon dá de metafísica e o seu conceito de forma, conceito aliás importante mas que daremos um tratamento introdutório e portanto reduzido. Em síntese esta ideia de forma é tirada da causa formal de Aristóteles mas em que Bacon aplica uma interpretação diferente. As outras três causas aristotélicas a saber, causa material, eficiente e final são simplesmente negligenciadas. Em síntese na linguagem de Bacon (e de maneira diferente dos escolásticos em que a forma está no objecto e é a verdadeira diferença) a forma ou a verdadeira diferença é a natura naturante o que produz a natureza fenomenal a fonte de emanação donde provem o que é o objecto de experiência. É a essência mesma da coisa, a causa emanente do fenómeno que o realismo de Bacon coloca como qualquer coisa de efectivo na natureza. Das quatro causas, a eficiente e a material nada têm de estável; elas mudam em todos os objectos. A causa final engana a ciência. Mas a causa formal é a unidade nas matérias diferentes, o princípio estável no que varia. É claro que na natureza só existe corpos individuais produzindo actos, mas eles são produzidos segundo uma lei; e esta lei é o objecto da ciência, é a ela que chamamos (quer dizer a que Bacon chama) causa formal em que as outras causas não são que os veículos.
Depois da metafísica ter encontrado a causa formal, e a física as causas eficiente e material, a inyterpretação da natureza não terá mais que tirar da experiência, axiomas ou verdades gerais, e destas verdades novas experiências. É aqui que se encontra a garantia da certeza do método. Das duas operações que a constituem, só a primeira que serve de fundamento à outra, é estudada no Novum Organum. Reclama o concurso do sentido, da memória e da razão. Bacon explica como o sentido e a memória se devem unir para formar um reportório de história natural lembrando-se sempre da regra: nada imaginar, nada supor, mas descobrir ou encontrar o que a natureza faz ou experimenta. Depois o papel da razão começa. É o que nos interessa. Épropriamente o papel da indução. Em que consiste o procedimento pela indução? Quais são os auxiliares da indução?
Para explicar estas interrogações Bacon vai tomar um exemplo, a procura da forma do calor, diremos antes hoje, da natureza do calor. Todo o itinerário é explicado por Bacon através duma via metódica. Não iremos tratar deste assunto mas queremos só focar a seguinte questão: toda a linguagem utilizada por Bacon parece cheia de abstrações realizadas; é verdade, mas o que passou ao longo da história da ciência? À questão: o que é o calor? respondeu-se sucessivamente que era uma abstracção, um fluido, um agente, um princípio, uma propriedade, um fenómeno, uma causa de fenómenos, etc.(17)
Os inúmeros exemplos que Bacon vai em seguida dar mostram um conjunto de conhecimentos variados e uma certa sagacidade na escolha e na disposição das experiências. Os sábios não leriam sem interesse todos estes programas de pesquisas e admirar-se-iam com razão que o homem que os indicou não realizou nenhum.
4. Algumas Considerações Finais
Ficamos aqui nestes cálculos sobre a filosofia de Bacon que não é mais que um extrato da Instauratio Magna. Mas todas as ideias do autor são desenvolvidas ou indicadas nesta vasta obra inacabada. As outras quatro partes anunciadas da Instauratio Magna foram somente enunciadas. Mas a única verdadeiramente a lamentar e que falta totalmente é a sexta, ou essa filosofia segunda, que devia ser o quadro do saber e do poder do homem.
Isto não quer dizer que não possamos encontrar aqui ou ali na obra de Bacon clarões brilhantes que foram por nós assinalados. Mas o que importa conhecer é a filosofia de Bacon, e não tanto as suas obras; é mesmo o espírito desta filosofia, mais que os seus desenvolvimentos acessórios e as suas aplicações últimas. Se a tomarmos literalmente e nas suas formas práticas, encontraremos sem dúvida a novidade. Quanto à certeza, o procedimento indicado não a dá, não é objecto de demonstração. Como meio de variar a experiência, de prolongar o exame e de moderar a indução, pode servir para melhor assegurar a validade das conclusões. Mas nenhuma regra é posta por Bacon e não poderia ser para nos guiar na escolha das concepções graduais pelas quais devemos chegar à concepção última da forma, e as coisas são abandonadas ao relance da razão humana. Bacon não rectificou ou mudou as noções recebidas que condena, ou estas concepções científicas das coisas sem as quais toda a pesquisa caminha pelo acaso. Assim objecto de receita segura, objecto de método infalível, e o pouco uso que se fez das formas técnicas de investigação que ele recomenda, torna a utilidade muito suspeita. Mas se quisermos negligenciar os detalhes pelo conjunto e contentar-mo-nos com uma panorâmica geral, reconheceremos nas páginas do Novum Organum a exposição ainda escolástica do método das ciências. Bacon enxertou a sua exigência experimental do aristotelismo e isso explica a sua pouca eficácia e o pouco efeito que a sua filosofia exerceu no desenvolvimento da ciência (falamos de ciência pela via dum Kepler e dum Galileu). O experimentalismo destes homens não podia ser enxertado no aristotelismo porque já era científico como o entendemos hoje em dia. O experimentalismo científico havia já encontrado a sua lógica própria e a sua capacidade de sistematização. Esta lógica era a matemática que significativamente Bacon não atribui nenhuma função eficaz na investigação científica. A doutrina de Bacon mantem-se ainda nos quadros da metafísica aristotélica e não podia desse modo fornecer à ciência um novo orgão de investigação. Apesar disso a grandeza de Bacon, merece ser referida pois reconheceu a íntima conexão entre a ciência e o poder humano e por ter sido o profeta da técnica, questões estas que constituem hoje em dia verdadeiros problemas e devido a eles põem em perigo o homem e a própria natureza.(18)
Notas:
(1) No panorama editorial português há duas obras a destacar pela sua importância: de César Figueiredo há duas obras a destacar pela sua importância: de César Figueiredo Frank Zappa - A Grande Mãe, col. Rock on 12, Fora do Texto/Centelha, Coimbra, 1988, e de António Filipe Marques, FranK Zappa - Antologia Poética, Assírio e Alvim, Lisboa, 1985.
