quarta-feira, novembro 23, 2005

A POLÉMICA DAS DUAS "MISÉRIAS"

Sem pretender retomar a já longa história das relações complexas entre Proudhon e Marx, queria centrar a nossa atenção sobre a polémica que se desenrolou em 1846-1847, e que deu lugar ao livro de Marx “Miséria da Filosofia”, respondendo à obra de Proudhon: “Sistema das Contradições Económicas”, ou “Filosofia da Miséria”.
Relembremos rapidamente as circunstâncias e algumas datas.
Proudhon era nove anos mais velho que Marx e, desde 1840, tinha adquirido um grande prestígio no debate político e no movimento de crítica social enquanto que Marx era ainda, nesta época, estudante, depois jornalista de inspiração liberal. Deste modo, logo que Marx chega a Paris em Novembro de 1844, encontra em Proudhon um líder socialista reconhecido, e as numerosas noitadas que passa com ele são contemporâneas da sua rápida evolução ao encontro das posições socialistas e comunistas. A troca de cartas entre eles em Maio de 1846, situa-se neste diálogo: Marx propõe a Proudhon estabelecer uma correspondência confidencial entre líderes intelectuais; Proudhon responde exprimindo as suas reservas a respeito dum tal projecto e anuncia a Marx que prepara uma grande obra crítica: será o “Sistema das Contradições Económicas” que será publicado em Outubro de 1846. A partir da recepção desde livro, Marx empreende a refutação polémica sob o título irónico de “Miséria da Filosofia” que será publicado em Julho de 1847.
Todos estes factos são bem conhecidos, e podemos encontrar uma boa exposição no livro de Pierre Haubtmann: “Proudhon, Marx et la pensée allemande” (1). Do mesmo modo são bem conhecidos os poucos textos de Proudhon que dizem respeito às suas relações com Marx e as páginas bastante numerosas de Marx sobre Proudhon que vão desde os juízos de admiração dos anos de 1842 até aos textos constantemente críticos após 1847.
Não irei retomar a totalidade desde grande dossier que é rico em múltiplas implicações pessoais, sociais, científicas, políticas. Queria somente reter o momento desta ruptura, e retomar a leitura paralela destes dois textos: “Sistema das Contradições Económicas” e “Miséria da Filosofia” para tentar compreender melhor algumas dimensões essenciais deste diálogo entre Proudhon e Marx, e a sua interrupção.
Estamos perante dois textos, ou melhor, de três. Com efeito, possuímos as anotações que Proudhon escreveu à margem do seu exemplar da obra de Marx. E estas reacções, apesar de rápidas e pouco desenvolvidas, são extremamente ricas de ensinamentos. E quereria dar a estas respostas de Proudhon mais importância do que habitualmente se faz. Estas respostas prolongam com efeito a discussão e estamos desta maneira em presença de três textos de inspiração e de status diferentes: o “Sistema das Contradições Económicas” em que Proudhon tem a iniciativa teórica, em seguida “Miséria da Filosofia” no qual Marx se cola ao texto de Proudhon para o criticar, e também um terceiro texto, estas notas marginais nas quais Proudhon faz a crítica da crítica, e persegue, por assim dizer, o diálogo, em resposta às invectivas...
Relembremos antes de tudo até onde vai a ambição de Proudhon nesta grande obra de cerca de 800 páginas que foi escrita durante mais de três anos.
Trata-se dum verdadeiro somatório que visa construir uma síntese das dimensões económicas, sociais e políticas do regime capitalista, do regime proprietário. Ambição que vai bem para além da “Primeira Memória sobre a Propriedade” pois não se trata somente de denunciar a relação de propriedade, mas de desenvolver todas as consequências e mesmo abrir vias de reflexão em direcção às posições políticas que Proudhon prolongará ulteriormente.
Trata-se de demonstrar que o regime capitalista está atravessado por contradições socio-económicas e mais abundantemente, mostrar que estas contradições formam um verdadeiro sistema, uma unidade dinâmica de forças antagónicas que provocam por sua vez a vitalidade do regime e os seus efeitos destruidores. Trata-se de pensar o regime capitalista como totalidade, sem pretender, naturalmente, fazer uma análise exaustiva, mas com a ambição de fazer aparecer as estruturas fundamentais e as actividades essenciais.
