Esta questão não será abordada no plano teórico: penso que não é a melhor aproximação ao tema em causa. Simplesmente, as observações que me proponho desenvolver provêm duma reflexão prática que encontra a sua origem num empenhamento pessoal. Razão de sobra para não fechar os olhos à realidade na qual estamos inseridos.
Então, ser – ou pretender ser – revolucionário hoje em dia será que ainda tem sentido? Para delinear uma resposta a esta questão, é preciso perguntarmo-nos antes de tudo se existe à nossa volta sinais, mesmo discretos, da viabilidade do discurso revolucionário. De seguida, é preciso interrogarmo-nos sobre as formas de transformação social que podem encontrar-se em germe na crítica actual da sociedade do capitalismo triunfante.
Mesmo se a diligência nada tem de científico, interrogarmo-nos sobre a viabilidade do discurso revolucionário, é interrogarmo-nos sobre aquilo que poderíamos chamar “o ar do tempo”, a presença, entre os nossos contemporâneos, no sentido mais amplo, duma atenção particular àquilo que rompe com o pensamento único, com o discurso dominante. Digo isto simplesmente pois sinto-me bastante afastado da noção de “ clube de ideias”, de conservatório ideológico onde acabamos por nos convencer que temos razão e que o mundo inteiro está errado. Trata-se duma diligência, honrável talvez, mas própria a cultivar a acidez do carácter e a suscitar os comportamentos sectários.
O “ar do tempo”, poderia ser, por exemplo, o movimento editorial. Não é curioso que no momento em que os apóstolos do liberalismo e do pensamento único enterram as ideologias, um livro como o de Vivianne Forrester, “O Horror Económico”, alcance tiragens consideráveis e permanece no centro das conversas durante vários meses. Claro, os bons espíritos dirão que se trata duma análise de supermercado como noutros tempos se falava de literatura de comboio. Claro, reconhecemos no panfleto empréstimos a Alain Birth, a Pierre Bourdieu, a Edgar Morin, a Michel Wievorka, a André Gorz, a Alain Touraine, ao “Monde Diplomatique” – Viviane Forrester parece ser uma leitora assídua de Claude Julien e de Ignacio Ramonet – e outros. Mas independentemente de não esconder as suas fontes e a despeito de todas as faltas e os defeitos que poderíamos encontrar no que ela escreve, permanece esta evidência: Vivianne Forrester acoplou com o seu título uma corrente de opinião que recusa categoricamente o sistema económico dominante.
Na mesma ordem de ideias, o ressurgir mediático do “Che” pode surpreender. O quê? Eis um revolucionário vencido que, no momento mesmo em que a ideologia da qual ele foi o vector e o dissidente desaba estrondosamente, renasce das cinzas e não somente sobre as T –shirts das férias. Aí também, o sobrevoo da produção editorial é eloquente. Tratar-se-aí de exumar um marxismo - leninismo moribundo? Absolutamente nada. O Guevera que se celebra hoje em dia, é o rebelde, o anti-conformista. E no fim da sua aventura, pessoal e irredutível, há igualmente a espingarda do pequeno soldado da Bolívia que a traição de todos os que, neste século confiscaram a revolução e dela se serviram. Pouco importa saber finalmente se Ernesto “Che” Guevara assemelhava-se efectivamente à descrição lírica que finta por exemplo hoje em dia Paco Ignacio Taibo.
. O que conta, é que os leitores de hoje querem que ele seja parecido:
“ Numa época de derrocada, ele é o nosso santo laico. Trinta anos após a sua morte, a sua imagem atravessa as gerações, o seu mito perdura no seio dos delírios de grandeza do neo liberalismo. Insolente, trocista, obstinado, moralmente obstinado, inesquecível.”
Bem entendido, há mais que o ar do tempo. Há a realidade do movimento social. E bem entendido, tomando o exemplo de França, é preciso voltar sobre as greves de Novembro e Dezembro de 1995. Consideremos os factos: durante várias semanas, uma minoria de assalariados do único serviço público e essencial do sector dos transportes teve mão pesada em relação ao governo. Este movimento, que obteve, concretamente? Nada, ou quase nada. Com o recuo, a única transformação visível, foi uma mão cheia de nada e outra de coisa nenhuma. E no entanto, é dizer pouco que este movimento marcou os espíritos. Alain Juppé, que se via já presidenciável, lembrar-se-à: um ano e meio depois. Recebeu em cheio na cara o choque de volta. Para outros será a “divina surpresa”! Bem entendido, Novembro - Dezembro 95, é bem mais que estas peripécias. É antes de tudo a emergência duma consciência colectiva feita de solidariedade imediata e de reivindicação da dignidade da pessoa. Não houve piquetes de greve, nem uma manifestação que tenha posto em causa estas noções. E contra toda a previsão, o conjunto da população assalariada não somente aceita a greve mas sente-se representada!