(1) De Dignitate et Augmentis Scientiarum, II, II, 6. Também no Novum Organum, I, 96 se pode ler o seguinte:
"On ne trouve nulle part d'histoire naturelle parfaite pure. Toutes celles que nous avons sont infectées de préjugés et sophistiquées, savoir: dans l'école d'Aristote, par la logique; dans la première école de Platon, par la théologie naturelle; dans la seconde école du même philosophe, dans celles de Proclus et de quelques autres, par les mathématiques, science qui doit non engendrer, commencer la philosophie naturelle, mais seulement la terminer. Cependant avec une histoire naturelle pure et sans mélange nous devons attendre quelque chose de mieux."
(2) "Nous attachons fort peu de prix à toutes les inventions de ce genre, les regardant comme autant de pures suppositions et de conjectures aussi inutiles que hasardées. Au contraire notre ferme résolution est d'essayer si l'on ne pouvait pas asseoir sur des fondements plus solides la puissance et la grandeur de l'homme, et veuler les limites de son impire sur la nature. Uniquement occupé de se desein, quoique nous ayons nous-même, sur différents sujets, des observations, des expériences ou des découvertes qui nous semblent plus réelles et plus solides que toutes celles de ces esprits systématiques, et que nous avons rassemblées dans la cinquième partie de notre Restauration; cependant nous ne voulons hasarder aucune théorie générale et complète, persuadé qu'il n'est pas encore temps. D'ailleurs nous n'espérons pas que notre vie se prolongue assez pour nous laisser le temps d'achever la sixième partie, ou serait exposée la philosophie que nous aurions découverte, en suivant constamment la véritable méthode dans l'interprétation de la nature. Ce sera encore assez pour nous de nous rendre utile dans les parties intermediaires, d'y faire preuve d'une sage défiance de nous-même, et, en attendant, de jeter à la postérité, quelques semences de vérités plus pures, et de n'avoir épargné aucun soin pour ébaucher une aussi grande entreprise."
Nov. Org., I, 116, págs 68-69.
(3) Nov. Org., prefácio, págs. 1-6.
(4) "XIV. Le syllogisme est composé de propositions, les propositions le sont de mots, et les mots sont en quelque manière les étiquettes des choses. Que si les notions mêmes, qui sont comme la base de l'édifice, sont confuses et extraites des choses au hasard, tout ce qu'on bâtit ensuite sur un tel fondement ne peut avoir de solidité. Il ne reste donc d'espérence que dans la véritable induction."
Nov. Org., I. 14, págs. 8-9. Ver também os aforismos 15 a 18. Quando Bacon fala em noções quer com isso significar os factos conhecidos por exemplo as dilatações à razão da temperatura que é diferente das axiomata como Bacon chama às leis ou preposições indutivas, por exemplo: os corpos são dilatáveis pelo calor.
(5)"Que les hommes conçoivent donc une fois (et c'est ce que nous avons déjà dit) quelle différence infinie se trouve entre les fantômes de l'entendement humain et les idées de l'entendement divin. Les premiers ne sont autre chose que des abstractions purement arbitraires; au lieu que les dernières sont les vrais caractères du Créateur de toutes choses, tels qu'il les a gravés et determinés dans la matière, en lignes vraies, correctes et déliées. Ainsi, en ce genre comme en tant d'autres, la vérité et l'utilité ne sont qu'une seule et même chose; et si l'exécution, la pratique doit être plus estimée que la simple speculation, ce n'est pas en tant que ces utiles applications de la théorie sont comme autant de gages ou de garants de la vérité."
Nov. Org., I, 124, pág. 76.
Os ídolos são as imagens mais ou menos arbitrárias ou gratuitas que o entendimento forja das coisas. As ideias, termo quase platónico neste sentido, são aqui as essências das coisas, tais como as podemos supor concebidas no plano do criador.
(6) Nov. Org., I, 26-63, págs. 11-25.
(7) As sombras que os homens vêm na muralha da famosa caverna de Platão, são com efeito chamadas por ele próprio .Rép., VII, 516.
(8) É a associação de ideias.
(9) Quer dizer que em lugar de parar perante a sua própria impotência, impotentia mentis, ergue em lei o que esta mesma impotência lhe sugere. Assim um limite do mundo é inconcebível. O espírito passa ao lado, o mesmo para a eternidade, a divisibilidade, etc.
Nov. Org., I, 48, págs. 16-17.
(10)O que os modernos chamaram realizar abstrações.
"L'entendement humain, en vertu de sa nature propre, est porté aux abstractions; il est enclin à regarder comme constant et immuable ce qui n'est que passager."
Nov. Org., I, 51, pág. 18.
(11)Nov. Org., I, 92, 93, pág. 54-55.
(12)"... notre unique espérance est dans la régénération des sciences, c'est-a-dire qu'il faut les recomposer et les tirer de l'experience avec un ordre fixe et bien marqué. Or que d'autres mortels aient exécuté une telle entreprise ou y aient même pensé, c'est ce que personne, je crois, n'oserais assurer."
Nov. Org., I, 97, págs. 57-58.
(13)Nov. Org., I, 70, págs. 31-33.
(14)Ver a este propósito De Augm., V, II, págs. 224-240.
(15)"Lorsqu'il s'agit d'établir un axiome, il faut employer une forme d'induction tout autre que celle qui a été jusqu'ici en usage; et cela non-seulement pour découvrir et démontrer ce qu'on nomme communément les principes, mais pour établir aussi les axiomes du dernier ordre et les axiomes moyens: tous, en un mot. Car cette sorte d'induction qui procède par voie de simple énnumération n'est qu'une méthode d'enfants, qui ne mène qu'à des conclusions précaires, et qui court les plus grands risques de la part du premier exemple contradictoire qui peut se présenter; en général, elle prononce d'après un trop petit nombre de faits, et seulement de cette sorte de faits qu'on rencontre à chaque instant. Mais l'induction vraiment utile dans l'invention ou la démonstration des sciences et des arts fait un choix parmi les observations et les expériences, dégageant de la masse, par des exclusions et des rejections convenables, les faits non concluants; puis, aprés avoir établi un nombre suffisant de propositions, elle s'arrête enfin aux affirmatives et s'en tient à ces dernières. Or, c'est ce qui n'a point encore été fait ni même tenté; si ce n'est peut-être par le seul Platon, qui, pour analyser et vérifier les définitions et les idées, emploie jusqu'à un certain point cette induction. Mais pour qu'on tire de cette dernière forme d'induction ou de démonstration une science bonne et légitime, nous serons obligé de recourir à beaucoup de moyens dont aucun mortel ne s'est encore avisé; en sorte qu'elle exige encore plus de peine et de soins qu'on n'en a pris relativement au syllogisme. Or, cette même induction, ce n'est pas seulement pour découvrir ou démontrer les axiomes qu'il faut y avoir recours, mais encore pour déterminer les notions; et c'est assurément sur cette induction que se fondent nos plus grands espérances."
