sábado, dezembro 03, 2005

CANTOS DO CAMALEÃO II

INTERLÚDIOS

SAPERE

Saber é saborear


interlúdio: mús. Trecho de música
instrumental que se entercala entre
as diversas partes de uma longa
composição. (dos Dicionários)


As exposições a que desejo assistir
situam-se na galeria da minha mente


Se conseguirmos falar numa só palavra
seremos felizes
A felicidade consiste nisso
a novidade do encontro


Qualquer resistência é inútil
todas as coisa passam
até o tempo


Não ligo aos apóstolos
mas penso
em como havemos de tirar
os nossos filhos da cruz


Encontro maravilhado a vida
Apenas dela ter várias cicatrizes


Repetir todos os queixumes no exílio do tempo
apesar de em todos os corações haver um lamento


Toda a nossa vida
é o conjunto de partes mínimas
que nomeio acontecimentos

A vida
nunca estabelece
uma relação unívoca

ORAÇÃO

As mãos juntas
aquecem
os olhos fixos
pois o silêncio bebe a colheita

MURMÚRIO

Não há margens para o poema
nem cume possível para ele
embora tente utilizar as suas asas
e vá onde outros ficam no caminho


Não conheço nenhum muro que brilhe
nem nenhuma sala de espera com gente feliz


Na esperança dos olhos
as curvas do corpo


Não há poesia
na vida militar
O homem é um ser poético por excelência


Desconfia de todos aqueles
que falam como os guias turísticos
esses têm o desejo inconsciente
de serem políticos


Como não sabemos quando vamos morrer
é sempre uma incógnita saber
quando a vida
chega à sua segunda metade


O corpo não é inocente
no entanto
o olhar pode ser distante


A liberdade não se inventa
adquire-se
só a imaginação fabrica


Da letra nasceu a dor
Do alfabeto a liberdade

DA DISTÂNCIA

A distância não muda
Muda a perspectiva de a absorver


ADIVINHA

Na luz das minhas mãos
se dilui
o lago das minhas realizações


Em cada mulher
existe uma morte silenciosa de homem


O silêncio é também criador
Digo olhar: e vejo e sei


Em ti
principia
o princípio
de ti

Com os olhos se fazem palavras
nas vielas do amor
e do mundo

SINAIS

Na ideia se perde a memória
na acção se ganha a vivência

ESCRITA

O mais importante
é o instante
Da leitura se faz ideia
Do despertar a compreensão


PENSAMENTO 6

Poesia : preencher o silêncio
do que é realmente importante

PENSAMENTO 7

Em coisas da poesia
toda a loucura é provável
porque toda a liberdade é possível


Não é o sexo
nem o silêncio
que fazem a mulher ...


Os mortos
são os únicos seres
que não têm medo

Nenhuma busca é tão profunda
como a busca pela amizade


Aproximamo-nos da terra.
Somos.


ELEGIA I

Imagem dos gestos que traçamos
Amadurecemos pelas mãos


ELEGIA II

Põe mais silêncio
onde só há imagem


Somos homens
só porque temos voz?


Foi ontem e é hoje
o tempo esse fugaz
A única metafísica possível
é a do tempo que não passa.


PERGUNTA - RESPOSTA

Queres deixar de ser homem?
Usa uma farda


DEDICATÓRIA

À melhor das mães
a cada um de nós

Um ruído
mácula do silêncio


Para quando
rir das palavras?


TEMPO 1

O sujeito da minha consciência
é o tempo


PRESSÁGIO

As ilusões arrancam-se das imagens
nunca dos próprios objectos


Toda a presença é afirmada
mesmo ausente
esta é a dialéctica do ser


A flor diz
a mão que a sustenta
o diálogo suspenso
com a outra mão


O falar é um fazer


Quando faço amor
o meu falo
fala por mim


O falo é uma linguagem
viável
logo possível


Só a morte pode decifrar
certos tipos de inocência:
a dor


CORAÇÕES PENHORADOS


A palavra que eclipsa as palavras:
REVOLTA



DENTRO

De dentro avisto o teu corpo
Exteriormente toco o teu espírito
conheço-te!


