sexta-feira, dezembro 09, 2005

PROUDHON E DEUS

“Penso em Deus desde que eu existo, confessa Pierre-Joseph Proudhon na sua importância filosófica, e não reconhece a mais ninguém senão a si o direito de a falar” (Justice, p.283). Ele relata que é esta continuada meditação que o conduziu à oposição do bloco rígido e encerramento do catolicismo da imanência revolucionária, sempre inalcançadas, da justiça.
Assim um dos anticlericais mais impetuosos do seu século, o inventor do “anti-teísmo”, longe de ter partilhado a descrença ou a indiferença de tantos outros, nunca mais cessou, segundo as suas próprias declarações, de atacar o divino. Aliás, a obra é disso testemunha, da primeira linha até às últimas.
Na verdade, o Deus com o qual ele se defronta assemelha-se mais ao Jeová tonante do Sinaï, quando este não está na “sua Natureza” de Espinoza, como aquele, transcendente e pessoal, da Trindade cristã. Mas será que se pode verdadeiramente manter um diálogo e um combate de toda uma vida face a um puro conceito? A luta com o anjo deste racionalista recupera muito mais mistério que a sua filosofia havia concedido. Esforcemo-nos, na medida do possível, de atravessar as sombras de uma presença que, sucessivamente se impõe e se oculta sem nunca explicar tudo feito pelo seu enigma irritante.
Nascido nos dias seguintes à grande Revolução Francesa, numa família permanecendo fiel ao catolicismo popular, Pierre Joseph foi baptizado dois dias depois do seu nascimento na paróquia de Madeleine de Besançon. Sua mãe tão honrada, bem como filha de um irredutível rebelde em matéria religiosa e política (o famoso avô Tournési), era piedosa, sem beatice, adormecendo cada noite os seus filhos com uma leitura do Evangelho: cheia de uma fé autêntica. O pai parecia ter sido pouco fiel: num monólogo que dá sobre a sua morte, Proudhon fez uma espécie de estóico sobretudo como um verdadeiro cristão (o que, aliás, não é inteiramente contraditório). O lar do básico como quase tudo à sua volta vivia, sem maior conflito, no seio da religião tradicional.
A infância de Proudhon inscreve-se portanto neste quadro, em desdém da miséria que foi muitas vezes o lote dos seus.
Ele vai regularmente ao catecismo, é mesmo marcado pelo seu abade que o recomendara para ser inscrito no colégio. Aos onze anos, ele faz a sua primeira comunhão e recebe no mesmo dia a confirmação com, diz ele, “uma piedade sincera” (Carnet X, 501). O que poderia não ter sido como um conformismo social responde, sempre posterior ao seu testemunho, a uma inclinação íntima que se pode qualificar de mítica; “Eu sentia deus, escreve ele, eu tinha a alma penetrada; agarrei desde a infância esta grande ideia, ela abordava em mim e dominava todas as minhas faculdades” (Lettre de candidature). Disposição do coração pouco comum, pelo menos naquela época. Certamente, bem mais tarde, na furiosa carga contra o arquétipo que representa aos seus olhos o cardial Mathieu, ele representara-se como tendo ao mesmo tempo vencido com prazer num “panteísmo prático” e uma exaltação que ele diz “pagã oposta àquele absurdo espiritualismo que faz a base da educação e da vida cristã” (Justice, II,368).Não contestaremos mais: se esta má imagem ajusta-se com aquelas que nós temos contado, uma e outra podem muito bem ter mais ou menos coexistido. Dualidade que qualificaríamos, algures de banal.
O que é certamente seguro é que, de modo não menos normal, este espírito por alguns lados ao menos profundamente religiosos conheceu também as suas primeiras dúvidas. Eles sobrevivem, diz-nos ele ainda, quase aos 15 anos de idade. A leitura, paradoxal somente nas palavras, do tratado da demonstração da existência de Deus de Fénelon, recebido a preço livre. Não somente os argumentos do célebre bispo parecem-lhe falíveis mas a revelação por essas páginas de que ele existe para os“ateus” mergulhava-o “na honra extraordinária” (Lettre de candidature). O nascido contraditor, o inimigo de todas as ideias recebidas era provocado.
Enfim, bem mais que as suas inquietudes metafísicas, é a hipocrisia opressante e arrogante do clericalismo da restauração que o conduziu à revolta. Por um novo efeito boomerang, a missão pregada em 1825 em Besançon como na maior parte das cidades (ele tem então 16 anos), acaba por o afastar da religião. O ano seguinte, pela ocasião das festas da Jubilée, ele recusa pela primeira vez de confessar-se (o que confirma a sua prática regular até agora). Muito classificado, mas não sem dilaceração, o jovem homem rejeita as suas correntes contestando a lacuna entre a realidade e os valores proclamados.