Nov. Org., I, 105, págs. 61-62.
(16)"Or ce n'est pas assez de rassembler un plus grand nombre d'expériences, et de les choisir avec plus de soin qu'on ne l'a fait jusqu'ici; il faut encore suivre une tout autre méthode, un tout autre ordre, une tout autre marche pour continuer ces observations et les multiplier. Car l'experience vague, et qui n'a d'autre guide qu'elle-même, n'est qu'un pur tâtonnement, et sert plutôt à étonner les hommes qu'à les éclairer; mais lorsqu'elle ne marchera plus qu'à la lumière d'une méthode sûre et fixe, par degrés et pour ainsi dire pas à pas, ce sera alors véritablement qu'on pourra espérer de faire d'útiles découvertes."
Nov. Org., I 100, págs. 59-60.
(17)Para ver o que Bacon diz ver Nov. Org., II, 20, págs. 118-124.
(18)Não queríamos terminar sem relembrar as palavras de Gérard ESCART.
"Avec lui, la science cesse d'être contemplative pour devenir active et operátive. Il réhabilite l'experience devant les doctes de cabinet. Il en fait une tâche et l'anime d'une passion. Son enthousiasme est contagieux, et il crée par lá même une éthique de la recherche. Il ouvre de nouveaux horizons et fait du savant un aventurier. Il donne un statut - tant pis si ce n'est pas le nôtre - à l'instrument, à la machine, au laboratoire, et aussi un lustre à l'experimentateur. Il clame qu'il faut aller aux choses pour qu'elles se révèlent. ... Cela on l'a dit cent fois, mais ce que l'on n'a pas dit assez, c'est que s'il n'a pas fais la science il l'a rendue possible."
Gérard ESCART - Bacon, PUF, Paris, 1968, pág. 61.
BACON, Francis - Novum Organum, prefácio, Traduction par M.F. RIAUX, Vol. 2, Charpentier, Libraire - Éditeur, Paris, 1845, pág. 1. (sublinhados meus).
"I. O homem, intérprete e ministro da natureza, estende os seus conhecimentos e a sua acção à medida que descobre a ordem natural das coisas, seja pela observação, seja pela reflexão; não sabe e não pode saber mais nada."
BACON, Francis - Novum Organum, liv. I, 1, pág. 7. (sublinhados meus)
"Assim, o fim da verdadeira ciência estando bem determinado, é preciso passar aos preceitos, e isso sem enevoar nem derrubar a ordem natural. Ora, as indicações que nos devem dirigir na interpretação da natureza compreendem duas partes. O fim da primeira é deduzir ou extrair da experiência os axiomas, e o da segunda deduzir e fazer derivar desses axiomas novas experiências. A primeira parte subdividindo-se noutras três, que podemos ver como três espécies, a saber: serviço para os sentidos, serviço para a memória, e serviço para a razão."
"Assim, em terceiro lugar, é preciso fazer uso do verdadeiro método indutivo, que é a chave da interpretação."
BACON, Francis - Novun Organum, liv. II, 10, págs. 91-92. (sublinhados meus).
"Para KOYRÉ, para BRUNSCHVICG, para a história das ciências e da epistemologia, a sentença é dura. Profeta se queremos, mas do passado.
BACON não compreendeu nada das matemáticas, desdenha a física da medida e da precisão, pensa que ela é qualitativa no momento que ela deixa de o ser. Faz uma amálgama confusa de considerações audaciosas. Nenhuma lei, nenhuma experiência, nenhum teorema, nenhuma demonstração trazem o seu nome.
Teórico da experiência, não faz a experiência da sua teoria."
ESCAT, Gérard - Bacon, PUF., Paris, 1968, págs. 21-22.
1. Pequena Introdução ao Problema - O Carácter da Filosofia de Bacon.
Não há nada mais vasto como o campo onde se meteu o pensamento de Bacon. A sua obra tem qualquer coisa de enciclopédico, e parece-nos desde o primeiro momento que a sua filosofia tem como limites o do saber humano. Assim, quando a queremos definir, experimentamos algumas dificuldades e não sabemos qual nome lhe havemos de dar. Somos mesmo conduzidos a perguntar se é mesmo uma filosofia, e se a devemos chamar como tal. O seu olhar estendeu-se sobre as ciências em geral; o seu desenvolvimento e o seu propósito fixaram incessantemente a sua atenção; apesar disso não doutrinou sobre nenhuma e não se instruiu sobre todas. O que é que ele fez? É a esta pergunta que pretendemos responder. Poderíamos começar por dizer que Bacon se apresenta como um mensageiro em que o seu clarão pacífico chamou os homens a unirem-se para caminharem juntos à descoberta da natureza. Por um lado é uma proposta científica que Bacon faz mas é também uma proposta ética. Na época de Bacon a filosofia escolástica já no seu declínio compreendia ainda uma ciência de Deus, do homem e da natureza. Tal era o império onde se começava a fazer ouvir desde o princípio do século as palavras da mudança. Bacon pode percorrer as diversas partes dum tão grande domínio sem se apropriar de nenhuma. Sobre a divindade, sobre a alma humana, diz algumas palavras, mas não pensa que a ciência esteja reduzida a calar-se. Quanto à lógica propriamente dita, não acrescenta nada àquela que ensinavam antes dele mas não deixa de falar duma filosofia natural expressão esta que deveria tornar-se clássica no seu país. "Concebo, diz ele, uma filosofia natural que em lugar de se perder na fumarada das subtis e sublimes especulações, trabalhe eficazmente a aliviar os males da vida humana".(1) É aliás sob este nome que incluiu o conjunto das ciências físicas. Foram elas de quem Bacon celebrizou particularmente a dignidade original e a grandeza futura, dinitas et augmenta; é a elas que dizem respeito numerosos ensaios que provam pelo menos uma sábia curiosidade. Mas não são os verdadeiros monumentos do seu elogio. Considerando a filosofia na sua história, ou para melhor dizer nos seus resultados, Bacon observou que a título de ciência universal ou de ciência das ciências, a filosofia tinha levado o espírito humano a medíocres resultados e nos últimos séculos não tinha conseguido realizar nenhuma grande descoberta, Julgando a árvore pelos frutos, como vulgarmente se costuma dizer, Bacon empreendeu a crítica da própria arte de saber, quer dizer da arte de descobrir; cedo viu manifestar-se a causa duma longa impotência e condenando a arte ensinada até ele e que não era outra senão a lógica do silogismo, concluiu da necessidade dum novo método que julgou encontrar numa lógica de indução. Assim as ciências são uma filosofia da natureza, e a filosofia de Bacon é uma filosofia das ciências. Mas quais são os limites da filosofia das ciências? Poderemos prolongá-los para lá da linha onde Bacon parou e fazer parecer desta maneira, a sua doutrina insuficiente. Mas o próprio Bacon declara que não produz uma teoria completa, universal.(2)