Entretanto, poder-se-à dizer, este bocado de terra hexagonal é bem pouco. O facto das pessoas se manifestarem de novo após um certo tempo de tendências contestatárias nada prova. Alguns não deixarão de assinalar que se trata de reminiscências dum passado terminado. Infelizmente para eles – e felizmente para nós – a mundialização não saberia ser utilizada num sentido único.
Se ela serve para sugerir que o desemprego em França é o fruto inelutável das condições de produção mais favorável na Ásia do sul e forçoso será constatar que os movimentos de greve na Coreia ou as lutas sindicais no Bangladesh para obter um dia de descanso por semana enquanto que o salário médio é de um dólar por dia em 12 horas de trabalho, há qualquer coisa a ver com as lutas sociais daqui.
Estamos a viver circunstâncias numa certa medida parecidas com aquelas que presidiram ao capitalismo nascente. Ontem, o êxodo rural provocava uma proletarização brutal, com o seu cortejo de revoltas operárias. Hoje, é o capitalismo que é exportado para regiões do mundo extraordinariamente populosas e que não conhecem outra coisa a não ser economias de subsistência.
De passagem, a incorporação no sistema de produção capitalista de alguns biliões de homens e de mulheres leva necessariamente à interrogação sobre a natureza do trabalho que nos é proposto e sobre o que alguns chamam o seu desaparecimento: ainda aí, são os mesmos óculos que é preciso colocar para observar os países ocidentais e o resto do planeta.
O internacionalismo, que é a resposta há demasiado tempo esquecida à mundialização, não se inscreve somente na observação dos mecanismos económicos. Mesmo se é ainda timidamente o que se nota é que emerge de novo. Com evidência, é pouco, muito pouco ainda. Mas que se meça o caminho percorrido desde a época não muito distante em que a CGT francesa dava como resposta à restruturação das fábricas Citroen em França o fechamento das unidades de produção em Espanha onde a campanha do Partido Comunista “Produzimos françês” que a extrema - direita não teve mais que recuperar.
Não nos enganemos. Tão insuficientes que possam ser as nossas acções de solidariedade que ultrapassam as fronteiras, não têm nada a ver com o que se produzia à trinta anos. A Coreia não é o Vietname. Se alguns puderam sondar de maneira ilusória nos anos 60 que os “pequenos homens verdes” levam o combate anti imperialista ao seu lugar, sabemos bem que os trabalhadores coreanos não farão a sua revolução como a nossa. Mas sabemos também que o sistema de dominação planetária contra o qual se levantam os trabalhadores daqui como de lá unificam necessariamente a sua luta.
Já em 1849, Henry David Thoreau se insurgia contra “ os que subordinam a questão da liberdade à do livre comércio”. É dizer se a tomada da fórmula que tinha escolhido como título da sua obra, A Desobediência Civil, toma uma ressonância particular logo que ela é repercutida por um movimento de solidariedade com os sem -papéis. É preciso reflectir bem: o apelo dos artistas, sobretudo cineastas, agrupados em redor da personalidade mediática de Bertrand Tavernier rompe com decénios de consenso. Desta vez, as pessoas não foram chamadas a reunirem-se à volta dos valores fundadores da República ou do Estado. É mesmo precisamente o contrário. O apelo é uma afirmação individual de ultrapassagem da lei, anteriormente chamada de poder no que há de aparentemente inultrapassável por consciências afeiçoadas por um século de escola republicana.
Alguns anos antes, a réplica à evacuação da igreja de Saint-Bernard mostrava uma capacidade de mobilização independentemente dos aparelhos policiais que paradoxalmente reintroduziram a política, a verdadeira, no coração das preocupações do nosso tempo. E sobretudo, sobre temas que vão exactamente ao encontro da deriva direitista na qual deslizam progressivamente a totalidade dos aparelhos aspirados pela maior oferta da extrema - direita.