A dialéctica será então o instrumento intelectual necessário para analisar e ligar estas oposições, estas antinomias, estas tensões. Coloca-se então a Proudhon a questão da natu-reza destas dialécticas e a urgência para ele de precisar este método e de o justificar. Questão que não é completamente nova pois, já no livro anterior, “A Criação da Ordem”, Proudhon tinha procurado respostas para esta questão. Tinha então procurado naquilo que chamava a “dialéctica serial” o instrumento de análise dos fenómenos humanos. O pensamento de Proudhon está, neste ponto, em evolução, em trabalho, com a preocupação essencial expressa em “A Criação da Ordem”, de descobrir a especificidade das relações sociais e, por isso, de fazer aparecer, como ele escreve então, o seu carácter “ideo-realista” (2).
Enfim a ambição de Proudhon neste grande livro do Sistema das Contradições, é tirar as conclusões políticas destas análises, e, em particular, debater os planos de reforma social que não cessam de ser propostos desde os anos de 1820. Proudhon continua o seu projecto, ilustrado desde 1840, de examinar de maneira crítica estes projectos de reforma e de opôr uma crítica científica às utopias Saint- simonianas e Foueristas em particular. Projecta, ou pelo menos sonha, em arrancar o pensamento socialista às suas utopias.
Ora estes projectos ambiciosos são exactamente os de Marx, e particularmente nos anos de 1845-46, no curso dos quais opera a crítica das suas posições anteriores, denuncia por sua vez a tradição filosófica alemã e as posições liberais. Abandona nesse momento a problemática económica-filosófica dos manuscritos de 1844 pela qual se esforçava pensar a alienação operária a partir duma dupla leitura económica e filosófica. É precisamente nestes meses do ano de 1845, em que redige com Engels “A Ideologia Alemã”, que repensa esta problemática e planeia consagrar os seus esforços à análise económica. É nesse momento que formula o projecto duma crítica da economia política que se tornará “O Capital”. Interessa-lhe então repensar as suas relações com a filosofia de Hegel e de redefinir a dialéctica.
Como Proudhon, Marx associa estreitamente o projecto científico e o programa político. Propõe-se como Proudhon, denunciar as utopias sociais que interpreta como etapas que devem ser superadas, e ambiciona fundar a teoria política, a teoria revolucionária sobre uma ciência renovada da economia e sobre a teoria materialista da história.
Em 1845-46, Proudhon e Marx têm portanto os mesmos projectos, as mesmas ambições, e há todos os motivos para pensar que os seus encontros e as suas discussões se alimentaram desta identidade de vistas, sabemos pelos seus próprios testemunhos, que discutiram abundantemente questões filosóficas, de Hegel , de Feuerbach, e de economia política.
Numa das suas notas marginais ao livro de Marx, Proudhon escreve:
“O verdadeiro sentido da obra de Marx, é que ele lamenta que em todo o lado pensei como ele, e que o disse antes dele” (3).
Fórmula, naturalmente insuficiente, mas que contém uma larga parte de verdade, de tal modo os projectos de um e do outro estavam próximos. A irritação de Marx, a sua agressivi-dade a respeito do livro de Proudhon, alimenta-se desta cumplicidade de irmãos inimigos na qual se misturam confusamente os pontos de desacordo e os entendimentos fundamentais.
Marx, no seus anti-Proudhon, retém três pontos de ataque que se situam a níveis diferentes: a análise económica antes de tudo, o método dialéctico de seguida, as conclusões políticas por fim. Examinemo-las sucessivamente:
1. A polémica sobre a economia. É objecto das primeiras páginas do livro e que anuncia o título trocista do primeiro capítulo: “ Uma descoberta científica”. Marx toma como objectivo as teorias do “valor constituído” e da “proporcionalidade dos produtos” que Proudhon tinha proposto no seu segundo capítulo.
Esta polémica desenrola-se a partir dos postulados de base que Proudhon tinha anunciado desde 1840 e que retomam as teses de Adam Smith e Ricardo sobre o valor-trabalho.
Marx e Proudhon partem do mesmo princípio fundamental segundo o qual, como o repete Marx:
“...o valor relativo dum produto é determinado pelo tempo de trabalho necessário para o produzir”.