Ao seu redor ao longo dos anos seguintes, sob a influência de um primeiro amor do cujo nós não nos salvamos mesmo mais, não é menos clássico. É de certo modo o que Proudhon diz a si mesmo: ”Eu era cristão porque os amorosos, amorosos porque um cristão, eu posso dizer porque religiosos. A religião com efeito é a fé do absoluto, em todas as ordens do conhecimento e da sensibilidade “Carnet VIII, 1850”.
Menos atendida é a observação que este jovem homem que “perdeu” pouco antes a fé, depois está voltado para um ambiente que ele apresenta como sentimental, mete-se a devorar as obras de teologia e de apologética, nomeadamente aquelas dos tradicionalistas cristãos Maistre e Bonald. Da mesma época a sua descoberta apaixonada pela Bíblia, que ele não cessará de ler e de anotar. Ela figura em primeiro lugar das suas fontes de inspiração privilegiadas, segundo a confissão feita a Langlois, o editor da Correspondência.
Neste contexto onde a emoção está doravante ausente, ele acredita mesmo em algo começando a tornar-se “num apologista do cristianismo” (Lettre de candidature). Os primeiros trabalhos, “Essai de grammaire général (1837) e da Célébration du Dimanche”(1839) testemunhando uma parte. Seguidamente é ainda uma leitura religiosa aquela do “Essai sur l´indifférence” do primeiro Lamennais que o afasta definitivamente da fé católica.
Será que Proudhon, deixou igualmente naquela época de se interessar por Deus e pela questão religiosa? Nunca. Em algumas citações da carta de candidatura para a Pension Suard, um ano anterior à celebração mostram-nos bem: a biografia intelectual que lá é retratada confirma ao contrário a permanência das suas preocupações em relação a este assunto.
Sem dúvida, no prefácio da obra não somente o primeiro que ele reconhecia mas aquele onde se pode encontrar o princípio de toda a sua futura obra, a questão “O que é a religião?”, ele respondeu: “O sonho do espírito”, e aquela “O que é Deus?”: “Um X eterno”. Mas estas afirmações foram acrescentadas rapidamente na reedição de 1841. O teísmo do texto original, embora encobrindo uma última interpretação sociológica das prescrições mosaícas, devolvem-lhe o seu diferencial.
A posição central de Pierre- Joseph Proudhon sobre estes problemas, na época dos escritores fundadores, é formulada em todas as primeiras páginas ( éd. Rivière 140-146 ) da”Mémoire sur la Propriété”. Constatando a universalidade do sentimento religioso, o autor interroga-se sobre a capacidade daquela de fundar uma morada social na perspectiva revolucionária. Resposta negativa. A argumentação que seguiu será retomada e completada depois mas não mudará quanto ao essencial. Ela apodera-se sobre esta dupla constatação: de um lado a existência ou não existência de Deus salva a demonstração científica que se impõe doravante; a outra, a absoluta teologia serve para justificar o absolutismo económico político em que o propósito da obra é justamente desmoralizar.
Então ainda não tendo lido Feuerbach, Proudhon esboça a seguinte análise: “…depois de ter feito Deus à sua imagem, o homem quis ainda apropriá-lo; não contente de desfigurar o grande ser, ele trata-o como seu património, seu bem, sua coisa: Deus (…) torna-se acima de tudo propriedade do homem e do estado (p.141). Esta captação da divindade pelos poderes coloca-se ao mesmo tempo à sua própria justificação (“Omnis potetas a Deo”) e aquela da conservação da desigualdade, logo do pauperismo sem os quais os poderes não poderiam perpetuar-se.
Assim, aos olhos do recente sociólogo, a dominação do homem por homem é ela própria homóloga à exploração do homem por homem. Ambas pretendem apoderar-se sobre o desenho da Providência, que teria desejado que a natureza pecadora nunca fosse submissa à autoridade soberana investida na terra do poder de Deus para corrigir a inclinação dos homens para o mal. Ora a revolução afirma exactamente o contrário. Ela deduz-se da percepção da justiça própria aos seres humanos e que a eles pertence promover. A propriedade sobre a sua forma absolutista, causa e produto da injustiça social, não desaparecerá que destruamos as bases teológicas.
Aqui inscreve-se uma homenagem a Jesus, célebre nos termos entusiásticos como o grande profeta da igualdade e contando com o tal iniciador da primeira revolução da história. Proudhon não se pronuncia sobre a sua natureza divina denominando-a “Palavra de Deus”, transcrição literal da fórmula. Esta admiração, constantemente interrogativa, face à pessoa e à imagem daquele que ele venera como “a santidade da sua vida prodigiosa inteligência “(I.G., p. 307), é um tratado constante do nosso autor. Herdado da sua fé de juventude, este interesse não cessará de se afirmar ao longo da sua vida, complicando-se de hipóteses por vezes bizarras. Um grande livro tornou-se no fruto. O sucesso daquele de Renan e de outros factores, impediram Proudhon de o conduzir ao seu termo: ele arrepende-o vivamente. Poder-se-à transportar a montagem ao judicioso por aquele Robert Aron de tentar reconstruir a substância.