Vivência POÉTICA IV

Há quem tenha medo do silêncio
Há quem tenha medo de tocar na lua
Senti-me surpreendido
e passei com as mãos nos olhos
Alma absorvida
pensei no que não sabia
Há quem nem da sua mente
consiga ser amigo


AMANHÃ QUANDO FOR TER CONTIGO

Amanhã quando for ter contigo
os políticos da nossa cidade
serão enviados para o Júlio de Matos
Amanhã quando for ter contigo
Veremos os chimpanzés do jardim zoológico
passearem no Rossio
Os polícias serão enviados
a fazer cursos de reciclagem nos jardins-escola
Amanhã quando for ter contigo
Os camiões do exército
serão postos à disposição do ministério dos transportes
para reforçarem as frotas da carris e da rodoviária
A associação dos touros
promoverá uma greve contra a violência
à entrada da praça do Campo Pequeno
Amanhã quando for ter contigo
elementos da polícia de intervenção
serão espancados por civis no Estádio Nacional
Os magistrados serão acusados por réus
os alunos darão aulas aos professores
os contribuintes irão cobrar impostos às finanças
Os mortos abandonarão os cemitérios
e reivindicarão o direito à vida
Amanhã
porque vou ter contigo


CONFISSÃO I

Estou preparado
para beijar o teu amor
e o teu infinito
e que o esquecimento e a suspeita
o meu ser quebre
na pura exactidão
deste momento
o silêncio há-de ser melhor
que este destino...


CASO TENHAS ALGUMA VEZ DITO


Nunca as minhas respostas foram suaves
na verdade tenho sempre um regresso discreto
E possível reconstruir o passado
aprender a cartilha do medo
nos olhos de cada um
Não sei se já
alguma vez disseste silêncio
Não se já
alguma vez evitaste pensar morto
Não sei se já
alguma vez inquiriste um ponto neutro da vida
um morto é o ser mais próximo da inocência?
Quem mastigar a minha poesia
que não veja abismos
mas somente chamas


SEM ARTICULAÇÕES


Já sentiste náusea do refúgio?
Já pensaste sobre a apatia a indiferença destas pessoas?
Será da crise?
Será que entre nós haverá um montão de contradições?
Será que os aprendizes de filosofia estão isolados?
O necessário não me é suficiente
A vida vive-se agora
Não quero articulações, quero o real
Quero sentir não caber dentro dos meus limites
Não quero ser fixado em celulóide,
nem ser besuntado numa tela
Quero cantar a verdade
Pois a verdade é o real! Mas que real?


ESTA MANHÃ


O grito raspou o silêncio
sou aquele que julgaste perdido
Os vidros embaciados
penetram-me até ao cérebro
Nunca cosi a boca de noite
A única linguagem insultante
que adoro ouvir
é a das crianças ao nascer


TERRA SEM RAÍZES

Carros eléctricos
sobre pedras soltas
em tangentes sem tempo
prolongando por mais uma geração
um bocado de osso, uma pedra
propagandeada em cartazes alucinantes
contra os conspiradores da rotação.
Numa terra baldia
unindo os tambores, os tantãs de serviço
satélite de veneração, da vida
Poderei sacudir-te garganta e voz
amarrar-te ao Mastro que construíste
arruinar a colheita de maçã
Poderei aquecer o conhecimento
que tens sobre a vida
Não te esqueças que eu
vivi a faustosa civilização
engoli sem mastigar
a sua literatura açucarada
O tempo estava frio
e ele ergueu-se dum sofá morto
"E vou desmembrar grandes temas" - disse
sem enlouquecer no vazio
e sem cair na confissão
duma rua com um buraco no casaco velho do nevoeiro
E a filantropia que está no auditório
e que nos salpica de ácido dexirubonucleico?


UM BICHO ESTRANHO


Ontem apresentaram-me um bicho estranho
Disseram-me que era um objector de consciência
Pensei para mim
Como é possível nos nossos dias
ser objector do que quer que seja?
Aparentemente era um ser normal
tinha duas pernas
dois braços
tronco
cabeça
Fisiologicamente funcionava como um ser humano
Falei com ele
e qual o meu espanto
que em conversa mostrou os habituais problemas existenciais
que têm os seres humanos
Bom, mas apesar de tudo era e sou
um objector de consciência
objectar contra a guerra
objectar contra as armas
objectar contra as forças armadas
objectar em última instância
contra o poder instituído
e contra qualquer instituição de poder
objectar contra o mito da liberdade
objectar pela liberdade


