segunda-feira, novembro 21, 2005

PODE O FEDERALISMO RESOLVER TODOS OS CONFLITOS?

Proponho-me aqui examinar o substrato filosófico da questão. Mas antes de tudo o que significa esta questão: “ Pode o Federalismo resolver todos os Conflitos?” O federalismo, lança de ferro da filosofia política proudhoniana, vê-se investido da função quase mágica de resolver o espinhoso problema da paz perpétua, ou numa linguagem marxista, de por um termo à luta de classes? Duma maneira geral, a preocupação de Proudhon é realmente de chegar a uma solução que põe definitivamente termo a todo o conflito, e por isso, parece, a toda a história? A procura duma finalidade meta-histórica é programaticamente inscrita no seu projecto político?
Tal parece ser o desígnio de Proudhon. Numa carta do maior interesse, Proudhon confessa a Guillaumin da sua intenção de encontrar o meio de instaurar uma “reconciliação universal”. Trata-se, escreve ele, de fundar um sistema filosófico que alcance “ a reconciliação universal pela contradição universal”. Este texto capital deixa entrever toda a dificuldade. Como, se a contradição é tão universal que a reconciliação, alcançar uma solução que as mantenha às duas. A “reconciliação universal” deve permitir de absorver a “contradição universal”, de a ultrapassar definitivamente, ou deve ela oferecer unicamente o instrumento para submeter a contradição, igualmente universal, sempre ressurgente? E com a “reconciliação universal”, não será ao mesmo tempo que todos os conflitos, todas as paixões que fazem o sal da vida humana que arriscam de desaparecer? “ A humanidade é antes de tudo passional!”, escreve Proudhon em 1858 na De la Justice, “ o que será da sua vida quando ela não terá mais príncipe para a levar para a guerra, nem padres para a assistir na sua piedade, nem grandes personagens para entreter a sua admiração, nem pérfidos nem pobres para excitar a sua sensibilidade, nem prostituídos para saciar a sua luxúria, nem palhaços para a fazer rir das suas cacafonias e das suas banalidades?”. O Estado federativo, sem principe, sem padres, sem prostituídos e sem palhaços, não risca de coincidir com a “planitude”, a “imobilidade” e o “não-ser” que fazem, segundo Proudhon, o ideal do sábio budista, e a supressão dos conflitos não será ela outra coisa que a “felicidade na morte e a quietude do túmulo?” Proudhon estaria altamente consciente da ambiguidade, que, como sabemos, escreveu: “ O que se torna, no seu sono eterno, o género humano?”. Podemos imaginar que Proudhon admite realmente o fim da história e a instauração duma paz que removesse todos os conflitos?
Procederemos em quatro tempos. Começaremos por apresentar a teoria proudhoniana da “contradição universal” e a da “reconciliação universal”, em seguida, na terceira parte, veremos como se opera o colocar no lugar do Estado federalista, enfim, veremos como a sua teoria federalista da “reconciliação universal” é considerada para evitar a armadilha do “sono eterno”.
Em 1846, Proudhon escreve ao seu amigo Tissot, o tradutor de Kant em françês: “ lendo as antinomias de Kant vi não a prova da fraqueza da nossa razão, nem um exemplo de subtileza dialéctica, mas uma verdadeira lei da natureza e do pensar”. É claro que fazendo das antinomias uma “lei da natureza e do pensar”, Proudhon não é fiel à terminologia kantiana e dá à “antinomia” uma acepção bastante mais alargada do que Kant. Não nos queixamos de Proudhon ter sido um mau filólogo. Não era certamente a sua vocação. O interesse deste texto reside no que Proudhon acredita ter encontrado em Kant. O que ele acredita ter encontrado é um antídoto a Hegel. O que Proudhon admira em Kant é a irredutibilidade dos termos da antinomia. Nenhuma síntese permite ultrapassar a oposição entre a tese e a antítese. A incapacidade da razão em decidir entre a tese e a antítese não é indício da fraqueza desta, é menos o produto dum puro jogo da especulação, reproduz a ordem mesma do real. A natureza e o pensar estão submetidos a uma mesma lei, a lei da oposição da antinomia que Proudhon coloca como fundamento da sua filosofia.