Procura teórica, de uma ambição imensa, a “Création de l´ordre dans l´humanité” (1843) não podia esquivar os longos desenvolvimentos sobre os temas que viram a ser resumidos. O ponto de partida é, de novo, uma reflexão sobre a religião, sem a qual “a humanidade pereceu desde a origem” (p. 126). Este tributo devolvido, a convicção é de novo afirmada que, fundada sobre a autoridade e o imobilismo, a primeira religião é “incapaz de descobrir a ordem” (p. 46). É por isso, na sua incessante procura, a humanidade substitui-o pela filosofia. Mas a razão dedutível ela mesma é incapaz de dar conta da totalidade do real. É então que Proudhon fórmula a sua lei dos três estados – ele diz “momentos” – que faz suceder às duas primeiras épocas da humanidade – religião e filosofia – aquela da ciência, chamada metafísica.
Desde então deus parece desaparecer do horizonte, com o objectivo da “série”,lei geral que governa o universo. Tanto mais que é assinado à economia política ciência recentemente descoberta pelo autor com uma sorte de êxtase um papel determinante na plena ocupação pelo homem do seu domínio próprio. Este aqui resulta do papel criador do trabalho humano, substituindo precisamente o que se atendia antigamente da única Providência divina: “Se, como os animais, o homem não impunha para trabalhar que as suas mãos, ou se, como Deus, ele movia e manipulava a matéria pela sua vontade, ele não faria ciência económica; a sociedade seria nula; qualquer coisa faltaria no universo. Só este significado, trabalho, contêm pois toda a ordem de conhecimentos” (criação 298).
Ora, contrariamente a este anúncio, a obra seguinte, “Système des contradictions économiques ou philosophie de la misére” (1846), grande tratado que entende deixar as bases de uma ciência económica à fé rigorosa e revolucionária, não se situa apoderada sobre a posição da materialidade pura. Desde o prólogo, situado sob o signo de um epígrafo biblíco (destruam et aedificabo), Proudhon aborda com efeito o seu assunto de uma maneira acima de tudo, surpreendente, visto que o motivo condutor segue-o: “Eu tenho necessidade da hipótese de Deus”. Esta fórmula faz evidentemente eco à célebre resposta do astrónomo Laplace, dizendo a Napoleão que se admirava (descrente embebido contudo do deísmo das luzes) de não encontrar traço de Deus na sua “Mécanique céleste”: “Senhor, eu não tenho necessidade desta hipótese”. Eh! Bem no princípio de um livro à ambição científica, onde as “contradições” da economia vão substituir-se às “harmonias” providencialistas, Proudhon coloca esta questão de Deus de uma forma muito clássica. É o que pelo menos aparenta. O que não deixou de suscitar bons comentários.
Ao longo dos 2 volumes, por outro lado, encontra-se um comentador porém benevolente, não falamos de Marx! – chamou-a”uma teodiceia invasora e enigmática”(Edouard Droz,P.J.Proudhon,1909). Por toda a parte, com efeito, o autor mostra fortemente a necessidade de ordem que o anima, sua recusa categórica de um azar equivalente para si como o absurdo. É assim que entre o capítulo do pagamento do imposto e aquele sobre a balança do comércio intercala-se aqui 25 páginas, de novo, relatam a Providência. Pode-se dar muitos outros exemplos. Mais tarde, o autor dirá por incidente: “Eu colocava-me no ponto de vista dos meus leitores” (Justice, III, 184).
Mesmo fazendo parte das ideias que o rodeiam, esta precisão permanece insuficiente para dar conta da obstinação teológica de 1846. O leitor compreendendo somente, ainda que sem surpresa, a razão até ao fim do 1º tomo ele acerta sobre a fórmula famosa: “Deus é o mal!” (p.384). Jogando com o seu hábito do paradoxo. Proudhon revela porquê ele tinha tanta falta de Deus: simplesmente para o combater. Ele não nega o Absoluto, o que depois não tem sentido, mas recusa fazer apelo a uma intervenção exterior no domínio que ele reserva cruelmente à responsabilidade humana.
Podia-se desde já lê-lo em todas as cartas no prólogo: “Eu tenho necessidade da hipótese de Deus para fundar a autoridade da ciência social” (C.E., 52). Depois tudo nem é de bom método. Somente esta afirmação, quase banal, o autor coloca-se a professá-la em termos onde a violência iconoclasta procura deliberadamente fazer escândalo, a fim de forçar a intenção. Tal é a sua maneira desde já bem conhecida, seu demónio secreto se assim o quisermos. Sem dúvida também um símbolo mais profundo.