APRENDEREMOS


Aprenderemos a dominar o infortúnio
a viver duas vezes
a não correr atrás de agradecimentos
nem a procurar a consolação
Tomaremos o mundo nas mãos
e eventualmente poderemos ser felizes



OS CÁLCULOS DO ESPAÇO QUE OCUPO


Nunca fiz os cálculos do espaço que ocupo
Física naturalmente
e quando falo em espaço
falo no das três dimensões
Tudo o resto é ausência
para os meus sentidos
O dia da minha morte
não será anunciado
por meio de carta
Não costumo por o código postal


ATESTADO DE ÓBITO


Nunca vi o meu atestado de óbito
São mesquinhices que não me interessam
E urgente
a emoção pura e simples
de fazer viagens para paragens mais longínquas
e de derreter impressões sobre a memória


BERRO HISTÓRICO

Entre o teu mar aberto
Um berro histórico
e caio no esquecimento
Se houvesse anjos revolucionários
de que cor pensas que seria
o seu estandarte?


RELAÇÃO

Costumas ter o olhar disperso
como quem nada percebe
mostras-me
o assobio que não sabes dar
mas isso não importa
afagas o amor que esperas de mim
enquanto leio os upanishads
nos dias de ócio
Quero ver até onde vai este jogo
o teu sorriso
a minha paciência


AS MODALIDADES DO AMOR

É verdade que o amor
não é necessariamente uma vida
que é preciso viver a dois
e se o amor não é de certeza
suspiros em poltrona estofada
outras modalidades reais
gostaria de destrinçar
para generalizar esta conversa
e para o saber apreciar
de um modo universal


O ROSTO E A MÃO

Há momentos em que o coração
é de ferro fundido
Não há consciência que o moleste
e vai-se direito á felicidade
onde há sempre necessidade de abraçar alguém
mas as mãos nada encontram
são as primeiras vítimas
Não há lágrima que brote do ferro


FUNDIÇÃO

Onde se encontra
a noite sussurrante
a totalidade apenas existe
o sonho seria ver isto nos teus olhos


REPOUSO

Neste tempo
Há asas submersas
vivências em medo
perdas de verdade
revelações
no limite
chamas


SUBMERSÃO

A solidão que por vezes
nos perpassa
é o fim da palavra
encravada na garganta


CENTRO

Como o centro
o centro do silêncio
o modo da idade
não cabe neste espaço
nome é só nome
culpa pode ser paisagem
silêncio será palavra?
Rosto nunca é abolição
centelha é sopro
cada coisa é a sua própria metáfora


PROCURO-TE


Há quem procure a ternura súbita
a música por nascer
ou coisas mais simples
mas eu procuro-te
Há quem foge de um corpo estendido
rosto cravado na luz
e eu aí procuro-te
Há quem se canse
de ser o dia inteiro
afogado no bosque
mas eu sempre procuro-te
Há quem prometa viagens ao paraíso
sem saber onde ele fica
eu só procuro-te
Há quem pretenda flutuar sem o saber
eu procuro-te
Há quem se queira matar
com espadas de silêncio
mas eu mais uma vez procuro-te
No procurar-te não me esqueço
é evidente que há vozes que me chamam
no entanto
aguardo a madrugada
e sei
que para ser
tenho que ir sendo


CLARIDADE

Corpo é arquitectura
limite é espessura
reconhecimento é juventude
Aqui estão as mãos
que tropeçam
ma espessura da tua juventude arquitectural


CAMPO

Não sei se é silêncio
não sei se é grito
é instante
e isso é importante
o dia cresce
as mãos tecem a vida


QUEM RECOLHE O Silêncio?

Quando nos calamos
desaba o silêncio
um silêncio sem ti
nas minhas mãos
ouço a tua música
Federamos os nossos corpos
o nosso encontro voa


RUMOR

Deixar a mão descer pelo declive
para o interior do corpo
pouco importa o nome
acto é acto
cada movimento é mudança
cada palavra
a descoberta da boca


ARDENTEMENTE

Que fizemos nós das palavras
agora que parece que as esgotamos
deita-te comigo
da cintura aos joelhos
e pensemos
nesta hermenêutica estafada
entre lábios
e entre toda a música

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