Não nos é permitido reclamar de Bacon o que ele não prometeu, nem opor-lhe exigências que não eram as do seu tempo. Necessário é para julgar bem a sua filosofia, circunscrevê-la no círculo das suas intenções. Poderíamos dizer que o objectivo de Bacon é sobretudo descobrir as origens escondidas dos nossos erros; o que ele melhor conheceu do espírito humano foram as suas fraquezas. Não podemos atribuir-lhe a honra de ter pensado como Aobbes, Locke ou Descartes ou ainda como os grandes homens de ciência do século XVI e XVII mas Bacon precedeu-os e fê-los pensar e por isso não deixa de ter o seu lugar na história do pensamento ocidental. Um último aditamento: é certo que pela predominância dos métodos experimentais Bacon empurrou o espírito humano para as ciências de observação externa em prejuízo das que tratam das coisas invisíveis. Previu a importância da psicologia, mas não a aprofundou e privou a sua doutrina de sólidos fundamentos filosóficos. Mas ela não resta menos verdadeira no seu conjunto, providenciando-se que a encaremos unicamente como um método geral das ciências que é aliás o objectivo do nosso trabalho.
2. O Conceito de Ciência e a Teoria dos Ídola
O novo método de interpretação da natureza está exposto como sabemos no Novum Organum que é uma tentativa de Bacon de superar os estudos de Aristóteles reunidos com o título de Organon.
Nas ciências, há duas coisas, o testemunho dos sentidos e o trabalho da inteligência. Mas estas duas coisas não estão unidas. O trabalho da inteligência é justaposto a não combinado às percepções dos sentidos. Estas são recolhidas sem ordem nem claridade, e aquela não tem qualquer base. Os dialécticos aperceberam-se desta solução de continuidade, e pensaram encontrar na sua arte um meio da remediar. Mas a dialéctica, tal como prevaleceu durante tanto tempo, parecia mais própria a consagrar o erro que a descobrir a verdade. Toda a obra teria que ser feita de novo, Uma única ideia restava de pé, é que o espírito do homem, mais que toda outra força, não podia passar de instrumento. É preciso representar a ciência como um obelisco que não poderia ser levantado por um só homem nem por um conjunto de homens se não se armassem de cordas e se não coordenassem os seus esforços e não seguissem a mesma direcção.(3)
Trata-se de encontrar ou de restabelecer a união das percepções à inteligência. O homem é o ministro e o intérprete da natureza, e não opera a nada compreende enquanto não observar em acto ou em ideia a ordem da natureza. Doutra maneira ele não sabe nem nada pode. Só a mão ou só o espírito não têm poder; é preciso instrumentos e suportes. A ciência e o poder do homem coincidem num ponto, pois se ele ignora a causa, o efeito escapa ao seu poderio.
Como ele não supera a natureza a não ser cedendo-lhe, o que é a causa para ele na especulação torna-se na obra princípio de acção. A sua acção sobre a natureza transforma-se em movimento; tudo o resto passa-se no interior dos corpos. O que faz o mecânico, o médico, o alquimista, quando opera? Faz a aliança com a natureza. Mas fraco foi o esforço e escasso o sucesso, acaba por concluir Bacon. Do que nada foi conseguido, é necessário concluir, não que nada seja possível, mas que nada é possível pelas vias que se seguiram. Nem as ciências parecem úteis para descobrir os procedimentos da arte nem a lógica para descobrir as ciências. O silogismo compõe-se de proposições, e as proposições de palavras. As palavras não são mais que as etiquetas das noções. Mas se as noções são formadas ao acaso a base desmorona-se. A única esperança está na indução verdadeira.(4) O pouco que se inventou salientava-se das noções mais vulgares. Para penetrar profundamente nos segredos da natureza, é preciso que as noções e as leis sejam tiradas das coisas, sejam abstraídas das coisas por uma via segura e regular. Duas vias se apresentam; Por uma, partimos das sensações e dos factos particulares aos axiomas mais gerais. Em seguida destes princípios e da sua verdade tomada como imutável, o juízo chega à invenção das proposições médias. Pela outra via, provoca-se os axiomas do seio da sensação e dos factos particulares, subindo gradualmente e sem interrupção, para atingir assim do ponto menos elevado a altura das proposições mais gerais. Esta última via é a verdadeira, que nunca nimguém tentou. Os dois métodos têm este ponto em comum; partem dos sentidos e do particular para pararem no mais geral; mas diferem imenso porque o primeiro não faz mais que aflorar o sensível e o particular, enquanto que o segundo ao sensível e ao particular se une observando com ordem e seguindo regras precisas. Também, enquanto que desde o início o primeiro põe inúteis generalidades, as quais o segundo método se eleva por degraus constituindo os mais efectivos conhecimentos da natureza. Há entre os ídolos do espírito humano e as ideias do espírito divino(5) a distância que separa fantasias vazias de verdadeiros caracteres ou das marcas reais que se descobrem na criação.
A subtilidade da natureza ultrapassa bem a atenção quer dos sentidos quer do entendimento. Do mesmo modo, os axiomas construídos pela argumentação puramente argumentativa são sem valor, enquanto que os que foram regularmente formados indicam e definem de algum modo novos factos particulares. Levando a descobertas ulteriores, tornam as ciências activas.