Se o termo de antinomia, à qual Proudhon permanecerá fiel, data das suas leituras de Kant, o princípio dialéctico deste modo designado estava bem presente antes de 1846 na obra de Proudhon. Esta “lei da natureza e do pensar”, Proudhon tinha-a chamado, alguns anos mais tarde na “Da Criação da Ordem na Humanidade”, a “lei serial”. “ Trata-se, explica ele, duma lei superior, lei da natureza e do nosso entendimento, que rende igualmente razão a ordem como a desordem”. O termo de “lei serial”, que Proudhon abandonará rapidamente, é emprestada de Fourrier, a respeito do qual mostrar-se-à por outro lado, extremamente virulento. Afirma na “Da Criação” que a “série” governa o mundo. Tudo é “seriado”, quer dizer uno e múltiplo. “ Descobrir a série, é aperceber a unidade na multiplicidade”. A unidade é “ um todo composto de elementos agrupados sob uma certa razão ou lei”. A unidade da série tem isto de particular que permite agrupar elementos que permanecem radicalmente heterogéneos, tão opostos entre eles que por exemplo, a “ordem” e a “desordem”. Proudhon precisa que a mais pequena “série” possível é formada pelo menos de dois elementos: a tese e a antítese. Esta lei permitindo agarrar a “unidade na multiplicidade”. Proudhon falará igualmente de “totalização na divisão,” encontra-se em toda a sua obra. É a “lei suprema”. Convém notar que se esta lei da natureza e do pensar – pouco importa que Proudhon a qualifique de “lei de antinomia” ou de “lei serial” – introduz de unidade, é em conservando a cada elemento da totalidade unificada a sua total independência. Di-lo explicitamente: a lei serial “indica uma relação de igualdade, de progressão ou de similitude, mas não de influência”. Transposto no domínio da filosofia política, este teorema fundamental da filosofia proudhoniana revelar-se-à particularmente fecunda e conduzirá à definição duma posição original, por sua vez igualitarista e de raiz pluralista, evitando do mesmo modo os modelos comunistas e absolutistas, incapazes de preservar a independência do indivíduo. Proudhon preconizará em matéria de política um sistema no seio do qual o indivíduo (ou membro da série comunitária) pode conservar a sua total independência, os diversos elementos do grupo social estando certos colocados em pé de igualdade, mas sem que a liberdade de um não seja restringida sob a “influência” da liberdade dos outros.
Nas obras da maturidade, não é mais a questão da “série”, Proudhon abandona a linguagem de Fourier, mas não renega as ideias maiores da sua série serial. Desde a Criação, lançou as bases da sua filosofia com a descoberta dum princípio dialéctico regindo a natureza, a sociedade e o uso mesmo do pensar.
O acento, no pensar proudhoniano, é claramente posto sobre a filosofia política. Assim pode parecer curioso que Proudhon caracteriza a “lei serial” ou “lei da antinomia” como “lei da natureza e do pensar”, ou ainda como “lei da natureza e do nosso entendimento”, sem referência à sociedade. É, pensamos nós, na preocupação de exaltar o prestígio desta lei, de enraízar a filosofia política sobre um princípio mais fundamental, investido duma autoridade superior. Proudhon não se demora entretanto sobre o papel deste princípio na natureza. Permanece pouco explícito a maneira pela qual a lei suprema da série “governa a natureza”, esta entidade que não pára de se “fazer e desfazer”. Quando muito aprendemos que “o antagonismo profundo” que “rege a natureza” dá lugar a “séries naturais” que “se desenvolvem cada uma segundo o seu próprio objecto, sem se misturarem nem se confundirem”. Podemos pensar com certeza à lei da atracção e da repulsão.
Do mesmo que a natureza, o pensar é gerado pelo choque dos contrários. “Todas as nossas ideias elementares são antinómicas”, escreve ele. O pensar, com efeito, não é nada de outro, segundo ele, que “ a síntese de duas forças antitéticas, a unidade subjectiva e a multiplicidade objectiva” seja o Eu e o Não-Eu. O conflito toma portanto a sua origem na estrutura própria do pensar, que não encontra o seu exercício a não ser onde há oposição. Se o federalismo devia resolver todos os conflitos, isso implicava que devia ao mesmo tempo suprimir o pensar, ou torná-lo inútil?