Sem nós para mover mais do que aquilo que lhe convinha, tentemos pois substituir a maldição sacrilégio numa coerência do razoável. Eis aqui as passagens essenciais: “Eu acreditava antigamente, diz Rousseau, que se podia ser um homem honesto e passar-se por Deus: mas já regressei deste erro.” Mesmo a base do raciocínio daquele de Voltaire, mesma justificação de intolerância: o homem faz o bem e não se abstém do mal que pela consideração de uma Providência que o vigia (…). E, para preencher o disparate, o mesmo homem que reclama assim para nossa virtude a sanção de uma Divindade remuneradora e vendedora, é também aquele que ensina como dogma de fé a bondade nativa do homem.
E eu digo: o primeiro dever do homem inteligente e livre é de perseguir incessantemente a ideia de Deus de seu espírito e da sua consciência. Porque Deus, se ele existe, é essencialmente hostil à nossa natureza e nós revelamo-nos de modo algum à sua autoridade: Nós chegamos à ciência contra a sua vontade, à sociedade contra a sua vontade: cada um dos nossos progressos é uma vitória naquela que nós esmagamos a Divindade (…). Eu não censuro ao autor as coisas de me ter feito uma criatura desarmoniosa, um incoerente composto, eu não podia existir nesta condição. Eu contento-me de o apregoar: Porquê me enganas tu? Tu triunfavas, e ninguém ousava contradizer-te, quando, depois de o ter violentado no seu corpo e na sua alma o justo Job, figura da nossa humanidade, tu insultavas a sua piedade sincera (…). E agora eis que és destronado e despedaçado. Teu nome, se à muito é o último significado do erudito, a força do Príncipe, a esperança do pobre, o refúgio do culpado arrependido, eh bem! Este nome incomunicável, doravante visto ao engano e à maldição, será chamado por entre os homens. Por Deus, é loucura e cobardia; Deus é hipocrisia e mentira; Deus é tirania e miséria; Deus é o mal” (op.cit., pp.382-384).
Com força, exagero mesmo, Proudhon não faz mais do que afirmar a autonomia do homem, a sua liberdade diante do próprio Deus. Visto que este Deus, de maneira incompreensível, deixou-nos presos com o mal, proibindo a nossa partida. Rendemo-nos ao mestre do nosso destino, sem dar à nossa inércia um álibi de uma Providência na qual ele manifesta que ela não saberia agir por nós. O mal por excelência é a demissão do homem. O pecado supremo é o abandono da fatalidade, baptizada com o nome da vontade divina. A negação da sua natureza que toda a alma bem nascida, todo o espírito que se quer científico, não pode combater com a última em vigor.
O Deus da Bíblia e dos Evangelhos fez-lhes por outro lado um trabalho. Se ele existe não seria proibido ser um tirano mas a partilha do homem, criado “à sua imagem.”
Sem trair o pensamento proudhoniano, um crente dos nossos dias pode interpretar neste sentido. Ele próprio não escrevia, ao mesmo tempo, ao seu editor Guillaumin: “…se Deus e o homem são opostos, eles são por isso mesmo necessários um ao outro, e (…) a sua existência é incompleta aos dois tanto que eles não são reconciliados”(21-1-46,Cor.,2,228).Concepção que está no coração da obra inteira: aquela da contradição criadora, da paz pelo conflito.
Mas, para se opor, são precisos dois. Proudhon, repete-o, rejeitou sempre a qualificação do “ateu”. Dos textos múltiplos, de períodos diferentes, não são autorizadas nenhumas dúvidas a este respeito. Se ele recusa o nome, é em primeiro lugar porque ele não o estima como ciência: não se pode negar o desconhecido. Mas é também, provavelmente sobretudo, porque ele discerne no antiteísmo, com tanto que isto aqui é pura negação, uma forma de fatalismo (de”nihilismo”, diz ele na Justice III, 179), equivalente, mesmo que de sentido oposto, ao providencialismo desonrado.
É toda a significação do termo de “antiteísmo”, à qual Proudhon tanto mantem. O episódio um pouco burlesco da sua iniciação maçónica, contada por ele próprio não sem jubilação (Justice), ilustra bem esta calma posição filosófica como uma bandeira. O 8 de Janeiro de 1847, quando o venerável da “Loge Sincérité, Parfaite Union e Constante Amitié” obriga-o, ritualmente, a responder à questão: “Qual o direito do homem no Grande Arquitecto do Universo?”, o novato responde: “A Guerra.” E ele comenta: “Guerra a Deus, ou seja, ao Absoluto”, o que não atenuava, neste local e nesta circunstância, o carácter impróprio da profissão da fé. Compreende-se que, mesmo não tendo cessado de se considerar como mestre, o autor nunca teria esquecido o grau de principiante.