A verdade dos axiomas medem-se pela extensão das suas bases empíricas. Se uma fraca e curta experiência os produziu, não rendem nada de descobertas novas. O primeiro caso imprevisto abala-as. Tenta-se para as salvar algumas fúteis distinções, quando faríamos melhor em recomeçar; pois a própria experiência não deve ser deixada ao acaso. A errada experiência nas regras, levou o homem atento unicamente aos fenómenos mais familiares, a ter a imaginação bloqueada, e o seu entendimento pronto a concluir e em tirar certas visões gerais que excedem a natureza em vez da seguir. Estas antecipações, tiveram o seu lugar de interpretação, e não tiveram facilidade em encontrar crédito. A antecipação pode ser de bom uso nas ciências fundadas em opiniões. Pode, ajudando a dialéctica, submeter os espíritos; mas que pode ela sobre as coisas? Quando tentamos com algum golpe completar uma ciência assim formada, quando se ensaia rectificar os axiomas por uma super-indução, quando procedemos por adições tardias, não saímos do mesmo círculo. É melhor tomarmos tudo de novo do que ficar numa via semeada de obstáculos e deixar a inteligência obstruída de antigos erros.
Estas falsas noções que se apoderaram do espírito humano e que reaparecem na regeneração das ciências, se elas não são extripadas nas suas raízes, são o que Bacon chamou de ídolos ou idola. Estabelece quatro cujos nomes são célebres.(6) Os ídolos são para a ciência da interpretação da natureza o que os sofismas são para a dialéctica vulgar.
A humanidade é desta feita mais impressionada com o afirmativo que o negativo, e procura em toda a coisa de constante e de permanente, negligenciar a excepção e tudo o que possa perturbar a sua certeza. A alma, substância igual e uniforme, pretende a igualdade e a uniformidade, e supõe que na natureza não há mais nada. A sua tendência puxa para as abstracções, coisas fugitivas que ergeu em coisas estáveis. Daí estas regras gerais que ela com prontidão constroi, e às quais pretende submeter os fenómenos. Crê-se falsamente que o sentido é a verdadeira medida das coisas; não se vê que as percepções tanto dos sentidos como do espírito são mais relativas ao homem que ao universo. O entendimento emiscui a sua própria natureza na natureza das coisas; é um espelho que desvia e contorna os raios que esta lhe envia. Esta confiança irreflectida em si próprio, esta idolatria do seu próprio juízo é o primeiro erro da natureza humana. Daí os erros da nossa espécie, os ídolos da tribo, idola tribus. Cada um acrescenta os seus erros individuais. Cada um tem a sua constituição particular, e seguindo a ordem e a natureza das suas impressões, seguindo a sua educação, as suas relações, os seus estudos, o homem está como fechado numa certa cerca donde ele olha tudo o resto. Se os homens vivem como o quer Platão, numa caverna em que eles só apercebem as imagens das coisas, cada um tem a sua caverna; e os erros próprios a cada indivíduo podem ser chamados ídolos da caverna, idola specus.(7)
Nas nossas opiniões entram muitas convenções. É o vulgar que rege a significação das palavras. Os homens introduziram no comércio uma certa massa de ideias que estão longe de serem exactas e correctas. A linguagem recebida semeia o erro nas sociedades humanas. Estes erros do lugar público são idola fori.
As palavras servem para forjar erros, mas o vulgar não está só a fabricar palavras e erros. Os filósofos põem princípios, ajustam teorias, consagram expressões, às quais o espírito se agarra e se sujeita, verdadeiros papeis que o discípulo recita depois de os ter aprendido. Como as fábulas que acabam por ter mais lugar no espírito que os relatos históricos, estas ficções acabam por tornar-se erros poderosos. São os ídolos do teatro, idola theatri.
Tal é a classificação singular mais justa, onde Bacon precedeu todas as críticas do espírito humano nas quais os modernos foram os melhores; e talvez julguemos que ele enfraqueceu o papel da matéria, assinalando numa linguagem mais simples as sete causas de erro. Aqui estão elas;
- O espírito humano está enclinado a supor nas coisas a ordem e a simetria.
- O espírito humano está enclinado a investir duma autoridade inviolável as opiniões que lhe agradam.
- O espírito humano é tocado sobretudo pelas coisas que o impressionam pelo acaso e simultaniedade.(8)
- O espírito humano vai por ele próprio; não pára e procura o infinito.(9)
- O espírito humano não é uma vista pura e simples das coisas; as afeições e as vontades turvam-no.
- O espírito humano é enganado pela rudeza e as ilusões dos sentidos.
- O espírito humano é levado pela sua natureza às abstrações, e imagina permanente o que é passageiro.(10)
Todas estas causas de erro, não tiveram mais lugar que na filosofia. Bacon retrata a grandes traços a sua história, e sob as suas três formas, sofística, empírica ou supersticiosa, a ciência parece-lhe ter feito um falso caminho. É só há pouco tempo que o espírito humano se mostrou mais indulgente para com o seu passado. Tudo o que se disse de verdadeiro, de especial e de exagerado contra esse passado, se encontra em Bacon que disse antes de todos, particularmente nas últimas dezenas de páginas do primeiro livro do Novum Organum.
O quadro que traça entritece-o até ao desânimo. "Mas, diz ele, permite-nos exprimir as nossas conjecturas que nos rendem a esperança. Assim Cristovão Colombo, antes da sua maravilhosa viagem através do mar Atlântico, produziu as razões da sua confiança na descoberta de novas terras e de outros continentes desconhecidos antes dele. E essas razões antes rejeitadas, depois confirmadas pela experiência, tornaram-se a fonte e os começos de grandes coisas. Que em Deus esteja a primeira esperança. Ele épor sua vez o autor do Bem e dos homens. Ele é o arquétipo das ciências. A profecia de Daniel: Multipertransibunt et multiplex crit scientia, anuncia que o mesmo século verá aumentar o mundo pela navegação, e as ciências pelos seus progressos.(11)
3. O Novo Instrumento da Interpretação da Natureza
Só há esperança numa regeneração das ciências. Os erros cometidos são eles próprios ensinamentos. Todos os que cultivaram as ciências foram ou empíricos ou dogmáticos. É preciso unir por laços mais fortes e estreitos a experiência e a razão.(12)
Aristoteles, tão rico em recursos, colecionador dos factos, quando escreve a história dos animais, não é mais o mesmo, quando se propõe fabricar uma filosofia. É preciso seguir o seu exemplo como naturalista, fazer suceder à experiência vaga que as artes mecânicas se contentam, a arte de recolher os factos e de formas como que vastos viveiros. Os factos bem ordenados, bem dirigidos, tornar-se-ão o ponto de apoio duma lenta e sucessiva generalização.
