INTERLÚDIOS
SAPERE
Saber é saborear
interlúdio: mús. Trecho de música
instrumental que se entercala entre
as diversas partes de uma longa
composição. (dos Dicionários)
As exposições a que desejo assistir
situam-se na galeria da minha mente
Se conseguirmos falar numa só palavra
seremos felizes
A felicidade consiste nisso
a novidade do encontro
Qualquer resistência é inútil
todas as coisa passam
até o tempo
Não ligo aos apóstolos
mas penso
em como havemos de tirar
os nossos filhos da cruz
Encontro maravilhado a vida
Apenas dela ter várias cicatrizes
Repetir todos os queixumes no exílio do tempo
apesar de em todos os corações haver um lamento
Toda a nossa vida
é o conjunto de partes mínimas
que nomeio acontecimentos
A vida
nunca estabelece
uma relação unívoca
ORAÇÃO
As mãos juntas
aquecem
os olhos fixos
pois o silêncio bebe a colheita
MURMÚRIO
Não há margens para o poema
nem cume possível para ele
embora tente utilizar as suas asas
e vá onde outros ficam no caminho
Não conheço nenhum muro que brilhe
nem nenhuma sala de espera com gente feliz
Na esperança dos olhos
as curvas do corpo
Não há poesia
na vida militar
O homem é um ser poético por excelência
Desconfia de todos aqueles
que falam como os guias turísticos
esses têm o desejo inconsciente
de serem políticos
Como não sabemos quando vamos morrer
é sempre uma incógnita saber
quando a vida
chega à sua segunda metade
O corpo não é inocente
no entanto
o olhar pode ser distante
A liberdade não se inventa
adquire-se
só a imaginação fabrica
Da letra nasceu a dor
Do alfabeto a liberdade
DA DISTÂNCIA
A distância não muda
Muda a perspectiva de a absorver
ADIVINHA
Na luz das minhas mãos
se dilui
o lago das minhas realizações
Em cada mulher
existe uma morte silenciosa de homem
O silêncio é também criador
Digo olhar: e vejo e sei
Em ti
principia
o princípio
de ti
Com os olhos se fazem palavras
nas vielas do amor
e do mundo
SINAIS
Na ideia se perde a memória
na acção se ganha a vivência
ESCRITA
O mais importante
é o instante
Da leitura se faz ideia
Do despertar a compreensão
PENSAMENTO 6
Poesia : preencher o silêncio
do que é realmente importante
PENSAMENTO 7
Em coisas da poesia
toda a loucura é provável
porque toda a liberdade é possível
Não é o sexo
nem o silêncio
que fazem a mulher ...
Os mortos
são os únicos seres
que não têm medo
Nenhuma busca é tão profunda
como a busca pela amizade
Aproximamo-nos da terra.
Somos.
ELEGIA I
Imagem dos gestos que traçamos
Amadurecemos pelas mãos
ELEGIA II
Põe mais silêncio
onde só há imagem
Somos homens
só porque temos voz?
Foi ontem e é hoje
o tempo esse fugaz
A única metafísica possível
é a do tempo que não passa.
PERGUNTA - RESPOSTA
Queres deixar de ser homem?
Usa uma farda
DEDICATÓRIA
À melhor das mães
a cada um de nós
Um ruído
mácula do silêncio
Para quando
rir das palavras?
TEMPO 1
O sujeito da minha consciência
é o tempo
PRESSÁGIO
As ilusões arrancam-se das imagens
nunca dos próprios objectos
Toda a presença é afirmada
mesmo ausente
esta é a dialéctica do ser
A flor diz
a mão que a sustenta
o diálogo suspenso
com a outra mão
O falar é um fazer
Quando faço amor
o meu falo
fala por mim
O falo é uma linguagem
viável
logo possível
Só a morte pode decifrar
certos tipos de inocência:
a dor
CORAÇÕES PENHORADOS
A palavra que eclipsa as palavras:
REVOLTA
DENTRO
De dentro avisto o teu corpo
Exteriormente toco o teu espírito
conheço-te!