A luta contra esta extrema - direita e as suas teses, no exterior das manifestações platónicas de carácter eleitoral, revestem as mesmas características de ultrapassagem, e de ultrapassagem em actos, do conformismo legalista. Doravante, os comandos anti aborto sistematicamente fizeram contra manifestações enérgicas que mostram escandalosamente as suas concepções retrógradas.
O valor essencial desta “desobediência civil”, é que ela apoderou-se de sujeitos da sociedade “tranversais”, quer dizer federadores de preocupações fundamentais e múltiplas. Deste modo, a defesa dos sem-papéis abre por sua vez perspectivas sobre a luta contra a xenofobia e o racismo, sobre a precaridade, sobre o direito à habitação, sobre as trocas norte - sul, etc. Do mesmo modo, o combate pela defesa do direito ao aborto está directamente ligado ao problema mais geral da condição feminina, sobre o trabalho das mulheres, sobre o anti claricalismo e a laicidade autêntica, etc.
Paradoxalmente, agora que o político e o sindical estão em crise, assistimos a uma emergência dum movimento de essência política, ainda difuso, que põe em causa os mecanismos e as práticas duma sociedade que poderíamos crer gelada.
Com partidos políticos desacreditados e políticos que frequentem mais assiduamente os tribunais que o Parlamento, é dizer pouco que assistimos a uma formidável desafeição da política institucional. O sindicalismo institucional não está melhor bafejado. Ao escolher a institucionalização exageradamente, ao escolher ligar-se ao sistema dominante, condena-se ao ver-se englobar, justamente na mesma crítica.
Há portanto qualquer coisa de novo num movimento social que fraco ainda e parcelar, se inscreve em ruptura com o modelo sócio - económico dominante.
Numerosas questões se colocam antes de encararmos a emergência dum autêntico movimento revolucionário. Algumas destas questões, e os actos ainda a inventar que daí decorrem, encontram-se reunidos na minha opinião neste extracto duma recente brochura de Eduardo Colombo, “L Organisation révolutionnaire du prolétariat, ed. CNT-RP, 1997.
“A reorganização do movimento operário revolucionário torna-se cada vez mais necessário para colocar ao sistema capitalista a única alternativa possível, a da sua destruição.
Permanece o essencial, o possível e o válido do anarco-sindicalismo, quer dizer:
Os métodos de luta, a acção directa, a autonomia dos grupos de base:
O projecto revolucionário anti autoritário, anti estatista.
Mas fica por inventar o que é fundamental: um tipo de organização que permita a articulação da “base” da assembleia, da espontaneidade da luta directa, com formas mais permanentes, que possam resistir à assimilação pelo sistema, a da legalidade existente, a legalidade que só pode servir a perpetuar a exploração e a dominação”.
Doutro modo será dizer que o caminho é longo, ainda, para os revolucionários!
A lógica na qual se insere hoje em dia a crítica libertária do sistema necessita dum retorno sobre a história deste século, ou pelo menos a uma releitura. Pois para fornecer respostas válidas às interrogações que suscita a eventual emergência dum movimento revolucionário, é preciso necessariamente revisitar o que já foi considerado no passado.
Gostaria particularmente assinalar alguns aspectos das riquezas ainda inexploradas que podemos encontrar nomeadamente na história do movimento operário espanhol.
Após alguns anos, a Espanha de 1936 e a sua revolução autogestionária libertaram-se da sujeição do antifascismo e da guerra civil na qual quiseram confiná-la os estalinistas. Mas previamente às realizações revolucionárias propriamente ditas, de que se fala um pouco, há longos anos de experimentação e de reflexão que permanecem praticamente desconhecidos.
No momento em que aparece O Livro Negro do Comunismo, que parece querer enterrar a revolução com o estalinismo, seria interessante exumar o relatório redigido em Junho de 1921 por Angel Pestaña, delegado da Confederación Nacional del Trabajo, a confederação anarco sindicalista espanhola, no fim da sua viagem à URSS. Veríamos que desde os primeiros anos do regime bolchevique, o que mais tarde se chamará o estalinismo estava já inscrito na lógica dos comportamentos. E apreciaríamos o valor dum testemunho que ultrapassa o quadro duma crítica individual para ser assumida pelo conjunto duma organização revolucionária.