Há bem uma “proporcionalidade”, um “ganho de proporcio-nalidade” como consequência do valor determinado pelo tempo de trabalho. E Marx discute sobretudo as formulações que os princípios.
Do mesmo modo, Marx retoma como uma evidência, e sem insistir, a teoria do salário: teoria do salário-sustento da força de trabalho que Proudhon tinha exposto na “Primeira Memória”, retomando esta teoria de Ricardo ou de Eugène Buret, por exemplo. Por fim Marx retoma, se não os termos, pelo menos a ideia fundamental da extorsão dos valores, a ideia do “roubo” proprietário, que elaborará mais rigorosamente na teoria da mais-valia.
Marx vai discutir as formulações de Proudhon, reprovar-lhe negligenciar o “movimento constituído” que faz do trabalho a medida do valor, de negligenciar provisoriamente o “antagonismo das classes”, mas a discussão situa-se no interior do mesmo quadro teórico.
Quais foram as reacções de Proudhon a estas críticas relativas à análise económica? Enquanto que o iremos ver reagir vigorosamente às discussões relativas à dialéctica, não escreve nada, nem uma frase, à margem deste capítulo! Como que, até parece, estas objecções poderiam fazer parte duma discussão que importava continuar.
Só encontramos aqui uma única palavra: Proudhon escreve um “Oui”, não na sequência duma análise de Marx, mas na margem dum extracto que Marx transcreve duma obra do socialista inglês Bray de 1839. O extracto é o seguinte:
“Os produtores não têm que fazer senão um esforço - e é por eles que todo o esforço pela sua própria saúde deve ser feito - e as suas cadeias serão quebradas como nunca... Como fim, a igualdade política é um erro, ela é mesmo um erro como meio” (4).
Esta única reacção de Proudhon indica claramente que aos seus olhos, uma tal afirmação é mais importante e significativa que as discussões de teoria económica.
2. Segunda polémica: sobre a dialéctica. As reacções de Proudhon, sobre os métodos e sobre a concepção da dialéctica, vão ser numerosas, precisas e vigorosas.
Aqui também trata-se duma discussão que prossegue. Sabemos que Proudhon e Marx tinham longamente discutido o conjunto da dialéctica, e, mais tarde, Marx gabar-se-à de ter “injectado” Proudhon de hegelianismo:
“Em longas discussões, muitas vezes durante toda a noite, injectava-o de hegelianismo - para seu prejuízo, visto que não sabendo alemão, não podia estudar a coisa a fundo” (5) escreverá Marx, bastante mais tarde, em Janeiro de 1865.
No entanto, desde 1847, faz a Proudhon a mesma censura, a de não ter compreendido a dialéctica hegeliana, o que é por sua vez exacto e exterior ao debate pois que Proudhon não procurou ser um discípulo de Hegel: encontrou somente na filosofia de Hegel elementos de reflexão para as suas próprias análises, segundo o método intelectual que lhe era familiar.
Estes debates interessam vivamente Proudhon como se vê, pelo número e a vivacidade das suas notas marginais.
Sobre diversos pontos, Proudhon nega que esteja em desacordo com o seu crítico. Por exemplo, logo que Marx escreve que ele deve “considerar a produção feudal como um modo de produção fundado sobre o antagonismo” (6), Proudhon mostra o seu espanto: “Será que Marx tem a pretensão de dar tudo isto como seu, em oposição com qualquer coisa que terei dito?” (7); ou então, noutro lugar:
“Eis logo que tenho o infortúnio de pensar como vós!” (8); ou então ainda:
“ Digo precisamente tudo isso” (9); ou ainda:
“Mentira: é precisamente o que digo” (10).
E Proudhon suspeita Marx duma certa má fé:
“Cabe ao leitor acreditar que é Marx que, após me ter lido, lamenta pensar como eu. Que homem!”(11).
Mas, sobre o âmago, sobre a concepção da dialéctica, Proudhon não cede nada e apercebe-se bem do desacordo essencial. Marx coloca o princípio que a dialéctica não pode ser que histórica: o estudo das categorias económicas não pode ser feito, diz ele, “segundo a ordem dos tempos” (12). Abandonar este método histórico é, necessariamente, voltar ao idealismo. Marx retoma os temas da “Ideologia Alemã” e as teses gerais do materialismo histórico: fazer “a história real”, é analisar como as relações sociais são “ produzidas pelos homens”. “As relações sociais estão intimamente ligadas às forças produtivas”...e “os homens produzem também os princípios, as ideias, as categorias, conformes às suas relações sociais” (13).