Mas é na filosofia política que a lei da antinomia encontra em Proudhon o seu terreno de eleição. Como o exemplo da natureza, o mundo socio-histórico é o teatro do afrontamento permanente duma pluralidade de forças antitéticas irredutíveis. Proudhon fala de “uma oposição inerente a todos os elementos, a todas as forças que constituem a sociedade, e faz com que estes elementos e estas forças se combatam e se destruem”. Esta “ luta de todos contra todos”, que sustem a sociedade, toma a sua origem na essência própria do homem, como “ser inteligente, moral e livre”, do qual a “condição por excelência” é a acção. Com efeito, “para que haja acção, exercício físico, intelectual ou moral, é preciso um meio em relação com o sujeito agente, um Não-Eu que se coloca diante dum Eu como meio e matéria de acção, que lhe resiste e o contradiz. A acção será portanto uma luta: agir, é combater”. Proudhon acrescenta:” O estado social é portanto sempre, de facto ou de direito, um estado de guerra”. Na linguagem proudhoniana, a guerra torna-se o termo genérico para exprimir a luta, a oposição, o antagonismo. A guerra é portanto, no campo da praxis, o análogo do movimento dialéctico, inerente ao pensar, no campo da teoria. Proudhon sublinha aliás, ele próprio o paralelismo:” A guerra tem a sua fórmula abstracta na dialéctica”. Tanto como o pensar não encontra a desenvolver-se sem oposição de termos antitéticos, tanto como o homem não encontra a agir sem opor aos outros elementos do corpo social. A guerra ´w “inerente à humanidade”. Esta afirmação possui a mais alta importância para o nosso assunto: sem estado de guerra, a sociedade não existe; a guerra é “uma condição da nossa existência”, a razão do movimento e do progresso da sociedade. Resolver todos os conflitos não regressa portanto a suprimir a sociedade e a condição própria da nossa existência?
O filósofo não pode manter-se à verificação desta “contradição universal” que serve de base as regras da natureza, da sociedade e do pensar. É-lhe neutral mostrar como é possível de voltar, graças a esta “contradição universal”, segundo os termos do programa evocado no princípio desta comunicação. È aí que intervém uma dessimetria entre a natureza e a sociedade e onde compreendemos a razão do interesse privilegiado acordado por Proudhon à filosofia política. Com efeito, enquanto que a natureza parece provida dum mecanismo de auto regulação, numa espécie que as forças que se opõem no seu seio encontram a equilibrar-se, engano que levaria o universo no caos, a sociedade não dispõe dum mecanismo análogo, capaz da a preservar da ruína, de modo que convém introduzir artificialmente um modo de regulamentar os conflitos, para evitar que todas as forças que a compõem não “se combatam” e não “se destruem”.
Num texto capital, do qual já citamos o princípio, Proudhon delineia todo o programa da sua filosofia política: em virtude da oposição que lhe é inerente, todas as forças sociais se combateriam e se destruiriam, “se o homem, pela sua razão, não encontra o meio de as compreender, de as governar e de as ter em equilíbrio”. Notemos antes de tudo que é o homem que incumbe a tarefa reguladora necessária à sobrevivência da sociedade. É o homem, graças ao uso que faz da sua razão, que é o senhor do seu destino, e Não tem que esperar a sua salvação duma causa exterior. O programa delineado reverte um duplo aspecto, teórico e prático. Trata-se por um lado de “compreender” o princípio de oposição entre as forças, o que remete, na terminologia de Proudhon, a colocar os conflitos sob uma lei serial. Trata-se, segundo os próprios termos de Proudhon, de “atribuir a uma causa única, a uma lei do espírito humano, a uma fórmula serial, todos os factos sociais, de ordem e de desordem, de bem e de mal, de progresso e de ruína”. Em seguida, tendo bem presente este conhecimento, trata-se de o por em prática pela arte de governar que constitui o próprio da política, e do qual a chave reside na noção de “equilíbrio”. Este texto mostra que, se Proudhon procura a “resolver os conflitos”, não é pondo termo de maneira drástica pela vitória unilateral de uma das forças em presença: a sua intenção é de criar um sistema que as concilie, ou as “reconcilie” a todas. Deste modo, “resolver” significa alcançar uma solução que estabeleça um equilíbrio entre os elementos em conflito, sem no entanto suprimir um dos termos da oposição.