Investigar a natureza duma coisa na coisa mesma tomada isoladamente é um trabalho inútil: é preciso que a procura se estenda e se enriqueça pelo exame das coisas comparáveis.(13) Sensações fortuitas, observações desligadas, uma experimentação sem regra não são e não dão a ciência. As experiências não têm preço enquanto que elas servem de fundamento à filosofia; épreciso que elas sejam mais instrutivas que úteis, que elas dêem luzes em vez de frutos. O fruto que elas trazem é somente um signo da verdade da descoberta. Assim antes de ousar interpretar a natureza, é preciso a experiência, mas a experiência científica, experientia litterata. Um método de experimentação éa primeira parte da arte, arte indicadora, ou que deve tirar as primeiras experiências, seja o índice de novas experiências, seja o índice de verdades gerais, e tornar-se assim o novo instrumento (Novum Organum) da natureza ou a arte de interpretar.
A experiência pode tomar várias formas como Bacon mostra no De Dignitate et Augmentos Scientiarum(14). Mas não iremos abordar essa questão para não fugirmos à linha traçada para o nosso trabalho.
Pela experiência é preciso buscar a luz em vez do sucesso, e saber que a experiência que não tem êxito não é sempre a menos útil.
Quando os factos particulares forem assim recolhidos regularmente, poderíamos descobrir mais que uma coisa útil, sem passar por intermédio de uma generalização sucessiva, para tornar a descer daí às operações da ciência activa.
Mas é melhor caminhar assim, é melhor subir e depois descer. A escada das preposições vai dos axiomas ínfimos aos axiomas supremos. Os primeiros diferem pouco da experiência nua; os segundos são noções abstractas e gerais sem solidez. Entre estes dois extremos são estes axiomas médios, estas verdades sólidas e vivas, donde depende todas as coisas humanas e o sucesso da humanidade. Depois disto os extremos generalizados; agora sim, dotadas que elas não sejam de livres abstrações e que elas sejam retidas na verdade e limitadas pelas preposições médias.
Uma nova espécie de indução é a imaginar(15) não a que procede por enumeração, ela é puéril e as suas conclusões são precárias. Aquela que servirá à invenção e à demonstração das ciências dividirá a natureza por uma exclusão legítima de tudo o que deve ser rejeitado da ordem dos factos que se estuda, pois um número suficiente de factos negativos, concluirá sobre os afirmativos. Este método não foi ainda tentado, se não foi só por Platão que, no exame das definições e das ideias, emprega num certo grau este tipo de indução.
À medida que a indução dá origem a proposições gerais, épreciso metê-las à prova e verificar se elas ultrapassam a esfera dos factos sobre os quais elas se apoiam, e no caso afirmativo, assegurar que elas indicam, com certeza novas verdades.
Eis que chega para dar a ideia da parte destrutiva da nova lógica, (também não temos grande formação lógica para prosseguirmos mais profundamente o nosso exame) mostrando tudo o que ela deve substituir; pois trata-se duma lógica, e não de uma filosofia. Não iremos apresentar tudo o que Bacon responde às possíveis objecções que poderiam turvar a sua confiança mas um único ponto, que é fundamental não será omitido. Uma dúvida pode produzir-se: o método indicado convém unicamente à filosofia natural? Não, aplica-se igualmente às outras ciências, às ciências lógicas, éticas, políticas. A lógica vulgar não regulou todas as coisas pelo silogismo? A nova que procede pela indução abarca tudo. Bacon entendeu dar ao seu método indutivo a novidade e a certeza por isso não ficou por vagas recordações.(16) Os seus intérpretes não mostraram talvez a que condições, por que meios, acreditou confiar neste duplo objecto: o seu sistema, no que tem de técnico, poderia ser mais original em relação ao que eles dele pensaram. Mas não afirmarei o que ele tem de técnico e de original tendo antes de valor e de eficácia que Bacon lhe imaginava.
Neste momento seria necessário introduzir novos dados nomeadamente a definição e o tratamento que Bacon dá de metafísica e o seu conceito de forma, conceito aliás importante mas que daremos um tratamento introdutório e portanto reduzido. Em síntese esta ideia de forma é tirada da causa formal de Aristóteles mas em que Bacon aplica uma interpretação diferente. As outras três causas aristotélicas a saber, causa material, eficiente e final são simplesmente negligenciadas. Em síntese na linguagem de Bacon (e de maneira diferente dos escolásticos em que a forma está no objecto e é a verdadeira diferença) a forma ou a verdadeira diferença é a natura naturante o que produz a natureza fenomenal a fonte de emanação donde provem o que é o objecto de experiência. É a essência mesma da coisa, a causa emanente do fenómeno que o realismo de Bacon coloca como qualquer coisa de efectivo na natureza. Das quatro causas, a eficiente e a material nada têm de estável; elas mudam em todos os objectos. A causa final engana a ciência. Mas a causa formal é a unidade nas matérias diferentes, o princípio estável no que varia. É claro que na natureza só existe corpos individuais produzindo actos, mas eles são produzidos segundo uma lei; e esta lei é o objecto da ciência, é a ela que chamamos (quer dizer a que Bacon chama) causa formal em que as outras causas não são que os veículos.
Depois da metafísica ter encontrado a causa formal, e a física as causas eficiente e material, a inyterpretação da natureza não terá mais que tirar da experiência, axiomas ou verdades gerais, e destas verdades novas experiências. É aqui que se encontra a garantia da certeza do método. Das duas operações que a constituem, só a primeira que serve de fundamento à outra, é estudada no Novum Organum. Reclama o concurso do sentido, da memória e da razão. Bacon explica como o sentido e a memória se devem unir para formar um reportório de história natural lembrando-se sempre da regra: nada imaginar, nada supor, mas descobrir ou encontrar o que a natureza faz ou experimenta. Depois o papel da razão começa. É o que nos interessa. Épropriamente o papel da indução. Em que consiste o procedimento pela indução? Quais são os auxiliares da indução?
