quinta-feira, março 30, 2006

A Palestina. Que Palestina?

Subtilmente mas imperceptivelmente, ao longo dos últimos anos vários dirigentes mas também órgãos de comunicação social europeus alteraram a forma de abordar o drama da Palestina e a solução do conflito israelo-palestiniano. Durante aquilo que foi chamado o processo de Oslo, era claro que a solução passaria por uma negociação de conjunto fundada numa retirada das tropas israelitas dos Territórios Ocupados em 1967, inclusive da parte oriental de Jerusalém, no estabelecimento de fronteiras duradouras entre o Estado palestiniano e Israel, e numa solução aceitável para os refugiados palestinianos. As negociações de Camp David de Julho de 2000, tal como as de Taba em Janeiro de 2001 incidiam sobre estes contenciosos.
Os últimos anos foram pontuados pela deflagração da Segunda Intifada, no fim de Setembro de 2000, pela sangrenta repressão posta em prática pelo exército israelita desde os primeiros dias uns meses antes dos primeiros atentados suicidas, pela escalada de violência, pela eleição de Ariel Sharon como primeiro­ministro, pela multiplicação dos atentados contra civis israelitas, e depois pela retomada do controlo total dos Territórios Ocupados pelo exército israelita. No entanto, do ponto de vista do direito internacional, e seja qual for a apreciação que se possa ter sobre a estratégia e a táctica da Autoridade Palestiniana, os problemas de base permanecem: a Cisjordânia, Gaza e Jerusalém Oriental continuam a ser territórios ocupados, Israel continua a ser uma potência ocupante, e a criação de um Estado palestiniano independente continua a ser a chave para a paz.
Contudo, se se ler as declarações dos dirigentes europeus e se seguir a actualidade repercutida na comunicação social, constata-se uma inflexão de perspectiva: é doravante aos palestinianos, ou seja aos ocupados, que cabe provar a sua boa vontade. As referências da União Europeia às obrigações de um e de outro campo escondem mal a ligação à visão do primeiro-ministro israelita, quando afirmam que qualquer avanço no caminho para a paz depende da Autoridade Palestiniana, que é esta que deve reformar­se, liquidar os grupos armados e dar provas da sua vontade de coexistir com Israel. Esta ligação é também muito perceptível na comunicação social, que tende a apagar a realidade da política israelita no terreno, a subestimar o seu carácter repressivo e contrário ao direito internacional e a ocultar os crimes de guerra cometidos.
Em França, as violentas campanhas levadas acabo contra certos jornalistas e intelectuais, contribuíram para paralisar uma parte dos jornalistas: quem desejaria ser qualificado, mesmo erradamente, como anti-semita?
A evacuação da Faixa de Gaza durante o Verão de 2005 representou, deste ponto de vista, um outro exemplo edificante. Durante semanas, a comunicação social internacional incidiu os projectores sobre alguns milhares de colonos evacuados, detendo-se extensamente sobre o seu sofrimento e sobre as lágrimas dos soldados encarregados de os evacuar. Poucos jornalistas recordaram que a colonização representa, segundo as normas do Tribunal Penal Internacional, um crime de guerra. Que muitos destes Colonos são fanáticos prontos a disparar sobre os civis palestinianos. Que dezenas de milhares de palestinianos de Gaza foram deslocados durante as ultimas décadas sem que tal comovesse minimamente o Ocidente.
Pior ainda, a evacuação de Gaza foi apresentada como um gesto significativo de Ariel Sharon. Tal gesto permitiu­lhe reforçar o crédito de que dispunha nos Estados Unidos e na Europa, abrindo­lhe as portas a uma visita oficial, com grande pompa, em França. No entanto, como recordam as Nações Unidas, Gaza continua a ser um território ocupado, onde as tropas israelitas fazem numerosas incursões – o governo israelita acaba até de decidir instalar uma zona de segurança no território palestiniano, evacuando uma parte da população. A ameaça de cortar a electricidade em toda a Faixa de Gaza constitui também uma punição colectiva, contrária às Convenções de Genebra. A organização norte-americana Human Rights Watch assinalava, num comunicado de 23 de Dezembro de 2005, que uma tal medida representaria uma violação das leis da guerra, tal como o era o facto de Telavive ter proibido, entre 24 de Setembro e 12 de Novembro de 2005,