O que ele entendia exprimia nesta forma bélica, saltitante mesmo, é na posição não tanto de refúgio do que de orgulho independente ao respeito da Divindade. Mas mesmo a enormidade e a violência da maldição não traduzem alguma inquietude secreta? Não se dava tanta pena para amaldiçoar o nada.
Se ele nunca admitiu o ateísmo, Proudhon interessou-se em contrapartida – provavelmente tentou – pela “religião do humano”, a tal que Feuerbach vinha a exortar. Nos mesmos anos onde se elaboravam as Contradições, Bakounine e sobretudo Grün, seu tradutor alemão, esforçaram-se para o persuadir que o hegelianismo é a filosofia de que ele tem falta, com a condição que ela seja pregada ao seu idealismo. E mais: seus amigos persuadiam Proudhon que ele tinha reencontrado por ele próprio os princípios da dialéctica, aplicada ao homem e não mais ao absoluto.
É assim que Grün felicita-o calorosamente de ter cumprido “a negação da negação”, fim do fim da dialéctica, e vai até agora conceder-lhe o titulo de “Feuerbach francês”, lamentando todavia as suas modificações do “espírito religioso” (CF. Das Liberdades Sociais na Bélgica e na França, 1845). Os livros guardam o traço dos esforços do seu autor para se iniciar com um modo de pensamento à primeira vista próximo do seio mas o qual, não leram alemão, ele só tem acesso em segunda mão e através dos três intérpretes muito orientados.
Preocupações que apareciam igualmente nas contradições, não somente pela forma- como aquela foi remarcada, a mais alemã encontrada no próprio autor – mas, entre outros, sobre o problema que nos ocupa. No prólogo já citado, Proudhon escreve com efeito :”se é incontestável que a humanidade, afirmando Deus o que quer sob o meu nome ou do espírito, não afirma que ela mesma “(p. 50); alusão clara de Feuerbach. Contudo ele acrescenta: “Não se saberia negar não mais que ela afirma-se então como outra que ela se conhecia”.
Assim, ao mesmo tempo que elas fazem referência a algumas teses de (”L´Essence du Christianisme”, as Contradições destacam-se claramente. Desde a conclusão do tomo I onde era precisamente proclamado o antiteísmo, encontra-se uma severa crítica de “divinização da humanidade” e das suas consequências, discernadas no mesmo Feuerbach. O humanismo, diz Proudhon, é ainda uma ilusão religiosa, a mais temível já que ela conduz o homem a adora-se a ele próprio. Ou seja, a criar as condições de um fanatismo sem freio, como ele o censurará mais tarde ao culto do “Grande Ser” de Auguste Comte.
Oposição particularmente clara nas anotações marginais trazidas a um artigo do refugiado alemão Ewerbech, que Grün lhe tinha comunicado. Quando Feuerbach escreve de uma forma peremptória: “A medida de organização de um ser é a medida da sua razão”, colocando esta razão como infinita no seio da espécie, Proudhon objectiva: “Falso. Nós veremos além do que é que nós devemos esperar”. E ele prossegue, sempre comentando as dissertações feuerbanianas:
“A razão de um ser é o seu horizonte. Sim, mas esta razão pode exceder o ser e não mais concordar com ele e tal é o mistério da lembrança da espécie. E isso resulta precisamente da natureza da nossa consciência, da faculdade de crescer de género em género, de procurar o absoluto; faculdade que nos revela, por análise a nós mesmos, que nós somos o género superior, o mais perfeito da criação, mas não o absoluto. O humanismo é uma falsa religião (Citado por Daniel Halévy, Vida de Proudhon, p. 360 e retomado mais completamente por Haubtmann, I, 524).
Seguidamente, nada neste pensamento sempre em movimento não sendo simples, ele chegará a exclamar no mesmo tempo de justiça: “ Deus é consciência da humanidade” (Justice, IV, 445). Faremos a parte das formulações que por vezes muito apertadas, como o seu autor ele mesmo admitido. O problema com o qual ele se desata é este aqui: a justiça é uma realidade especificamente humana e ao mesmo tempo ela deve escapar por algum lado humano “demasiado humano”. Imanente ao homem, ele é mais ou menos transcendente ou em todo caso contra a transcendência, naquela sorte. Ele existe mais longe do humano, sem o qual o homem com tanto que se explicaria e não existiria mesmo.
Segundo esta perspectiva, a equação que Proudhon estabelece por vezes entre a justiça e Deus – “ A justiça é um ideal supremo oferecido à adoração dos homens sob o nome de Deus” – deve compreender-se ao que ele apela “ a categoria do ideal” , ou seja a sublimação pela inteligência de um princípio que ela pode atingir, nem mesmo conceber. Mas esta expressão ou pelo menos uma das outras, ele dá a uma interrogação permanente, pela qual alguma solução não é verdadeiramente adequada.