Para explicar estas interrogações Bacon vai tomar um exemplo, a procura da forma do calor, diremos antes hoje, da natureza do calor. Todo o itinerário é explicado por Bacon através duma via metódica. Não iremos tratar deste assunto mas queremos só focar a seguinte questão: toda a linguagem utilizada por Bacon parece cheia de abstrações realizadas; é verdade, mas o que passou ao longo da história da ciência? À questão: o que é o calor? respondeu-se sucessivamente que era uma abstracção, um fluido, um agente, um princípio, uma propriedade, um fenómeno, uma causa de fenómenos, etc.(17)
Os inúmeros exemplos que Bacon vai em seguida dar mostram um conjunto de conhecimentos variados e uma certa sagacidade na escolha e na disposição das experiências. Os sábios não leriam sem interesse todos estes programas de pesquisas e admirar-se-iam com razão que o homem que os indicou não realizou nenhum.
4. Algumas Considerações Finais
Ficamos aqui nestes cálculos sobre a filosofia de Bacon que não é mais que um extrato da Instauratio Magna. Mas todas as ideias do autor são desenvolvidas ou indicadas nesta vasta obra inacabada. As outras quatro partes anunciadas da Instauratio Magna foram somente enunciadas. Mas a única verdadeiramente a lamentar e que falta totalmente é a sexta, ou essa filosofia segunda, que devia ser o quadro do saber e do poder do homem.
Isto não quer dizer que não possamos encontrar aqui ou ali na obra de Bacon clarões brilhantes que foram por nós assinalados. Mas o que importa conhecer é a filosofia de Bacon, e não tanto as suas obras; é mesmo o espírito desta filosofia, mais que os seus desenvolvimentos acessórios e as suas aplicações últimas. Se a tomarmos literalmente e nas suas formas práticas, encontraremos sem dúvida a novidade. Quanto à certeza, o procedimento indicado não a dá, não é objecto de demonstração. Como meio de variar a experiência, de prolongar o exame e de moderar a indução, pode servir para melhor assegurar a validade das conclusões. Mas nenhuma regra é posta por Bacon e não poderia ser para nos guiar na escolha das concepções graduais pelas quais devemos chegar à concepção última da forma, e as coisas são abandonadas ao relance da razão humana. Bacon não rectificou ou mudou as noções recebidas que condena, ou estas concepções científicas das coisas sem as quais toda a pesquisa caminha pelo acaso. Assim objecto de receita segura, objecto de método infalível, e o pouco uso que se fez das formas técnicas de investigação que ele recomenda, torna a utilidade muito suspeita. Mas se quisermos negligenciar os detalhes pelo conjunto e contentar-mo-nos com uma panorâmica geral, reconheceremos nas páginas do Novum Organum a exposição ainda escolástica do método das ciências. Bacon enxertou a sua exigência experimental do aristotelismo e isso explica a sua pouca eficácia e o pouco efeito que a sua filosofia exerceu no desenvolvimento da ciência (falamos de ciência pela via dum Kepler e dum Galileu). O experimentalismo destes homens não podia ser enxertado no aristotelismo porque já era científico como o entendemos hoje em dia. O experimentalismo científico havia já encontrado a sua lógica própria e a sua capacidade de sistematização. Esta lógica era a matemática que significativamente Bacon não atribui nenhuma função eficaz na investigação científica. A doutrina de Bacon mantem-se ainda nos quadros da metafísica aristotélica e não podia desse modo fornecer à ciência um novo orgão de investigação. Apesar disso a grandeza de Bacon, merece ser referida pois reconheceu a íntima conexão entre a ciência e o poder humano e por ter sido o profeta da técnica, questões estas que constituem hoje em dia verdadeiros problemas e devido a eles põem em perigo o homem e a própria natureza.(18)
Notas:
(1) No panorama editorial português há duas obras a destacar pela sua importância: de César Figueiredo há duas obras a destacar pela sua importância: de César Figueiredo Frank Zappa - A Grande Mãe, col. Rock on 12, Fora do Texto/Centelha, Coimbra, 1988, e de António Filipe Marques, FranK Zappa - Antologia Poética, Assírio e Alvim, Lisboa, 1985.
(1) De Dignitate et Augmentis Scientiarum, II, II, 6. Também no Novum Organum, I, 96 se pode ler o seguinte:
"On ne trouve nulle part d'histoire naturelle parfaite pure. Toutes celles que nous avons sont infectées de préjugés et sophistiquées, savoir: dans l'école d'Aristote, par la logique; dans la première école de Platon, par la théologie naturelle; dans la seconde école du même philosophe, dans celles de Proclus et de quelques autres, par les mathématiques, science qui doit non engendrer, commencer la philosophie naturelle, mais seulement la terminer. Cependant avec une histoire naturelle pure et sans mélange nous devons attendre quelque chose de mieux."
(2) "Nous attachons fort peu de prix à toutes les inventions de ce genre, les regardant comme autant de pures suppositions et de conjectures aussi inutiles que hasardées. Au contraire notre ferme résolution est d'essayer si l'on ne pouvait pas asseoir sur des fondements plus solides la puissance et la grandeur de l'homme, et veuler les limites de son impire sur la nature. Uniquement occupé de se desein, quoique nous ayons nous-même, sur différents sujets, des observations, des expériences ou des découvertes qui nous semblent plus réelles et plus solides que toutes celles de ces esprits systématiques, et que nous avons rassemblées dans la cinquième partie de notre Restauration; cependant nous ne voulons hasarder aucune théorie générale et complète, persuadé qu'il n'est pas encore temps. D'ailleurs nous n'espérons pas que notre vie se prolongue assez pour nous laisser le temps d'achever la sixième partie, ou serait exposée la philosophie que nous aurions découverte, en suivant constamment la véritable méthode dans l'interprétation de la nature. Ce sera encore assez pour nous de nous rendre utile dans les parties intermediaires, d'y faire preuve d'une sage défiance de nous-même, et, en attendant, de jeter à la postérité, quelques semences de vérités plus pures, et de n'avoir épargné aucun soin pour ébaucher une aussi grande entreprise."
Nov. Org., I, 116, págs 68-69.
(3) Nov. Org., prefácio, págs. 1-6.
(4) "XIV. Le syllogisme est composé de propositions, les propositions le sont de mots, et les mots sont en quelque manière les étiquettes des choses. Que si les notions mêmes, qui sont comme la base de l'édifice, sont confuses et extraites des choses au hasard, tout ce qu'on bâtit ensuite sur un tel fondement ne peut avoir de solidité. Il ne reste donc d'espérence que dans la véritable induction."
