sábado, dezembro 03, 2005

CANTOS DO CAMALEÃO I

(Estudos de anatomia comparada)

Sou cantor porque canto

INICIAÇÃO AO CANTO

Só concebo um actor
simultaneamente autor

VIVÊNCIA POÉTICA

Levantei os braços para a estátua confusa
e perguntei:
e a mensagem do homem?
Ouvi a risada
e no entanto cantei com uma alegria natural
e uma grande serenidade -
Quando a loucura de Verão vier
estarei escondido
a única resposta formal é uma declaração -
e as estrelas?
erguer a vista é como fazer música juntos
ao abrir-se a porta
ergo as mãos para a luz
Haverá uma voz a rir no passeio
e com o devido respeito atravessarei o céu
Pois o processo de criar é condição essencial.

ARTE POÉTICA

O poeta é o filósofo
que transforma o mundo
descrevendo-o

A que juízo chegaremos
Se a única promessa
que vale a pena
é a Identidade?
Sei que não sou Deus
mas a poesia
ter que ser impessoal
para ser eterna
Não importa
que a morte nos surpreenda
No verso ler-se-à o poema
Não afastes o amanhã
O poeta é o confidente
a poesia a confidência


CANTO

Canto o canto do ser social
sobre o sangue da vida humana
Que árvore será aquela
ali suspensa, sem raízes?
O canto
é um processo de extroversão?
Se não canto
como hei-de suportar este silêncio todo?
O homem está condenado
a seguir o destino
por ele traçado

Mais vida
Mais ser
crescer
Mais canto
Canto o canto
pois no canto não me desminto...


RESPIRAR

Respiro a terra
a palavra e o acto
o momento de uma vida
e a lembrança
que não precisa de me ocorrer
O poeta é o ser
que deve fidelidade à palavra
por isso
o acto poético
não se confunde
com o acto político

CRIAÇÃO

E urgente começarmos o dia
destruindo todos os bastiões
do tempo absurdo
Determo-nos lentamente
sorrir e suar
exalarmos uma canção
que suba até à vida
extroverter uma intranquilidade
Olharmos para o horizonte
e consumirmos a ilusão
como nos grandes dias


Deixaremos um rasto de cores
voluntariamente!
e acabaremos o dia
com uma amizade antiga
contemplando a obra feita!


CADA INSTANTE


Pensarei sem existir
compreender é um todo
Vive o tempo sem perder
O real é a vida
e a vida é sempre fecunda
O absurdo não é o fim do processo
mas o seu meio
e no entanto
cantarei esperança nas horas de tédio
Mas o estímulo nasce
como uma pulsão
e eu viverei
mastigando cada instante incessantemente


QUANDO MORRER OU SE PREFERIREM
A PROPÓSITO DE ALGUMAS SORTIDAS PARA O REAL

Não sei se já compuseste uma lírica de morte
uma ilusória neblina espessa
onde ambos sabíamos
que havíamos de morrer
Não sei o que é mais absurdo
se a morte se a... vantagem de estar vivo
Quando morrer
penso ir para um cemitério
não sei se naquela altura
dar-me-ão a possibilidade
de exprimir o meu pensamento
Em princípio irei para onde os outros vão
é uma regra social que não penso desrespeitar
pelo menos neste momento não penso em tal
e nos dias quentes de Verão
irei tomar um banho à praia mais próxima
se o grau de poluição não for muito elevado
e se for, nessa altura não terá importância
é verdade,
que a minha futura casa fique próximo da costa
é um pedido que não podem recusar
a um condenado
e à noite
descerei com os amigos poetas
até à cidade
e debateremos eternamente
o problema da heteronomia em poesia


A PALAVRA

Acenderemos um dia
fogueiras na praça
chegaremos aos milhões
com hálitos de fogo
fundiremos a miséria
para ouvir a poesia

O POETA ELE - PRÓPRIO

O poeta é essencialmente um lavrador
lavrador da palavra
mas sobretudo lavrador da vida
que está interessado em falar
em construir o projecto de uma obra
a im-possível poesia
a derramada emoção no papel
certos sinais particulares
que dão conta de uma vivência
de um espaço
de um tempo
de uma maneira de estar presente


TEMPO RODA


O tempo é uma roda
e como todas as rodas
o seu movimento é circular
Uma particularidade a assiste:
o mecanismo que a faz girar
não possui marcha - atrás


DA

A presença do que é
é uma constante
À manifestação intrínseca do ser-aí
chamo eu poesia
A poesia
é uma arte integrativa


A CHAMA DA VELA

Não há alguma coisa a mudar
há tudo a mudar
e recuso-me a não mudar
seja o que for
não vivo para garantir uma apólice
De toda a vela só o pavio é iluminado


VOZES E OLHARES

Um poema começa
com o mesmo desejo
como quando se faz amor
A única coisa que é diferente
é o visual desse acto


ARDER E O CANTO

Isso que eu digo
é o nome do canto
Ter as mãos com a solidão
e cantar simplesmente


METAMORFOSES

A palavra nasce
o corpo transforma-se
tudo é chama
que inflama
o canto
no encontro
o adormecimento
na procura
o despertar

NA FRENTE

Eu dizia:
a solidão é brisa
e procuro
a urgência do instante
é fundamental


A CADA MANHÃ

Rebentos e frutos
é o sentido de Maio
o céu pode ser falso
o peso da terra não

COMUNICAÇÃO

A memória faz-nos desistir de certas palavras
"nunca" "impossível"
mesmo com o sussurro
cúmplice
dos videntes