Estimando mesmo tudo, ou pretendendo, ter isolado a questão de Deus, Proudhon não cessa portanto de encontrar a cada desvio do caminho. Sempre com provocações, suicidando-se mais ou menos claramente que o último significado está longe de ter sido dito. Assim com pena ele fórmula as teses provocatórias das contradições, onde ele admite que o seu antiteísmo, como por outro lado o conjunto dessas negações, apelam a uma contrapartida positiva. A testemunha curiosa confessa a um padre que a identidade é desconhecida: “A crítica que eu fiz da ideia de Deus é análoga a todas as críticas que fez da autoridade e da propriedade, etc. ; é uma negação sistemática, destinada a chegar a uma afirmação superior igualmente sistemática” (à l’abbe X, du 22-1-49, Cor., VI,114).
Contemporâneo é o sermão público, talvez mais espantoso agora, pronunciado no banquete de inauguração do Banque du Peuple que se seguiu pouco famoso “Toast à la Révolution” : “Eu juro diante de Deus, diante dos homens, sobre o Envagelho e sobre a Constituição” (O povo, 31 de Janeiro de 1849, Obras, ed. Lacroix, VI, 260). De seguida, uma invocação, bem no tom da época mas não menos inspirada, no “Christ républican” cujo o orador inspirado reconhecia de uma certa forma a divindade: “É, como vocês sabem, o Deus do Evangelho, sempre o Deus dos pobres e dos operários, sempre o Deus dos oprimidos e dos pescadores, sempre o Deus de todos os sofrimentos (…). As concepções de Cristo são empreendidas de tanta grandeza e de santidade que elas esquecem infinitamente tudo o que há de melhor naquelas do homem. (…) Só Deus é o legislador das nações, porque ele é bom no supremo grau.”
Calor comunicativo? Concessão aos sentimentos mais derramados junto dos seus auditores? Todas as exigências são permitidas. Talvez lhe seja mais simples de admitir que aquele que pronunciava estas palavras, marcadas aparentemente pela chancela da sinceridade, oscilava-lhe mesmo entre duas afirmações contraditórias que, no seu espírito, chegam a reconciliar-se um dia. De um lado a rejeição a Deus com tanto que um álibi de todas as opressões e por conseguinte a demissão do homem. Do outro a procura incansável de um valor supremo sem o qual a liberdade não tem sentido, a igualdade de existir. Sim com a orgulhosa afirmação de um antagonismo colocando o homem de igual para igual numa face a face com Deus. Mas não à destruição de todo o valor numa irrisória e ruinosa divinização do humano.
O antiteísmo de Proudhon da primeira época poderia ser reatado aos três velhos da corrente da “teologia negativa” que, desde o século XIX, aos nossos dias, conheceu uma reviviscência. De origem platónica, depois retomada com as variantes de diversos pensadores cristãos, esta forma de pensamento é de essência mística. Esmagada pela transcendência divina, ela rejeita o debate sobre a “existência “de Deus que voltava a aplicar-lhe a condição das criaturas. A mesma noção de divindade é em si imensurável que seria mutilá-la, querer insultá-la, do que de a aplicar a um qualquer predicado. Deus é desconhecido por natureza, absolutamente. A única maneira, não de o conhecer – o que é impossível – mas de o reconhecer, de sondar o abismo que nos separa, é de rejeitar neste respeito uma formulação que seria por si própria uma limitação. É assim que um cristão atormentado como Kierkegaard, contemporâneo de Proudhon mas que não poderia ser seu conhecido, não hesita em escrever: “O cristianismo existe porque existe raiva entre Deus e os homens”, qualificando de “inimigo mortal” o absoluto refinado pelas instituições religiosas. Expressões admiravelmente parecidas aos pretendidos blasfémicos proudhonianos.
A supor que ele havia conhecido a graça, Proudhon não se precipitou numa fé que, para a filosofia dinamarquesa, só era capaz de transpor de um salto do abismo do desconhecido. O Franc-Comtois suportou a angústia da oposição, não aquela da adoração. Acantonado o Absoluto, sem o negar, na esfera do desconhecido, ele coloca mais e mais o acento sobre o “tornando-se”, no lugar do “sendo”, sobre a tendência, não sobre um objectivo inatingível já que ele derruba-se cada vez que se pensa em atingi-lo.