Nov. Org., I. 14, págs. 8-9. Ver também os aforismos 15 a 18. Quando Bacon fala em noções quer com isso significar os factos conhecidos por exemplo as dilatações à razão da temperatura que é diferente das axiomata como Bacon chama às leis ou preposições indutivas, por exemplo: os corpos são dilatáveis pelo calor.
(5)"Que les hommes conçoivent donc une fois (et c'est ce que nous avons déjà dit) quelle différence infinie se trouve entre les fantômes de l'entendement humain et les idées de l'entendement divin. Les premiers ne sont autre chose que des abstractions purement arbitraires; au lieu que les dernières sont les vrais caractères du Créateur de toutes choses, tels qu'il les a gravés et determinés dans la matière, en lignes vraies, correctes et déliées. Ainsi, en ce genre comme en tant d'autres, la vérité et l'utilité ne sont qu'une seule et même chose; et si l'exécution, la pratique doit être plus estimée que la simple speculation, ce n'est pas en tant que ces utiles applications de la théorie sont comme autant de gages ou de garants de la vérité."
Nov. Org., I, 124, pág. 76.
Os ídolos são as imagens mais ou menos arbitrárias ou gratuitas que o entendimento forja das coisas. As ideias, termo quase platónico neste sentido, são aqui as essências das coisas, tais como as podemos supor concebidas no plano do criador.
(6) Nov. Org., I, 26-63, págs. 11-25.
(7) As sombras que os homens vêm na muralha da famosa caverna de Platão, são com efeito chamadas por ele próprio .Rép., VII, 516.
(8) É a associação de ideias.
(9) Quer dizer que em lugar de parar perante a sua própria impotência, impotentia mentis, ergue em lei o que esta mesma impotência lhe sugere. Assim um limite do mundo é inconcebível. O espírito passa ao lado, o mesmo para a eternidade, a divisibilidade, etc.
Nov. Org., I, 48, págs. 16-17.
(10)O que os modernos chamaram realizar abstrações.
"L'entendement humain, en vertu de sa nature propre, est porté aux abstractions; il est enclin à regarder comme constant et immuable ce qui n'est que passager."
Nov. Org., I, 51, pág. 18.
(11)Nov. Org., I, 92, 93, pág. 54-55.
(12)"... notre unique espérance est dans la régénération des sciences, c'est-a-dire qu'il faut les recomposer et les tirer de l'experience avec un ordre fixe et bien marqué. Or que d'autres mortels aient exécuté une telle entreprise ou y aient même pensé, c'est ce que personne, je crois, n'oserais assurer."
Nov. Org., I, 97, págs. 57-58.
(13)Nov. Org., I, 70, págs. 31-33.
(14)Ver a este propósito De Augm., V, II, págs. 224-240.
(15)"Lorsqu'il s'agit d'établir un axiome, il faut employer une forme d'induction tout autre que celle qui a été jusqu'ici en usage; et cela non-seulement pour découvrir et démontrer ce qu'on nomme communément les principes, mais pour établir aussi les axiomes du dernier ordre et les axiomes moyens: tous, en un mot. Car cette sorte d'induction qui procède par voie de simple énnumération n'est qu'une méthode d'enfants, qui ne mène qu'à des conclusions précaires, et qui court les plus grands risques de la part du premier exemple contradictoire qui peut se présenter; en général, elle prononce d'après un trop petit nombre de faits, et seulement de cette sorte de faits qu'on rencontre à chaque instant. Mais l'induction vraiment utile dans l'invention ou la démonstration des sciences et des arts fait un choix parmi les observations et les expériences, dégageant de la masse, par des exclusions et des rejections convenables, les faits non concluants; puis, aprés avoir établi un nombre suffisant de propositions, elle s'arrête enfin aux affirmatives et s'en tient à ces dernières. Or, c'est ce qui n'a point encore été fait ni même tenté; si ce n'est peut-être par le seul Platon, qui, pour analyser et vérifier les définitions et les idées, emploie jusqu'à un certain point cette induction. Mais pour qu'on tire de cette dernière forme d'induction ou de démonstration une science bonne et légitime, nous serons obligé de recourir à beaucoup de moyens dont aucun mortel ne s'est encore avisé; en sorte qu'elle exige encore plus de peine et de soins qu'on n'en a pris relativement au syllogisme. Or, cette même induction, ce n'est pas seulement pour découvrir ou démontrer les axiomes qu'il faut y avoir recours, mais encore pour déterminer les notions; et c'est assurément sur cette induction que se fondent nos plus grands espérances."
Nov. Org., I, 105, págs. 61-62.
(16)"Or ce n'est pas assez de rassembler un plus grand nombre d'expériences, et de les choisir avec plus de soin qu'on ne l'a fait jusqu'ici; il faut encore suivre une tout autre méthode, un tout autre ordre, une tout autre marche pour continuer ces observations et les multiplier. Car l'experience vague, et qui n'a d'autre guide qu'elle-même, n'est qu'un pur tâtonnement, et sert plutôt à étonner les hommes qu'à les éclairer; mais lorsqu'elle ne marchera plus qu'à la lumière d'une méthode sûre et fixe, par degrés et pour ainsi dire pas à pas, ce sera alors véritablement qu'on pourra espérer de faire d'útiles découvertes."
Nov. Org., I 100, págs. 59-60.
(17)Para ver o que Bacon diz ver Nov. Org., II, 20, págs. 118-124.
(18)Não queríamos terminar sem relembrar as palavras de Gérard ESCART.
"Avec lui, la science cesse d'être contemplative pour devenir active et operátive. Il réhabilite l'experience devant les doctes de cabinet. Il en fait une tâche et l'anime d'une passion. Son enthousiasme est contagieux, et il crée par lá même une éthique de la recherche. Il ouvre de nouveaux horizons et fait du savant un aventurier. Il donne un statut - tant pis si ce n'est pas le nôtre - à l'instrument, à la machine, au laboratoire, et aussi un lustre à l'experimentateur. Il clame qu'il faut aller aux choses pour qu'elles se révèlent. ... Cela on l'a dit cent fois, mais ce que l'on n'a pas dit assez, c'est que s'il n'a pas fais la science il l'a rendue possible."
Gérard ESCART - Bacon, PUF, Paris, 1968, pág. 61.
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