Do mesmo modo, a relação dialéctica entre liberdade e soberania, que está no centro das preocupações de todo o projecto revolucionário deu lugar, na CNT espanhola do início dos anos 30 a debates e a polémicas que não encontraram sempre resposta definitiva mas que levantam ecos nas nossas preocupações contemporâneas.
Logo que a CNT espanhola elabora, aquando do seu Congresso de Saragoça no princípio de Maio de 1936 “o conceito confederal do comunismo libertário”entrega-se concerteza a um “programa revolucionário” que será aplicado em parte dois meses mais tarde, mas tenta igualmente, fazendo o balanço das reflexões dos seus militantes, dar a réplica organizacional ao comunismo totalitário. Do mesmo modo, a controvérsia entre Isaac Puente, o autor dos primeiros ensaios de definição do comunismo libertário, e Eusébio Carbó, militante “fundador” da CNT dos anos 30, constitui um tema de reflexão dos mais actuais. Será suficiente dizer algumas palavras. A Isaac Puente, que desenvolveu os mecanismos da tomada de decisão em assembleia geral, que tenta prever e contornar as derivações burocráticas, Eusébio Carbó opõe uma objecção de fundo: os métodos mais “democráticos” considerados por consolidar a soberania colectiva não têm sentido se não afirmarmos previamente o carácter irredutível da soberania individual. De outro modo, precisa Eusébio Carbó, nenhuma decisão colectiva não saberia submeter o indivíduo.
Percebe-se a riqueza do debate. Se finalmente, a soberania colectiva pode acomodar-se de desvios totalitários do mesmo modo que se exercem sobre minorias, não será necessário promover a soberania individual como parapeito? E como?
Claro, falta encontrar respostas, mas vemos bem que duma certa maneira, voltamos à questão de partida: pode-se ser revolucionário hoje em dia? Pois e apesar das trágicas experiências do século, a recusa revolucionária da ditadura económica é acompanhada necessariamente da salutar desconfiança em face de tudo o que poderia atender ao respeito do indivíduo.
É bem no “ar do tempo”. Viviane Forrester di-lo na última frase do seu livro:
“ Seria insensato esperar enfim a audácia dum sentimento áspero, ingrato, dum rigor intratável e que se recusa a toda excepção: o respeito.”
Então, ser – ou pretender ser – revolucionário hoje em dia será que ainda tem sentido? Para delinear uma resposta a esta questão, é preciso perguntarmo-nos antes de tudo se existe à nossa volta sinais, mesmo discretos, da viabilidade do discurso revolucionário. De seguida, é preciso interrogarmo-nos sobre as formas de transformação social que podem encontrar-se em germe na crítica actual da sociedade do capitalismo triunfante.
Mesmo se a diligência nada tem de científico, interrogarmo-nos sobre a viabilidade do discurso revolucionário, é interrogarmo-nos sobre aquilo que poderíamos chamar “o ar do tempo”, a presença, entre os nossos contemporâneos, no sentido mais amplo, duma atenção particular àquilo que rompe com o pensamento único, com o discurso dominante. Digo isto simplesmente pois sinto-me bastante afastado da noção de “ clube de ideias”, de conservatório ideológico onde acabamos por nos convencer que temos razão e que o mundo inteiro está errado. Trata-se duma diligência, honrável talvez, mas própria a cultivar a acidez do carácter e a suscitar os comportamentos sectários.
O “ar do tempo”, poderia ser, por exemplo, o movimento editorial. Não é curioso que no momento em que os apóstolos do liberalismo e do pensamento único enterram as ideologias, um livro como o de Vivianne Forrester, “O Horror Económico”, alcance tiragens consideráveis e permanece no centro das conversas durante vários meses. Claro, os bons espíritos dirão que se trata duma análise de supermercado como noutros tempos se falava de literatura de comboio. Claro, reconhecemos no panfleto empréstimos a Alain Birth, a Pierre Bourdieu, a Edgar Morin, a Michel Wievorka, a André Gorz, a Alain Touraine, ao “Monde Diplomatique” – Viviane Forrester parece ser uma leitora assídua de Claude Julien e de Ignacio Ramonet – e outros. Mas independentemente de não esconder as suas fontes e a despeito de todas as faltas e os defeitos que poderíamos encontrar no que ela escreve, permanece esta evidência: Vivianne Forrester acoplou com o seu título uma corrente de opinião que recusa categoricamente o sistema económico dominante.