Este programa de “reconciliação universal” fundado sobre a noção de “equilíbrio” opõe-se, aos olhos de Proudhon, ao de síntese universal desenvolvido por Hegel. “ A antinomia, escreve Proudhon, não se resolve: aí está o vício de toda a filosofia hegeliana. Os dois termos de onde ela se compõe balançam-se, seja entre eles, seja com outros termos antinómicos”. E acrescenta ainda: “Os termos antinómicos não se resolvem mais que os pólos opostos duma pilha eléctrica que não se destroíem. O problema consiste a encontrar não a sua fusão que seria a sua morte, mas o seu equilíbrio, sem cessar instável, variável segundo o desenvolvimento da sociedade”. Notemos que estas linhas, escritas em 1863, são posteriores à obra fundamental onde Proudhon desenvolve a versão federalista da sua solução ao problema do político: Do Princípio Federativo. Proudhon permanecerá sempre agarrado a esta noção de equilíbrio, considerada prevenida ao “vício fundamental” imputado à síntese hegeliana.
Entrevemos imediatamente as importantes consequências que derivam desta definição da política como procura de equilíbrio. A irredutibilidade dos elementos antitéticos postos em balanço, tradução no campo da política da dialéctica que, como vimos, “indica uma relação de igualdade, de progressão ou de similitude, mas não de influência”, supõe entre estes elementos, uma relação de simples coordenação, à exclusão de toda relação hierárquica, e oferece um critério seguro na procura do melhor sistema político directamente a instaurar um regime capaz de preservar a sociedade de ruína. "A coordenação exclui a hierarquia, e determina a igualdade entre as funções. O sistema hierárquico estabelece sobre o princípio de autoridade, a desigualdade universal e permanente, de servidão progressiva é a forma das calamidades sociais”. O Estado proudhoniano, fundado sobre a noção de equilíbrio, seria por sua vez igualitarista e pluralista. Seria um estado de homens livres e iguais.
Desde que haja equilíbrio, os termos da antinomia exteriorizar-se-iam de igual maneira, as forças antagonistas controlam-se umas às outras, limitam-se e neutralizam-se, impedindo deste modo a supremacia duma sobre a outra. Forma-se então uma unidade. Mas este equilíbrio, segundo Proudhon, é instável, pois é parcial; o conflito está sempre latente, pois as unidades deste modo obtidas entram por sua vez em oposição com outras unidades existentes. A sociedade não é outra coisa que a totalidade das forças antinómicas e agrupa o conjunto dos equilíbrios parciais que tem por tarefa de harmonizar.
Uma vez definido o modelo político a instaurar, resta examinar os meios aos quais recorrer para fazer coincidir a realidade com o ideal, para transpor o espaço entre o estado de afronta generalizado ameaçando a sociedade de dissolução, que caracteriza a época que Proudhon observa, e o estado de equilíbrio reinando no estado federalista, susceptível de ser instaurado se o homem escuta a sua razão.
Como sobressai claramente do anteriormente exposto, não seria questão de ser questão de suprimir a guerra, mas é preciso transformá-la, de modo que ela se torne factor de progresso. A guerra vê-se assim dialecticamente atribuída uma certa legitimidade na medida em que ela contribui à emergência duma sociedade justa, quer dizer igualitária: “é pela guerra que a humanidade começa a sua educação, e que ela inaugura a sua justiça”. Ora, estabelecer a justiça, é estabelecer o equilíbrio, segundo a equação formulada por Proudhon na Teoria da Propriedade: “O que é a justiça a não ser o equilíbrio das forças?”. Deste modo a guerra é bem o instrumento do progresso, tanto que ela não perpétua uma situação de desequilíbrio mas favoriza um desenvolvimento do direito, que é a expressão institucional da justiça. O caminho que leva da “contradição universal” à “reconciliação universal” é portanto ao mesmo tempo o da instauração do direito, graças à guerra. Proudhon distingue várias etapas, cada qual estando considerada e correspondendo a uma idade da humanidade. Na Guerra e Paz, desenvolve uma genealogia dos direitos em oito patamares, principiando com o direito da força e culminando com o direito da liberdade, próprio ao estado ideal de equilíbrio que a humanidade guiada pela razão deve ter na mira.
Este progresso do direito na história não é linear. E se Proudhon é intrinsecamente optimista, pois que não põe em dúvida que a história não segue um “movimento ascensional”, isso não exclui o risco dum retorno para trás. “Este movimento ascensional, escreve ele, não se faz duma maneira contínua, mas por oscilações”, estas “oscilações” não comprometem todavia a marcha da história.