Separando-se radicalmente de um Feuerbach como do todos aqueles que fazem da Humanidade um infinito, Proudhon vê ao contrário a razão humana em que “progressão, sucessão, nunca simultaneidade nem plenitude” (comentário supra citado, ao artigo de Ewerbeck ). É assim que ele escreve na “Filosofia do Progresso”, obra capital para apanhar toda a sua evolução ulterior: “deus não pode mudar a sorte, é somente nesta condição que ele existe” (p.70). os dois estudos que compõem o livro são consagrados a demonstrar que o perfeccionismo da Humanidade nunca é somente adquirido mas não valeria conhecer alguma realização definitiva, pois todo o progresso acabado exige o seu próprio acabamento. Tal é a maneira proudhoniana de considerar o infinito.
Esta concepção de uma imanência que suscita a sua própria transcendência é a trama do grande tratado “Da Justiça”. A afirmação da justiça como valor supremo, motor e objectivo da História, é o próprio do homem, à vez da sua primeira razão e seu fim. Tudo o que pretende procurar algures é o fundamento do trabalho e do direito – submissão vertical à divindade ou aspiração horizontal a uma fraternidade total – nega a especificidade da condição humana e, por consequência, impede todo o progresso.
Desde então é o mesmo movimento da consciência humana, indissoluvelmente consciência de outrem, que se encontra – ou pelo menos que deve procurar-se – o absoluto.” Eu afirmo a Humanidade no lugar do ser supremo”, diz Proudhon para resumir o livro (a Tissot, de22-12-53,Cor.,v,299). E, na mancha do texto ele multiplica as fórmulas que retomam esta ideia central. Nós já temos citado uma entre elas, mas aqui aquela que contêm todas: “Deus é a consciência da Humanidade” (Justice 4,445). O absoluto não está na imanência mesmo que a imanência seja o fim – aqui há os dois sentidos do termo – do só absoluto que nós poderíamos atingir.
Mas onde se situa a fonte desta premência, também universal bem como personalizada, da justiça? Atrás dos seus aforismos e das suas análises por vezes embaraçosas, Proudhon não cessa de andar à volta da mesma interrogação aborrecida. Na época de Contradições, ele confiava-a, dialogando consigo, num fragmento intitulado “Epílogo”, muito provavelmente destinado à conclusão do seu livro: “De onde vem esta paixão da justiça, que me atormenta e irrita-me, e indigna-me? Eu não posso justificar-me. É o meu Deus, a minha religião, meu todo; e se a começo a justificar pela razão filosófica, eu não o posso” (Carnet 1,226,março de 1846). Percebe-se no tremor do tom como a confissão é de um problema profundo e permanente.
Em certos momentos, contudo, ele persuade-se que uma tamanha questão é vã e que a constatação da omnipresença, logo do valor operacional, da ideia da justiça tende a fundar a acção revolucionária. Aos outros instala-se não mais que a dúvida – sobre este ponto o duvidoso que era provado – mas, mais subtilmente um “tormento”, a insatisfação do seu espírito essencialmente metafísico face á questão das questões, que ele não pode resolver.
Proudhon não só se impacienta de ser incapaz de responder, vendo bem tudo o que esta incapacidade reenvia-lhe para lá onde ele não quer sobretudo ir. Preso textualmente, o equivalente entre a justiça e o Absoluto não pode conduzir a esta religião da Humanidade cujo erro ele tinha denunciado.
A falsa religião do humanismo, é o mesmo que dizer a adoração do homem por ele mesmo, deriva fatalmente contra uma “deificação da espécie”(C.E.2,174), cujo resultado não pode ser mais que a submissão dos valores à razão colectiva, sendo a negação da própria justiça. É isto que o autor de “Contradictions” tinha repudiado instintivamente na visão de Feuerbach, herdado do idealismo absoluto de Hegel. Se ele a criticou com tanto apreço a alienação religiosa de um cristianismo posto ao serviço dos poderes, era para admitir aquela que resultaria fatalmente do culto pretendido à justificação do poder total do Homem, quando este aqui havia sido revestido dos atributos da divindade? Escapa ao coração da grande revolução, o Terror não foi de outra causa e toda a obra proudhoniana é consagrada a denunciar esta perversão fatal.
A questão central sobre o ser está, menos do que nunca, parado de trabalhar o Proudhon -mas não o resignou dos últimos anos. É então que ele se esforça por juntar os elementos acumulados do livro sobre Jesus, no qual ele pensava desde há muito tempo e que o enorme sucesso daquele Renan, aparecido em 1863,seria o estímulo a colocar no nítido. Igualmente ele está mais longe de admirar sem reservas esta adulteração da figura de Cristo.