Na mesma ordem de ideias, o ressurgir mediático do “Che” pode surpreender. O quê? Eis um revolucionário vencido que, no momento mesmo em que a ideologia da qual ele foi o vector e o dissidente desaba estrondosamente, renasce das cinzas e não somente sobre as T –shirts das férias. Aí também, o sobrevoo da produção editorial é eloquente. Tratar-se-aí de exumar um marxismo - leninismo moribundo? Absolutamente nada. O Guevera que se celebra hoje em dia, é o rebelde, o anti-conformista. E no fim da sua aventura, pessoal e irredutível, há igualmente a espingarda do pequeno soldado da Bolívia que a traição de todos os que, neste século confiscaram a revolução e dela se serviram. Pouco importa saber finalmente se Ernesto “Che” Guevara assemelhava-se efectivamente à descrição lírica que finta por exemplo hoje em dia Paco Ignacio Taibo.
. O que conta, é que os leitores de hoje querem que ele seja parecido:
“ Numa época de derrocada, ele é o nosso santo laico. Trinta anos após a sua morte, a sua imagem atravessa as gerações, o seu mito perdura no seio dos delírios de grandeza do neo liberalismo. Insolente, trocista, obstinado, moralmente obstinado, inesquecível.”
Bem entendido, há mais que o ar do tempo. Há a realidade do movimento social. E bem entendido, tomando o exemplo de França, é preciso voltar sobre as greves de Novembro e Dezembro de 1995. Consideremos os factos: durante várias semanas, uma minoria de assalariados do único serviço público e essencial do sector dos transportes teve mão pesada em relação ao governo. Este movimento, que obteve, concretamente? Nada, ou quase nada. Com o recuo, a única transformação visível, foi uma mão cheia de nada e outra de coisa nenhuma. E no entanto, é dizer pouco que este movimento marcou os espíritos. Alain Juppé, que se via já presidenciável, lembrar-se-à: um ano e meio depois. Recebeu em cheio na cara o choque de volta. Para outros será a “divina surpresa”! Bem entendido, Novembro - Dezembro 95, é bem mais que estas peripécias. É antes de tudo a emergência duma consciência colectiva feita de solidariedade imediata e de reivindicação da dignidade da pessoa. Não houve piquetes de greve, nem uma manifestação que tenha posto em causa estas noções. E contra toda a previsão, o conjunto da população assalariada não somente aceita a greve mas sente-se representada!
Entretanto, poder-se-à dizer, este bocado de terra hexagonal é bem pouco. O facto das pessoas se manifestarem de novo após um certo tempo de tendências contestatárias nada prova. Alguns não deixarão de assinalar que se trata de reminiscências dum passado terminado. Infelizmente para eles – e felizmente para nós – a mundialização não saberia ser utilizada num sentido único.
Se ela serve para sugerir que o desemprego em França é o fruto inelutável das condições de produção mais favorável na Ásia do sul e forçoso será constatar que os movimentos de greve na Coreia ou as lutas sindicais no Bangladesh para obter um dia de descanso por semana enquanto que o salário médio é de um dólar por dia em 12 horas de trabalho, há qualquer coisa a ver com as lutas sociais daqui.
Estamos a viver circunstâncias numa certa medida parecidas com aquelas que presidiram ao capitalismo nascente. Ontem, o êxodo rural provocava uma proletarização brutal, com o seu cortejo de revoltas operárias. Hoje, é o capitalismo que é exportado para regiões do mundo extraordinariamente populosas e que não conhecem outra coisa a não ser economias de subsistência.
De passagem, a incorporação no sistema de produção capitalista de alguns biliões de homens e de mulheres leva necessariamente à interrogação sobre a natureza do trabalho que nos é proposto e sobre o que alguns chamam o seu desaparecimento: ainda aí, são os mesmos óculos que é preciso colocar para observar os países ocidentais e o resto do planeta.
O internacionalismo, que é a resposta há demasiado tempo esquecida à mundialização, não se inscreve somente na observação dos mecanismos económicos. Mesmo se é ainda timidamente o que se nota é que emerge de novo. Com evidência, é pouco, muito pouco ainda. Mas que se meça o caminho percorrido desde a época não muito distante em que a CGT francesa dava como resposta à restruturação das fábricas Citroen em França o fechamento das unidades de produção em Espanha onde a campanha do Partido Comunista “Produzimos françês” que a extrema - direita não teve mais que recuperar.