A pauperização crescente que Proudhon observa na sua época é certamente compreensível no número destas “oscilações”. As disparidades económicas são, para Proudhon, as principais fontes de injustiça e portanto de desequilíbrio que ameaçam a ordem social. É portanto a resposta aos problemas económicos, os quais dependem do direito económico, que depende a estabilização do corpo social e a progressão em direcção ao estado ideal do reino da justiça. A etapa capital sobre o caminho da instauração do direito é a chegada do direito económico, que deve, a termo, garantir uma distribuição equitativa das riquezas e controlar o jogo das forças económicas. Se a fonte principal, ver única da injustiça social é a injustiça económica, a solução ao problema político é económico. Proudhon exprime muito claramente esta tese no seu escrito intitulado Da Capacidade Política das Classes Operárias: “A política é o corolário da economia”. Defende a mesma ideia a propósito da federação de Estados: “A confederação torna-se indestrutível se se proclama como base do direito federativo e de toda a ordem política o direito económico”.
A história como domesticação da guerra pelo direito, e particularmente pelo direito económico, não é o quadro dum progresso de ordem unicamente económica e, subsequentemente, socio-política, mas igualmente moral. Porque a ordem económica regulamentada pelo direito económico deve permitir a igualdade na justiça, reforça o laço entre os indivíduos, que tende a tornar-se “mutualista”, carácter que deverá necessariamente reverter ao estádio final do Estado federalista. Por “mutualismo”, Proudhon entende um vínculo fundado sobre a troca e a obrigação “sinalagmática – anteriormente dita recíproca – e “comutativa” – anteriormente dita equivalente – de uns em relação a outros. Segundo Proudhon, “ o princípio de mutualidade (...) é (...) bem certamente o laço mais forte e o mais subtil que se possa formar entre os homens. Nem sistema de governo, nem comunidade ou associação, nem religião, nem sermão, não podem por sua vez unir tão intimamente os homens, e assegurar-lhes tal liberdade”. Fazendo princípio sobre a liberdade, “o princípio de mutualidade” propõe um modo de permuta que ultrapassa o plano estritamente económico. O direito, do qual a função é de limitar a liberdade de cada um de maneira que ela respeita a dos outros, e em particular o direito económico, do qual a função é nomeadamente de limitar a propriedade individual de maneira que ela respeita a dos outros, ganha no “mutualismo” uma outra dimensão, favoriza a permuta e permite por isso um enriquecimento tão económico como moral.
Pela promoção do direito económico conduzindo à instauração do “mutualismo”, a guerra torna-se instrumento do progresso moral. “Se a guerra, escreve Proudhon, (...não fosse a não ser o conflito das forças, das paixões, dos interesses, não se distinguia dos combates a que se entregam as bestas (...). Mas existe na guerra outra coisa: é um elemento moral”. Com o “mutualismo”, do qual Proudhon diz que ele “ aplana tudo o que era fonte de conflito”, a curva da história parecia concluída. Com o “mutualismo” opera-se esta “reconciliação universal” que a humanidade, toda dilacerada que possa ser nas lutas intestinas, não saberia em nenhum momento perder completamente de vista. O valor da guerra foi invertido: de instrumento de destruição, tornou-se instrumento de pacificação. “É a guerra que, pela sua evolução, conclui ela própria à paz (...). A tese da guerra torna-se a tese da paz”. Resta-nos a examinar de mais perto esta sociedade ideal na qual, sustenta Proudhon, “os conflitos são impossíveis”.
Com o “mutualismo” que define o sistema de permuta que deve prevalecer no estado federalista e do qual Proudhon nos disse que é suposto “nivelar todos os conflitos”, reencontramos a nossa questão inicial: Pode o federalismo resolver todos os conflitos? Nesta última parte da nossa exposição, a nossa atenção concentrar-se-à sobre o exame de dois aspectos desta questão, que veremos serem estreitamente dependentes.
Se o antagonismo é o princípio da vida, a supressão do antagonismo não irá necessariamente causar a “morte” e a “quietude do túmulo?” É deste modo que Proudhon escreve na Guerra e Paz que “o fim do antagonismo (...) quer dizer (...) o fim do mundo”. A que dispositivo Proudhon deve recorrer para escapar à armadilha da “sesta eterna”?
Qual é, por outro lado, o status da solução federalista? O federalismo, do qual Proudhon anuncia tão orgulhosamente que é “a verdadeira constituição social” – do qual “todos os governos conhecidos até este dia” não são mais que os “fragmentos desemparelhados”, “a formula política da humanidade”, ou ainda a “solução do problema político”, sobressaído propriamente ao domínio da política onde só se funciona a título de utopia social? Noutros termos, a “solução do problema político” pondo termo a todos os conflitos é uma solução política ou um sonho político?