Sobre este ponto fundamental que compromete por sua vez a concepção da dialéctica, a relação à história e o determinismo histórico, Proudhon reage violentamente. Em face desta crítica de Marx, escreve:
“... é precisamente o que digo. A sociedade produz as leis e os materiais da sua experiência” (14)
Estamos aqui no centro da oposição entre duas concepções da dialéctica: entre duas maneiras firmamente opostas de interpretar as contradições. Marx não pára de censurar a Proudhon o negligenciar as causalidades históricas, as anterioridades e as sucessões, as especificidades históricas. Ora Proudhon tinha precisamente procurado uma outra via de reflexão (uma via que qualificaríamos hoje de estrutural ou estruturalista), consistindo pôr em relevo as contradições do sistema, os antagonismos sincrónicos entre - monopólio e concorrência, por exemplo, - entre divisão do trabalho e recomposição do trabalho, etc. Método que contrariamente ao que pensa Marx, não manifesta nenhuma ignorância da perspectiva histórica, mas que contém implícita uma crítica do modelo historicista da evolução concebido como necessário e previsível, quer dizer do modelo do materialismo histórico que é o de Marx. E tocamos aqui um desacordo, com efeito insuperável, entre uma análise dos antagonismos e das contradições socio-económicos como propõe Proudhon, e o esquema histórico de Marx associando a análise do passado e uma representação da revolução necessária e inelutavelmente comunista.
E chegamos assim a um debate sem saída. Marx acusa, por exemplo, Proudhon de reduzir a dialéctica à oposição entre os bons e os maus lados das coisas... e Proudhon pode responder que ele próprio fez a crítica deste tipo de argumentação.
3. Terceiro aspecto da polémica: o político. Chegamos às conclusões políticas onde a discussão dá lugar, podemos dizer, a um diálogo de surdos, e onde a parte do não dito, a parte dos sub entendidos, torna-se essencial.
Ainda aqui, a questão do devir histórico, a questão da revolução socialista ou comunista, tinham seguramente feito objecto de discussões, de vivos debates entre Proudhon, Bakunine, Marx, Karl Grün e ainda outros. Nestes anos de 1845-46, Proudhon acumula reflexões sobre “a Associação”, sobre a Associação progressiva, como se pode ver nos “Cadernos” destes dois anos. Tem todo o sentido pensar que teria feito conhecer a Marx as suas reservas a respeito duma visão simplista da revolução, reduzindo as mudanças sociais a uma ruptura breve e definitiva. Proudhon não tinha feito, no Sistema das Contradições que delinear a sua teoria anarquista da revolução social, de maneira rápida mas suficientemente explícita. Escreveu, por exemplo:
“O problema consiste pois, para as classes trabalhadoras, não a conquistar, mas a vencer... o poder, o que quer dizer... fazer surgir das entranhas do povo, das profundezas do trabalho, uma autoridade maior... que envolve o capital e o Estado, e que os subjuga” (15).
Marx, a leste da discussão, rompe o debate com Proudhon, retoma sozinho a palavra e expõe, pela primeira vez, esta concepção da revolução política e necessariamente comunista que irá expor novamente no “Manifesto do Partido Comunista”, no ano seguinte, e que não deixará doravante de justificar e de defender. É por consequência desta discussão que define a sua concepção definitiva.
Entretanto, o debate não é mais só com Proudhon. Como Marx indica explicitamente, esta sucessão de afirmações sobre o devir necessário das lutas operárias em direcção à revolução recusa largamente a visão política e histórica de Hegel. Hegel encontra-se ainda legitimado pelo seu contributo à concepção da dialéctica, e exclui do debate o que diz respeito à concepção do devir histórico. Mais ainda, estas páginas constituem uma tomada de posição nas discussões entre os jovens hegelianos.
Estas páginas, muito rápidas e dogmáticas, respondem do mesmo modo a todo um conjunto de discussões com múltiplas implicações. Marx visa aqui desmarcar-se simultaneamente do seu antigo mestre em filosofia, dos seus mais próximos amigos hegelianos, e do seu antigo mestre em crítica social, Proudhon. E faz uma auto-crítica; condena vivamente as suas posições anteriores, liberais e românticas dos anos 42 a 44. Debate confuso, com múltiplos fins, no qual Marx procura sobretudo definir-se do que a prosseguir um diálogo.