Não nos enganemos. Tão insuficientes que possam ser as nossas acções de solidariedade que ultrapassam as fronteiras, não têm nada a ver com o que se produzia à trinta anos. A Coreia não é o Vietname. Se alguns puderam sondar de maneira ilusória nos anos 60 que os “pequenos homens verdes” levam o combate anti imperialista ao seu lugar, sabemos bem que os trabalhadores coreanos não farão a sua revolução como a nossa. Mas sabemos também que o sistema de dominação planetária contra o qual se levantam os trabalhadores daqui como de lá unificam necessariamente a sua luta.
Já em 1849, Henry David Thoreau se insurgia contra “ os que subordinam a questão da liberdade à do livre comércio”. É dizer se a tomada da fórmula que tinha escolhido como título da sua obra, A Desobediência Civil, toma uma ressonância particular logo que ela é repercutida por um movimento de solidariedade com os sem -papéis. É preciso reflectir bem: o apelo dos artistas, sobretudo cineastas, agrupados em redor da personalidade mediática de Bertrand Tavernier rompe com decénios de consenso. Desta vez, as pessoas não foram chamadas a reunirem-se à volta dos valores fundadores da República ou do Estado. É mesmo precisamente o contrário. O apelo é uma afirmação individual de ultrapassagem da lei, anteriormente chamada de poder no que há de aparentemente inultrapassável por consciências afeiçoadas por um século de escola republicana.
Alguns anos antes, a réplica à evacuação da igreja de Saint-Bernard mostrava uma capacidade de mobilização independentemente dos aparelhos policiais que paradoxalmente reintroduziram a política, a verdadeira, no coração das preocupações do nosso tempo. E sobretudo, sobre temas que vão exactamente ao encontro da deriva direitista na qual deslizam progressivamente a totalidade dos aparelhos aspirados pela maior oferta da extrema - direita.
A luta contra esta extrema - direita e as suas teses, no exterior das manifestações platónicas de carácter eleitoral, revestem as mesmas características de ultrapassagem, e de ultrapassagem em actos, do conformismo legalista. Doravante, os comandos anti aborto sistematicamente fizeram contra manifestações enérgicas que mostram escandalosamente as suas concepções retrógradas.
O valor essencial desta “desobediência civil”, é que ela apoderou-se de sujeitos da sociedade “tranversais”, quer dizer federadores de preocupações fundamentais e múltiplas. Deste modo, a defesa dos sem-papéis abre por sua vez perspectivas sobre a luta contra a xenofobia e o racismo, sobre a precaridade, sobre o direito à habitação, sobre as trocas norte - sul, etc. Do mesmo modo, o combate pela defesa do direito ao aborto está directamente ligado ao problema mais geral da condição feminina, sobre o trabalho das mulheres, sobre o anti claricalismo e a laicidade autêntica, etc.
Paradoxalmente, agora que o político e o sindical estão em crise, assistimos a uma emergência dum movimento de essência política, ainda difuso, que põe em causa os mecanismos e as práticas duma sociedade que poderíamos crer gelada.
Com partidos políticos desacreditados e políticos que frequentem mais assiduamente os tribunais que o Parlamento, é dizer pouco que assistimos a uma formidável desafeição da política institucional. O sindicalismo institucional não está melhor bafejado. Ao escolher a institucionalização exageradamente, ao escolher ligar-se ao sistema dominante, condena-se ao ver-se englobar, justamente na mesma crítica.
Há portanto qualquer coisa de novo num movimento social que fraco ainda e parcelar, se inscreve em ruptura com o modelo sócio - económico dominante.
Numerosas questões se colocam antes de encararmos a emergência dum autêntico movimento revolucionário. Algumas destas questões, e os actos ainda a inventar que daí decorrem, encontram-se reunidos na minha opinião neste extracto duma recente brochura de Eduardo Colombo, “L Organisation révolutionnaire du prolétariat, ed. CNT-RP, 1997.
“A reorganização do movimento operário revolucionário torna-se cada vez mais necessário para colocar ao sistema capitalista a única alternativa possível, a da sua destruição.