Tocamos aí uma dificuldade à qual Proudhon longamente esbarrou e à qual a sua opinião nos parece ter evoluído.
Sem dúvida, Proudhon nunca quis ser considerado como um utópico, e, num dos seus últimos textos, sublinha com convicção que quer ser considerado um dos “reformadores menos utópico e dos mais práticos que existem”, mas também longamente que permanecia prisioneiro do esquema vida (antagonismo) – morte (fim do antagonismo), era obrigado de se orientar em direcção a um modelo de tipo kantiano, atribuindo à solução do problema político um status análogo ao duma ideia reguladora da razão prática, considerada como orientadora da praxis política, mas relegada num longínquo inatingível e do qual podemos unicamente aproximar-mo-nos indefinidamente. É um ponto da doutrina claramente expresso em 1858 na Da Justiça:
“Uma sociedade em que o conhecimento do direito seria inteiro e o respeito da justiça inviolável seria perfeito. O seu movimento obedecendo unicamente a uma constante, não dependendo mais de variáveis, seria uniforme e rectilíneo: a história reduzir-se-ia nela à do trabalho e dos estudos, para melhor dizer não haveria mais história.
Tal não é a condição da vida da humanidade, e tal, ela não saberia sê-lo. O progresso da justiça, teórico e prático, é um estado do qual não nos é permitido sair e de ver o fim. Sabemos discernir o bem do mal; não saberemos nunca o fim do direito, porque não acabaremos nunca de criar entre nós novas relações. Nascemos perfectíveis; não seremos nunca perfeitos: a perfeição, a imobilidade, seria a morte.”
Sobressai claramente deste texto que o destino da humanidade não é de esperar este ideal meta-histórico que em virtude da sua capacidade a distinguir o bem do mal, fixa-se em linha de mira. Proudhon adere ainda à tese da perfeitabilidade infinita do homem, que partilham nomeadamente Rousseau, Kant, Fichte. Em virtude da sua essência própria de ser perfeito, o homem não saberia alcançar a perfeição. Pior, o trabalho de aproximação infinita não diz respeito a um ideal claramente definido uma vez por todas, mas tem por objecto a definição de ideal, susceptível de ser enriquecido, aprofundado, no curso dos séculos. Ao ler este texto, poderíamos acreditar que o conceito mesmo de federalismo é ainda de certa maneira fluente, susceptível de ser indefinidamente aperfeiçoado.
Esta passagem não é isolada. Citemos uma outra, retirada do mesmo texto, que vai exactamente no mesmo sentido:
“O progresso permanece (...) a lei da nossa alma, não no sentido único que pelo aperfeiçoamento de nós próprios, devemos aproximar sem cessar de absoluta justiça e de ideal; mas neste sentido que a humanidade se renova e se desenvolve sem fim, como a criação ela própria, o ideal de justiça e de beleza que temos de realizar muda e engrandece sempre.”
No “Pequeno catecismo político” situado neste mesmo tratado da Justiça, onde Proudhon procede por uma série de questões e de respostas, podemos ler: “Para quando a realização desta utopia?”, seguida da resposta: “Tão depressa que a ideia seja vulgarizada”. Ora, como a ideia não está claramente definida, susceptível que é de progredir “sem fim”, trata-se bem duma dupla utopia, duma utopia do lado da realização da “solução do problema político” e duma utopia do lado da definição da utopia a realizar.
Proudhon não podia ficar por aí, sem excluir a ver a sua obra irremediavelmente relegada entre as utopias. Para se tornar resolutamente “um dos reformadores menos utopistas e dos mais práticos” que deseja ser, deveria transformar o seu projecto duplamente utópico em verdadeiro projecto político.
Um passo importante é dado na Guerra e Paz, onde Proudhon redescobre o que tinha chamado nos seus primeiros escritos a “lei serial”, sendo um modelo que lhe permitia conservar a multiplicidade sob a unidade e de ultrapassar a oposição vida-morte. “A paz, escreve ele, não é o fim do antagonismo, o que queria dizer, com efeito, o fim do mundo: a paz é o fim do massacre, o fim da consumação improdutiva dos homens e das riquezas”. O antagonismo habita, mas perde o seu carácter conflitual. Este obstáculo teórico maior separado, podemos esperar a que, de utópico, o discurso de Proudhon se torne político.