TU POR EXEMPLO

O visível e o invisível
confundem-se na mancha
que transparece e simboliza
O único bafo
que admito
é o da minha memória

SINAIS

Que alçapão me deixastes?
Anuncias-me dessa maneira
os sinais
da tua inesgotável vivência -
admiráveis subterrâneos
ao teu destino
essa face anterior


TESTEMUNHA OCULAR


Não há outro viver
que ser presente


Vivência POÉTICA II

Podemos sentir no ar
que a angústia foi anunciada
e reconhecer fases progressivas
de consciência
envenenando a atmosfera
e os meus sonhos


Vivência POÉTICA VIII


E difícil dar sentido
às perfeições de um louco
Quando a nossa vida
está cheia de almas que rugem
e se o ano passado
foi já há dez anos


VIVÊNCIA POÉTICA

Nunca dormi uma noite até ao fim
Nunca fiquei nas ruas conhecidas
Olhei sempre para a manhã
Na noite de fragmentos
vivo verticalmente
O destino é uma medida


Vivência POÉTICA XIII

Passei toda a noite a fabricar um sonho
Passeava e passeava
cheirando a rua
alta noite regressando para o vento
Não havia estátuas partidas
e eu
não pensava em quanto dinheiro ganhava


Vivência POÉTICA XX

E ouvi o silêncio
Duas vezes
Foi a lua, conferindo o seu mistério
Para a noite denso e alto
É o meu corpo
só que é sempre o mesmo
de sonhar em comum
Acendi o mundo com a palavra
Não há sol nem gritos
O meu deserto
Onde posso estar só!


NO BODY - NOBODY III

Nunca algemarei o cérebro
e o corpo manter-se-á impassível
perante a faca e o chicote
Não preciso de chamar por ti liberdade
O pensamento sacudirá o passado
Quando a revolução social acontecer


NO BODY - NOBODY V

Poderei cumprir
à hora da partida
coisas que se afundam
lentas sombras
o resto da minha vida?
entrego a palavra
atada enigmaticamente
Não participarei no ritual
Não secarei as minhas lágrimas na praia
Deitarei sempre um último olhar
Há sempre uma nova música para ouvir
e sombras que se juntam nas costas
Não suplicarei a terra
e o sangue que jorrará
não será por minha iniciativa
O destino não é jogado aos dados
Poderei cumprir
aquilo que me pertence


HABITO NUM OÁSIS

Nunca enumerei os enigmas da nossa civilização
Nunca acariciei uma palavra
Habito num oásis
o deserto é a minha fronteira
Eu sou o teu outro labirinto


A LUZ E O TEMPO

Resisto à minha memória
do suor da cobiça
Despendo as risonhas homenagens
os rápidos abismos da noite
a luz é mais que o tempo
Só quem fica até ao fim
é que tem o privilégio do sonho


INTROSPECÇÃO

Atingiremos a serenidade
Afastando-nos do mundo real
Quando prepararemos o assalto à morte?
Com que consciência a abordaremos?
O conhece-te-a-ti-mesmo é um olhar terapêutico


REVOLUÇÃO

Quando o céu inteiro
Com os planetas
perseguiu o sol
um homem com letra maiúscula
acabou de nascer
O meu lugar
deixou de ser o centro do mundo

RECORDAR

Nada é tudo o que há
nada é competente
Todas as noites
a noite volta
e o que eu sou para mim é


MOMENTOS

Olhar para as coisa é estar em paz
viver o momento
evitar a memória
através da solidão gritar
Abrir á força caminhos de fogo
esquecer as vozes
seguir a queda de água
com palavras de silêncio
Agora vejo
o rasgo no céu
que se aproxima pela noite
canais de sono
seguindo uma via mais clara
Regresso
encontro-me cada vez mais perto de mim
enfim
acordo

DESENCANTAR

Para quem tem uma vida cínica estúpida e vazia
nada melhor do que uma explosão de raiva e de vivência
Não é urgente medir o sentido do tempo


O NECESSÁRIO

Não pretendo milagres
A ilusão não deve ser vivida
Aspirar à verdade
é fazer uma declaração de coragem

A DUPLA ESCOLHA

Vivo no tempo da minha escolha
O haver a verdade por haver
e o ser
o nó na longa e dura estrada
roendo o homem sofre
como quem constrói um túnel
na noite interior da mente

FUNDIÇÃO II

Há segredos que não mostram
ser mais do que uma vazia repetição
O infinito consiste na diferença
A conversão em nada é especulação

PASSAGEM

O mundo cega-me por vezes
nada sou capaz de me lembrar
da passagem das coisas
do acumular das vivências
como se mundo e tempo
fossem uma e a mesma coisa
um fluxo constante de emoções sentidas

OMBRO

Se ergueres sobre mim
o teu rosto
não poderei dizer que atentarás
contra a minha liberdade
A revelação é interior
o emocional é passageiro
o silêncio é mais do que constante

REFLEXO

Dual somos nós
vemo-nos como únicos
pois só o ponto de fuga interessa
o idêntico está na circunstância do penar

AMANHÃ

Falo de tudo
o que sou
o acordar o rosto o mar
outro corpo
um raio
e uma diuturnidade
acumulada
nas palavras

ECO

Se me deres
a sombra
nenhuma rosa
caberá nesse espaço
Do nome
pouco há-de ficar
Do ser?
procura no limiar da madrugada

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