Vivência POÉTICA IV
Há quem tenha medo do silêncio
Há quem tenha medo de tocar na lua
Senti-me surpreendido
e passei com as mãos nos olhos
Alma absorvida
pensei no que não sabia
Há quem nem da sua mente
consiga ser amigo
AMANHÃ QUANDO FOR TER CONTIGO
Amanhã quando for ter contigo
os políticos da nossa cidade
serão enviados para o Júlio de Matos
Amanhã quando for ter contigo
Veremos os chimpanzés do jardim zoológico
passearem no Rossio
Os polícias serão enviados
a fazer cursos de reciclagem nos jardins-escola
Amanhã quando for ter contigo
Os camiões do exército
serão postos à disposição do ministério dos transportes
para reforçarem as frotas da carris e da rodoviária
A associação dos touros
promoverá uma greve contra a violência
à entrada da praça do Campo Pequeno
Amanhã quando for ter contigo
elementos da polícia de intervenção
serão espancados por civis no Estádio Nacional
Os magistrados serão acusados por réus
os alunos darão aulas aos professores
os contribuintes irão cobrar impostos às finanças
Os mortos abandonarão os cemitérios
e reivindicarão o direito à vida
Amanhã
porque vou ter contigo
CONFISSÃO I
Estou preparado
para beijar o teu amor
e o teu infinito
e que o esquecimento e a suspeita
o meu ser quebre
na pura exactidão
deste momento
o silêncio há-de ser melhor
que este destino...
CASO TENHAS ALGUMA VEZ DITO
Nunca as minhas respostas foram suaves
na verdade tenho sempre um regresso discreto
E possível reconstruir o passado
aprender a cartilha do medo
nos olhos de cada um
Não sei se já
alguma vez disseste silêncio
Não se já
alguma vez evitaste pensar morto
Não sei se já
alguma vez inquiriste um ponto neutro da vida
um morto é o ser mais próximo da inocência?
Quem mastigar a minha poesia
que não veja abismos
mas somente chamas
SEM ARTICULAÇÕES
Já sentiste náusea do refúgio?
Já pensaste sobre a apatia a indiferença destas pessoas?
Será da crise?
Será que entre nós haverá um montão de contradições?
Será que os aprendizes de filosofia estão isolados?
O necessário não me é suficiente
A vida vive-se agora
Não quero articulações, quero o real
Quero sentir não caber dentro dos meus limites
Não quero ser fixado em celulóide,
nem ser besuntado numa tela
Quero cantar a verdade
Pois a verdade é o real! Mas que real?
ESTA MANHÃ
O grito raspou o silêncio
sou aquele que julgaste perdido
Os vidros embaciados
penetram-me até ao cérebro
Nunca cosi a boca de noite
A única linguagem insultante
que adoro ouvir
é a das crianças ao nascer
TERRA SEM RAÍZES
Carros eléctricos
sobre pedras soltas
em tangentes sem tempo
prolongando por mais uma geração
um bocado de osso, uma pedra
propagandeada em cartazes alucinantes
contra os conspiradores da rotação.
Numa terra baldia
unindo os tambores, os tantãs de serviço
satélite de veneração, da vida
Poderei sacudir-te garganta e voz
amarrar-te ao Mastro que construíste
arruinar a colheita de maçã
Poderei aquecer o conhecimento
que tens sobre a vida
Não te esqueças que eu
vivi a faustosa civilização
engoli sem mastigar
a sua literatura açucarada
O tempo estava frio
e ele ergueu-se dum sofá morto
"E vou desmembrar grandes temas" - disse
sem enlouquecer no vazio
e sem cair na confissão
duma rua com um buraco no casaco velho do nevoeiro
E a filantropia que está no auditório
e que nos salpica de ácido dexirubonucleico?
UM BICHO ESTRANHO
Ontem apresentaram-me um bicho estranho
Disseram-me que era um objector de consciência
Pensei para mim
Como é possível nos nossos dias
ser objector do que quer que seja?