Esta evolução confirma-se no Princípio Federativo, onde encontramos um texto aparentemente próximo daquele que figurava na Da Justiça, onde se afirmava a tese da perfectibilidade infinita:
“Encontramos nas fórmulas antitéticas os dados duma constituição regular, de uma futura constituição da humanidade; mas é preciso que os séculos passem, que uma série de revoluções se desenvolvam, antes que a fórmula definitiva se liberte do cérebro que a deve conceber e que é o cérebro da humanidade.”
Reencontramos aqui a ideia que a “fórmula definitiva” do ideal a realizar está por descobrir. Mas, é aí a novidade decisiva, a descoberta desta fórmula definitiva, que não intervirá sem dúvida que em vários séculos, não é mais que um trabalho do tempo: não é mais declarado impossível em virtude da essência do homem como ser perfectível. Mudamos claramente de registo. Uma marca de travão à “mudança” e ao “crescimento” constante do “ ideal de justiça” parece doravante exequível.
O texto seguinte, igualmente tirado do Princípio federativo, traz importantes precisões relativas à futura constituição reguladora da humanidade:
“Numa sociedade regularmente organizada, tudo deve ser em crescente contínuo, ciência, indústria, trabalho, riqueza, saúde pública; a liberdade e a moralidade devem andar conjuntamente. Aí, o movimento, a vida, não param nem um instante. Órgão principal deste movimento, o Estado está sempre em acção, pois tem constantemente novas necessidades a satisfazer, de novas questões a resolver.”
Sobressai deste texto que uma sociedade dotada duma constituição reguladora, longe de ser tocada pelo imobilismo, de morte, continua a viver e a ter uma história. A futura constituição reguladora da humanidade é portanto perfeitamente compatível com o progresso. Os antagonismos, fonte perpétua de movimento, não cessam e oferecem constantemente “novas questões a resolver”, mas perdem o seu aspecto conflitual.
Um novo passo é transposto numa carta a Milliet de Novembro de 1863:
“Passar-se-à séculos antes que (o ideal do governo humano) seja atingido, mas a nossa Lei é de caminhar sem parar nessa direcção, de nos aproximarmos sem parar do fim; e é deste modo (...) que sustento o princípio de federação.”
Nesta passagem, que evoca as fórmulas utilizadas no texto anteriormente citado do Princípio federativo, reencontramos a ideia dum caminho que risca de tomar vários séculos, mas, o trabalho de aproximação não leva mais esta fé sobre esta preparação da “fórmula definitiva” da futura constituição reguladora da humanidade, mas sobre a realização prática desta fórmula.
Mas é num dos últimos textos de Proudhon, Da Capacidade Política das Classes Operárias, que encontramos a resposta mais clara à questão a saber se o federalismo pode resolver todos os conflitos:
“Nada do que divide os homens, cidades, corporações, indivíduos não existe nos grupos mutualistas. (...) Pode existir diversidades de opiniões, de crenças, de interesses, de costumes, de indústria, de cultura, etc. Mas estas diversidades são a própria base e o objecto do mutualismo: não podem por consequência degenerar em nenhum caso. (...) Os conflitos são impossíveis: para que eles renascessem, seria preciso destruir a mutualidade.”
No sistema federalista baseado na mutualidade, “os conflitos são impossíveis”, não no sentido em que não haveria mais antagonismos, de modo que haveria redução uniforme a uma unidade de vistas, de interesses, de crenças, de cultura, etc, mas no sentido em que estes antagonismos não saberiam desde então “degenerar em nenhum caso”. Os conflitos são certamente susceptíveis de constantemente renascer, mas o “mutualismo” oferece um instrumento de “reconciliação universal”, um método infalível de evitar os conflitos. A guerra é subjugadora. Continua a jogar o seu papel. A “contradição universal” não é nulamente eliminada. Mas graças ao método de resolução universal dos conflitos, só o seu aspecto positivo, factor de diversidade, é retido. Aplicação no domínio da política da “lei serial”, o “mutualismo” permite salvaguardar a riqueza da vida, a diversidade, o pluralismo, fonte de progresso infinito, sem conduzir relação hierárquica de subordinação. E, se esta fórmula de equilíbrio mutualista não pode ter por este momento que valor ideal, nada se opõe a que a humanidade, fiando-se na razão, trabalhe para a por em prática. De utópico, o discurso de Proudhon tornou-se político.

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