É notável que em presença destas páginas, Proudhon não acrescente nenhuma anotação. As suas observações terminam em face da crítica de Marx sobre os seus capítulos “Concorrência e Monopólio”, e não exprime nenhuma outra reflexão na margem destas últimas páginas do panfleto de Marx.
Poderíamos, certamente, interpretar de um modo diverso tal silêncio. Não obstante a interpretação mais verosímil é que o desacordo é tão claro, aos olhos de Proudhon, o esquema histórico de Marx pouco razoável, e politicamente contestável, que não sente absolutamente a necessidade de reformular a crítica nas suas notas marginais. Proudhon tinha já expresso o seu cepticismo a respeito desta concepção simples da revolução na sua carta a Marx de Maio de 1846. Conhecia já a concepção de Marx e suspeitava que iria preparar, eventualmente, um novo despotismo. Pensava por conseguinte, que sobre este ponto, as posições estavam tomadas e eram definitivas, e não havia mais matéria a dialogar.
A querela das duas Misérias termina deste modo por uma clara oposição das escolhas políticas.
É necessário acrescentar que para além das expressões, para além dos conteúdos manifestos, existiam várias oposições que não fazem objecto de expressão. Como em toda a polémica, existia um conteúdo latente cuja análise seria inesgotável da qual não pretendemos fazer mais do que uma análise suficiente.
Duas dimensões seriam, parece-me, a sublinhar e que se completam:
A primeira diz respeito ao estranho silêncio de Marx sobre o ponto essencial que é a crítica proudhoniana do comunismo. É, com efeito, neste texto de 1846 que Proudhon faz, pela primeira vez, uma análise longa e detalhada da comunidade para demonstrar, segundo os seus termos, que:
“A comunidade é impossível...”, que ela conduzirá a instaurar um novo estatismo sob o poder dum só, que ela é, enfim, “a religião da miséria” (16).
Marx leu bem este capítulo, como testemunha as citações que faz, embora evite evocar a argumentação de Proudhon e de fazer a crítica, como se o debate se apoiasse sobre um ponto tão decisivo que seria preferível não o abordar.Marx escolhe, deste modo ignorar, ou finge ignorar, tudo o que o separa radicalmente de Proudhon, quer dizer toda a crítica do comunismo e toda a orientação anarquista de Proudhon.
Marx, podemos dizer, substitui aqui a discussão por troças, despropósitos e diferentes formas de injúrias. Proudhon encontra-se qualificado de “poeta incompreendido”, de tonto (17), e, desde as primeiras linhas, de ignorante em filosofia e em economia. É o sentido do exergo irónico pelo qual Marx se coloca em professor de filosofia e de economia. É o conteúdo do exergo datado de 15 de Junho de 1847:
“M. Proudhon tem a infelicidade de ser singularmente desconhecido na Europa. Em França, tem o direito de ser mau economista, porque passa por ser bom filósofo alemão. Na Alemanha, tem o direito de ser mau filósofo, porque passa por ser um dos melhores economistas franceses. Nós, na nossa qualidade de alemão e de economista ao mesmo tempo, quisemos protestar contra esse duplo erro” (18).
Proudhon percebe bem esta estratégia polémica de Marx quando nota em margem:
“Troçais sempre antecipadamente: começais por ter razão” (19).
A segunda dimensão que queria sublinhar faz aparecer uma oposição radical entre Proudhon e Marx. Este texto de 1847 inscreve-se numa estratégia de ruptura e numa concurrência pela conquista de autoridade no seio do movimento social. Marx coloca-se como detentor de competências filosóficas e económicas que lhe permitiriam julgar e condenar.
Trata-se praticamente de excluir Proudhon do movimento social, de demonstrar que ele não é um representante válido deste movimento. Daí o recurso a fórmulas que serão abundantemente repetidas nos conflitos ulteriores e que decretam simbolicamente a exclusão designando Proudhon como porta-voz da pequena-burguesia (20). Fórmula que toma todo o seu sentido numa estratégia de conquista de autoridade contra os seus concorrentes.