Aparentemente era um ser normal
tinha duas pernas
dois braços
tronco
cabeça
Fisiologicamente funcionava como um ser humano
Falei com ele
e qual o meu espanto
que em conversa mostrou os habituais problemas existenciais
que têm os seres humanos
Bom, mas apesar de tudo era e sou
um objector de consciência
objectar contra a guerra
objectar contra as armas
objectar contra as forças armadas
objectar em última instância
contra o poder instituído
e contra qualquer instituição de poder
objectar contra o mito da liberdade
objectar pela liberdade
APRENDEREMOS
Aprenderemos a dominar o infortúnio
a viver duas vezes
a não correr atrás de agradecimentos
nem a procurar a consolação
Tomaremos o mundo nas mãos
e eventualmente poderemos ser felizes
OS CÁLCULOS DO ESPAÇO QUE OCUPO
Nunca fiz os cálculos do espaço que ocupo
Física naturalmente
e quando falo em espaço
falo no das três dimensões
Tudo o resto é ausência
para os meus sentidos
O dia da minha morte
não será anunciado
por meio de carta
Não costumo por o código postal
ATESTADO DE ÓBITO
Nunca vi o meu atestado de óbito
São mesquinhices que não me interessam
E urgente
a emoção pura e simples
de fazer viagens para paragens mais longínquas
e de derreter impressões sobre a memória
BERRO HISTÓRICO
Entre o teu mar aberto
Um berro histórico
e caio no esquecimento
Se houvesse anjos revolucionários
de que cor pensas que seria
o seu estandarte?
RELAÇÃO
Costumas ter o olhar disperso
como quem nada percebe
mostras-me
o assobio que não sabes dar
mas isso não importa
afagas o amor que esperas de mim
enquanto leio os upanishads
nos dias de ócio
Quero ver até onde vai este jogo
o teu sorriso
a minha paciência
AS MODALIDADES DO AMOR
É verdade que o amor
não é necessariamente uma vida
que é preciso viver a dois
e se o amor não é de certeza
suspiros em poltrona estofada
outras modalidades reais
gostaria de destrinçar
para generalizar esta conversa
e para o saber apreciar
de um modo universal
O ROSTO E A MÃO
Há momentos em que o coração
é de ferro fundido
Não há consciência que o moleste
e vai-se direito á felicidade
onde há sempre necessidade de abraçar alguém
mas as mãos nada encontram
são as primeiras vítimas
Não há lágrima que brote do ferro
FUNDIÇÃO
Onde se encontra
a noite sussurrante
a totalidade apenas existe
o sonho seria ver isto nos teus olhos
REPOUSO
Neste tempo
Há asas submersas
vivências em medo
perdas de verdade
revelações
no limite
chamas
SUBMERSÃO
A solidão que por vezes
nos perpassa
é o fim da palavra
encravada na garganta
CENTRO
Como o centro
o centro do silêncio
o modo da idade
não cabe neste espaço
nome é só nome
culpa pode ser paisagem
silêncio será palavra?
Rosto nunca é abolição
centelha é sopro
cada coisa é a sua própria metáfora
PROCURO-TE
Há quem procure a ternura súbita
a música por nascer
ou coisas mais simples
mas eu procuro-te
Há quem foge de um corpo estendido
rosto cravado na luz
e eu aí procuro-te
Há quem se canse
de ser o dia inteiro
afogado no bosque
mas eu sempre procuro-te
Há quem prometa viagens ao paraíso
sem saber onde ele fica
eu só procuro-te
Há quem pretenda flutuar sem o saber
eu procuro-te
Há quem se queira matar
com espadas de silêncio
mas eu mais uma vez procuro-te
No procurar-te não me esqueço
é evidente que há vozes que me chamam
no entanto
aguardo a madrugada
e sei
que para ser
tenho que ir sendo
CLARIDADE
Corpo é arquitectura
limite é espessura
reconhecimento é juventude
Aqui estão as mãos
que tropeçam
ma espessura da tua juventude arquitectural
CAMPO
Não sei se é silêncio
não sei se é grito
é instante
e isso é importante
o dia cresce
as mãos tecem a vida
QUEM RECOLHE O Silêncio?
Quando nos calamos
desaba o silêncio
um silêncio sem ti
nas minhas mãos
ouço a tua música
Federamos os nossos corpos
o nosso encontro voa
RUMOR
Deixar a mão descer pelo declive
para o interior do corpo
pouco importa o nome
acto é acto
cada movimento é mudança
cada palavra
a descoberta da boca
ARDENTEMENTE
Que fizemos nós das palavras
agora que parece que as esgotamos
deita-te comigo
da cintura aos joelhos
e pensemos
nesta hermenêutica estafada
entre lábios
e entre toda a música
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