a entrada no seu território aos 5000 trabalhadores palestinianos, proibição essa que veio juntar-se aos padecimentos de uma população em que 68 por cento dos habitantes vivem abaixo do limiar da pobreza.
A colonização está a avançar rapidamente. A população total dos colonos (...) é agora de 436.000, dos quais 190.000 em Jerusalém e 246.000 na Cisjordânia. Apenas 8.475 colonos ilegais, ou seja 2 por cento deste total evacuaram Gaza e a região de Jenine. Durante o mesmo período, a população dos colonatos da Cisjordânia aumentou maciçamente, tendo agora mais 15.800 colonos. As consequências da construção do muro de separação na cidade de Jerusalém são confirmadas por um relatório recente dos chefes de missão da União Europeia em Jerusalém Oriental.
Os cônsules europeus em Jerusalém sublinham que as acções de Israel em Jerusalém constituem uma violação dos compromissos assumidos com o Roteiro para a Paz e do direito internacional. Qual o resultado de tais constatações? A União Europeia decidiu, corajosamente, não publicar este relatório...
A vitória do Hamas nas eleições locais aconteceram em terreno fértil. As pessoas estão fartas das mentiras que acompanharam as suas vidas durante os treze últimos anos desde a assinatura dos Acordos de Oslo, a saber, que Oslo significa a paz, que a criação de uma Autoridade Palestiniana é uma vitória e um símbolo que abolirá todos os seus fracassos, que a Autoridade é um Estado.
O Hamas, no entanto não deve ser reabilitado pois a sua propaganda apoia-se, em três mentiras: o movimento islamita afirma que a Faixa de Gaza foi libertada, ao passo que isso resulta de uma decisão unilateral israelita; que esta evacuação resulta da luta armada, ao passo que os atentados suicidas apenas reforçaram o apoio da opinião pública israelita a todas as formas de tomada de controlo da Cisjordânia; que as eleições legislativas de Janeiro de 2006, nas quais o Hamas decidiu participar, são fundamentalmente diferentes das de 1996, ao passo que se desenrolam no mesmo quadro, o que foi fixado pelos Acordos de Oslo.
Os apelos à democratização da Autoridade Palestiniana parecem igualmente vazios de sentido. Durante a eleição presidencial de Janeiro de 2005, era claro que a União Europeia apenas queria um vencedor, Mahmud Abbas. As inúmeras pressões exercidas pela Fatah sobre a comissão eleitoral não foram, por isso, denunciadas pelos observadores internacionais nem difundidas pela comunicação social. Altos representantes da União Europeia para a Política Externa e de Segurança Comum ameaçam agora retirar à Autoridade Palestiniana o apoio de Bruxelas em caso de vitória do Hamas no escrutínio de Janeiro de 2006. Em suma, a Europa dos Vinte e Cinco aceita as eleições, desde que sejam eleitos os seus candidatos preferidos...
Como poderemos surpreender-nos, assim sendo, com o facto de a União Europeia estar a reforçar as relações com Israel, que esteja mais pronta a pressionar a Autoridade do que a aplicar as sanções previstas pelos Acordos em caso de violação dos direitos humanos, violações que são diárias nos Territórios Ocupados, ou a receber os dirigentes israelitas para os encorajar a prosseguirem na mesmo sentido, não obstante esse caminho conduzir directamente à anexação de uma grande parte da Cisjordânia e de Jerusalém Oriental.


O processo de paz aberto pelos Acordos de Oslo está morto e enterrado. Pode pensar-se que ele teria podido representar uma via para a resolução do conflito, que não se aproveitaram as oportunidades. Seja como for, já não é possível voltar atrás. Será possível ter esperança na aplicação do Roteiro para a Paz depois das próximas eleições? Não, porque a equação permanece a mesma: os palestinianos continuam a viver sob ocupação, a sua vida quotidiana é insuportável, as suas aspirações de independência são ultrajadas. É ilusório pensar que se poderá assistir, num período próximo, a uma mudança de orientação do governo israelita sem pressões internacionais sustentadas no sentido de obrigar à aplicação do direito internacional, apenas o direito internacional, todo o direito internacional. A resistência dos palestinianos e a mobilização da fracção pacifista da opinião pública israelita devem ser apoiadas por sanções internacionais.
Mas esse momento ainda se encontra muito longínquo.


http://www.infoalternativa.org/moriente/mo037.htm

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