As suas aspirações profundas podem-no levar a acabar este livro da sua vida, no mesmo momento em que o absorve o enorme trabalho da redacção do seu último pensamento sobre o federalismo e o mutualismo. Tão importantes que eles sejam aos seus olhos, estes sujeitos não lhe parecem dizer a última palavra das suas investigações. Desde logo, nas “Notas e Pensamentos” da Pornocratie, redigidas por volta de 1859, ele revelava a sua questão de uma coroação espiritual: “É preciso que nós refaçamos da moral alguma coisa como um culto.” Nós podemos com as únicas forças do espírito dar uma teoria, definir o direito, formulando as aplicações… Mas substituir o coração, a alma…Nunca! Precisamos de outra coisa. É preciso regressar às fontes, procurar o divino, fortalecermo-nos numa veneração, que nos seja ao mesmo tempo uma felicidade. Nós procuramos qualquer coisa de místico, que contudo não choque a razão…mas que todavia a ultrapasse sempre”(éd.Rivière,pp.462-463,passim). Um pouco mais tarde, nas anotações da sua leitura renaniana, ele mata também “não poder escapar à obsessão do sobrenatural.” (Haubtmann,3,394).
Preocupação demasiado evasiva, que o conduz a reler Feuerbach, aparentemente esquecido desde há muito, pois o seu próprio editor Lacroix em 1864 as primeiras traduções francesas da “Essência do cristianismo e da religião.” Proudhon doente e recolhido do trabalho, precipita-se sobre estas obras que o reconduziram perto de 20 anos antes. Segundo seu hábito, ele cobre-as minuciosamente de marcas.
Suas reacções são, para o essencial, idênticas àquelas da época das Contradições e das discussões apaixonadas com os hegelianos. A atracção exercida pelo misticismo filosófico do escritor alemão ainda se sente. Mas acentua-se a hostilidade frente-a-frente da redacção ao humano demasiado fácil, quase “simplória”, segundo Proudhon operada a partir do divino. “Quanto mais eu leio e medito Feuerbach, escreve ele à margem do seu exemplar, mais eu me convenço que a religião choca qualquer mistério desconhecido.”
Não só admite doravante sem revolta que “a ordem universal compõem-se da acção de Deus e daquela do homem” (op.cit.,398), sempre mantendo o antagonismo entre uma e outra acção, o antiteísta ordena se ele não existiria entre elas algum laço secreto: “Amar, é sofrer, dizia Santa Teresa. Dar tudo a quem se ama, eis a vontade suprema. Quão grande é o coração do homem, é preciso, de todo necessário dizendo bem de Deus.” (op.cit.,401). Ele insiste sobre este “profundo mistério.” (op.cit,399).
Poder-se-à sempre falar de um sonho fugitivo, escapado de um homem no fim do seu curso. Quem ousará afirmá-lo?
Em todo o caso o mesmo já tinha primeiramente um pouco, não sonhado mas escreve o que é fazer seu último pensamento sobre um sujeito indefinidamente meditado. Ela encontra-se no texto redigido com intenção de um certo Bouteville, professor de filosofia, que lhe havia sujeito seu manuscrito sobre “A moral da igreja e a moral natural.” Texto que por esta razão Haubtmann – que a publicou pela primeira vez em extenso (Proudhon, génese de um anti-teísta, Mame1969) – intitula por esta razão o “folheto Bouteville.” Então o que o autor reclamava da doutrina exposta nomeadamente na justiça, Proudhon responde à sua argumentação, ou seja, a contar a ele mesmo.
“Eu creio que nem Boutteville, nem eu, nem os Pais, nem os ancestrais filosóficos não aprofundamos ainda suficientemente esta questão do princípio da justiça, que a igreja considera sobretudo em Deus, na sua subjectividade, e Cícero na natureza, na sua objectividade.
O que é Deus? Não se pode conhecê-lo pelas únicas forças da razão. Notamos aqui: Há em Deus pelo menos uma coisa que nós podemos com experiência afirmar, é que a sua ideia possui-nos e trabalha-nos prodigiosamente. Sobre Deus nós não sabemos e não podemos nada saber pela razão (o que ele é, etc.) mas nós julgaremos, sobre uma experiência quotidiana, que ele tinha da continuação, da ordem, da finalidade, da harmonia na natureza; uma vontade que apareça/e, que pode, que resiste, que condena, etc.”
O seguimento da passagem não é somente admirável mas perturbadora. Pela primeira e única vez sem dúvida, com esta intensidade, nós sentimos tremer? Alguma coisa que não é mais que um raciocínio, mas a uma presença forte: “Deus está disfarçado, mas mais uma vez ele está seguro que ele atormenta-nos, que a todo o momento nós acreditamos vê-lo aparecer; que ele nos parece entendê-lo a bater à porta; e que nós não nos podemos impedirmos de gritar: Quem vive? Quem está lá.”
A resposta, ignoramo-la sempre. Mas sem saber se a porta está finalmente aberta para a criança insaciável do faubourg-Bettant, afirmamos ao menos que ele a terá desejado com uma paciência furiosa.



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