Permanece o essencial, o possível e o válido do anarco-sindicalismo, quer dizer:
Os métodos de luta, a acção directa, a autonomia dos grupos de base:
O projecto revolucionário anti autoritário, anti estatista.
Mas fica por inventar o que é fundamental: um tipo de organização que permita a articulação da “base” da assembleia, da espontaneidade da luta directa, com formas mais permanentes, que possam resistir à assimilação pelo sistema, a da legalidade existente, a legalidade que só pode servir a perpetuar a exploração e a dominação”.
Doutro modo será dizer que o caminho é longo, ainda, para os revolucionários!
A lógica na qual se insere hoje em dia a crítica libertária do sistema necessita dum retorno sobre a história deste século, ou pelo menos a uma releitura. Pois para fornecer respostas válidas às interrogações que suscita a eventual emergência dum movimento revolucionário, é preciso necessariamente revisitar o que já foi considerado no passado.
Gostaria particularmente assinalar alguns aspectos das riquezas ainda inexploradas que podemos encontrar nomeadamente na história do movimento operário espanhol.
Após alguns anos, a Espanha de 1936 e a sua revolução autogestionária libertaram-se da sujeição do antifascismo e da guerra civil na qual quiseram confiná-la os estalinistas. Mas previamente às realizações revolucionárias propriamente ditas, de que se fala um pouco, há longos anos de experimentação e de reflexão que permanecem praticamente desconhecidos.
No momento em que aparece O Livro Negro do Comunismo, que parece querer enterrar a revolução com o estalinismo, seria interessante exumar o relatório redigido em Junho de 1921 por Angel Pestaña, delegado da Confederación Nacional del Trabajo, a confederação anarco sindicalista espanhola, no fim da sua viagem à URSS. Veríamos que desde os primeiros anos do regime bolchevique, o que mais tarde se chamará o estalinismo estava já inscrito na lógica dos comportamentos. E apreciaríamos o valor dum testemunho que ultrapassa o quadro duma crítica individual para ser assumida pelo conjunto duma organização revolucionária.
Do mesmo modo, a relação dialéctica entre liberdade e soberania, que está no centro das preocupações de todo o projecto revolucionário deu lugar, na CNT espanhola do início dos anos 30 a debates e a polémicas que não encontraram sempre resposta definitiva mas que levantam ecos nas nossas preocupações contemporâneas.
Logo que a CNT espanhola elabora, aquando do seu Congresso de Saragoça no princípio de Maio de 1936 “o conceito confederal do comunismo libertário”entrega-se concerteza a um “programa revolucionário” que será aplicado em parte dois meses mais tarde, mas tenta igualmente, fazendo o balanço das reflexões dos seus militantes, dar a réplica organizacional ao comunismo totalitário. Do mesmo modo, a controvérsia entre Isaac Puente, o autor dos primeiros ensaios de definição do comunismo libertário, e Eusébio Carbó, militante “fundador” da CNT dos anos 30, constitui um tema de reflexão dos mais actuais. Será suficiente dizer algumas palavras. A Isaac Puente, que desenvolveu os mecanismos da tomada de decisão em assembleia geral, que tenta prever e contornar as derivações burocráticas, Eusébio Carbó opõe uma objecção de fundo: os métodos mais “democráticos” considerados por consolidar a soberania colectiva não têm sentido se não afirmarmos previamente o carácter irredutível da soberania individual. De outro modo, precisa Eusébio Carbó, nenhuma decisão colectiva não saberia submeter o indivíduo.
Percebe-se a riqueza do debate. Se finalmente, a soberania colectiva pode acomodar-se de desvios totalitários do mesmo modo que se exercem sobre minorias, não será necessário promover a soberania individual como parapeito? E como?
Claro, falta encontrar respostas, mas vemos bem que duma certa maneira, voltamos à questão de partida: pode-se ser revolucionário hoje em dia? Pois e apesar das trágicas experiências do século, a recusa revolucionária da ditadura económica é acompanhada necessariamente da salutar desconfiança em face de tudo o que poderia atender ao respeito do indivíduo.
É bem no “ar do tempo”. Viviane Forrester di-lo na última frase do seu livro:
“ Seria insensato esperar enfim a audácia dum sentimento áspero, ingrato, dum rigor intratável e que se recusa a toda excepção: o respeito.”
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