E, a este nível, a oposição é completa entre Proudhon e Marx, e o diálogo impossível.
A discussão cessa porque Proudhon não se situa neste terreno. É capaz de polemizar vigorosamente (e mostrá-lo-á contra Pierre Leroux ou Louis Blanc, por exemplo), mas, para ele, a discussão é e deve ser prosseguida e permanente. Não se trata de eliminar os adversários para conquistar posições de poder, não se trata de reconstituir uma autoridade, mas de continuar debates que fazem parte da vida política e do seu pluralismo.
E se Proudhon não respondeu à obra de Marx, é, seguramente por várias razões, mas, sem dúvida, também porque lhe repugnava entrar neste tipo de conflito: recusava confundir o debate político com as estratégias de conquista do poder.
Conhecemos a sequência dos acontecimentos: Proudhon não terá mais a ocasião nem de reencontrar, nem de discutir os trabalhos de Marx. Este, ao contrário, voltará múltiplas vezes sobre as teses de Proudhon para continuar a criticá-las.
Quanto à História, a dos socialismos, dos comunismos e do anarquismo, ela encarregou-se de fazer aparecer o carácter eminentemente significativo destas polémicas dos anos de 1845-47.

NOTAS

1- Pierre Haubtmann - Proudhon, Marx et la pensée allemande, Grenoble, Presses universitaires de Grenoble, 1981.
2- Proudhon - De la Création de l‘ordre dans l‘humanité (1843), Paris, Nouvelle Edition, M.Rivière, p.286 .
3- “Le véritable sens de l`ouvrage de Marx, c`est qu`il a regret que partout j`aie pensé comme lui, et que je l`aie dit avant lui”
K. Marx - Misère de la philosophie, em resposta à la Philosophie de la misère de M. Proudhon, notas marginais de Proudhon, Paris, Costes, 1950, p. 135.
4- “Les producteurs n`ont qu`à faire un effort - et c`est par eux que tout effort pour propre salut doit être fait -, et leurs châines seront brisées à jamais... comme but, l`égalité politique est une erreur, elle est même une erreur comme moyen”
Ibid., p.82.
5- “Dans de longues discussions, souvent prolongées toute la nuit, je l`injectais d`hégelianisme - à son grand préjudice, puisque ne sachant pas l`allemand, il ne pouvait pas étudier la chose à fond”
Ibid., p.216.
6- “considérer la production féodale comme un mode de production fondé sur l`antagonisme”
Ibid., p.144.
7- “Est-ce que Marx a la prétention de donner tout ceci comme sien, en opposition avec quelque chose de contraire que j`aurais dit?”
Id..
8- “Voilà donc que jài le malheur de penser comme vous!”
Ibid., p.135.
9- “Je dis précisément tout cela”
Ibid., p.128.
10- “Mensonge: cèst précisément ce que je dis”
Ibid., p.127.
11- “Il ne tient qu`au lecteur de croire que c`est Marx qui, après m`avoir lu, a regret de penser comme moi. Quel homme!”
Ibid., p.135
12- “selon l`ordre des temps”
Ibid., p.126.
13- “les hommes produisent aussi les principes , les idées, les catégories, conformément à leurs rapports sociaux”
Ibid., p.127.
14- “...c´est précisément ce que je dis. La société produit les Lois et les Matériaux de son expérience”
Id..
15- “Le problème consiste donc, pour les classes travail-leuses, non à conquérir, mais à vaincre... le pouvoir, ce qui veut dire... faire surgir des entrailles du peuple, des profondeurs du travail, une autorité plus grande...qui enveloppe le capital et l` État, et qui les subjugue”
Proudhon - Système des Contradictions, Paris, M. Rivière, t. I, p.345.
16- “La communauté est impossible...”
“la religion de la misère”
Ibid., t.II, p.302.
17- Misère de la philosophie, op. cit., p. 101.
18- “M. Proudhon a le malheur d`être singulièrement méconnu en Europe. En France, il a le droit d`être mauvais économiste, parce qu`il passe pour être économiste français des plus forts. Nous, en notre qualité d`Allemand et d`économiste à la fois, nous avons voulu protester contre cette double erreur”
Ibid., p.25.
19- “Vous plaisantez toujours par avance: commencez par avoir raison”
Ibid., p.137.
20- Ibid., p.150.

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